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clusão de que o rádio era intensamente regionalista, medianamente
nacionalista e totalmente desinteressado pelo resto do mundo, a não ser
que algum problema ocorresse em outros países.
O planeta inteiro pode estar transmitindo e os satélites podem estar
repassando estas transmissões adiante com fantástica precisão, mas a
forma mais saudável de radiodifusão da atualidade é aquela que é
intensamente comunitária. Ela resiste à invasão. De fato, duvido que em
toda a sua história, a transmissão (seja por rádio ou por televisão) tenha
aumentado o conhecimento das pessoas a respeito do mundo mais do
que faz um livro. E apesar de todos os esforços das emissoras em dizer o
contrário, acho que elas nunca tiveram a intenção de fazer isso. O rádio
tem sido muito mais um instrumento de nacionalismo do que de
internacionalismo; e quando os transmissores são direcionados para o
exterior é só para divulgar a propaganda. O rádio comercial é ainda mais
estritamente territorial, com as emissoras comprando as suas franquias
como se fossem lanchonetes ou estacionamentos.
Em todo lugar, a radiodifusão ampla está cedendo lugar para uma
radiodifusão tacanha. Os técnicos também asseguram que as limitações
de 500-1600 quilohertz e 88-108 megahertz em breve serão abolidas,
possibilitando a existência de centenas e finalmente milhares de novos
canais de rádio, fragmentando a audiência em uma miríade de grupos de
interesses especiais. Quando este desenvolvimento se der a conhecer, o
rádio precisará se tornar um meio de comunicação de respostas rápidas e
“cibernético”, fazendo com que os ouvintes fiquem mais ativamente
envolvidos.
De certo modo, isso começou com os programas de linha direta, que são
um retorno do rádio à telefonia; mas não deve parar por aí. Se os ouvintes
passarem a desempenhar um papel importante na reestruturação do
rádio, a eles deve ser permitido participar da escolha dos assuntos a
serem discutidos. Eles não devem ser intimidados e manipulados por
locutores escorregadios. Na Holanda, por exemplo, Willem de Ridder
opera um programa de rádio no qual qualquer ouvinte pode trazer uma
fita cassete sobre um assunto de sua escolha que ela irá ao ar. A varie-
dade é estonteante e estimulante.
De maneira parecida, sempre pensei em colocar microfones em
restaurantes, clubes ou qualquer outro lugar onde as pessoas se reúnam
para trocar idéias. Os resultados poderiam ser revigorantes. Numa
reunião da Tupperware de uma cidade pequena, num chá beneficente
feminino, na hora do recreio quando estudantes de segundo grau se
reúnem para fumar escondido, num banco de praça onde os mendigos
matam o tempo, numa loja de implementos agrícolas onde os fazendeiros
se encontram; isto sem um locutor que fique direcionando os
pensamentos das pessoas. Estas e outras milhões de situações
produziriam um material muito mais interessante do que as opiniões
solicitadas aos ouvintes sobre assuntos do dia. Isto também é
tecnicamente possível. O único empecilho é a arrogância dos
programadores.
A arte é inimiga do tempo presente; ela sempre quer mudá-lo
introduzindo outros tempos verbais. Ela altera o mundo observável ao
introduzir novos ritmos, esquecidos, ignorados, invisíveis, impossíveis.
E se o rádio se tornasse uma forma de arte? Então, seu conteúdo seria
totalmente transformado. Ele deixaria de funcionar como escravo da
tecnologia das máquinas, mecânica e cronometrada. Deixaria de palpitar
conforme os espasmos da produção e do consumo. Iria sobrepujar os
impedimentos da mecanização, apaziguar a fúria dos mascates e
regateiros e calar as vozes dos apresentadores de notícias.
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Todas essas excrescências da sociedade do “quanto mais melhor" seriam
varridas para o aparador de cinzas do esquecimento. O rádio vibraria em
novos ritmos, os ciclos biológicos da vida e da cultura humanas, os biorrit-
mos de toda natureza. Existem pessoas no mundo de hoje — e a história
da humanidade é transformada quase que totalmente por estas pessoas
— que vivem vidas orgânicas dentro dos grandes ciclos naturais do
universo, os quais aceitam e respeitam. Só nestas condições é que o rádio
poderia se religar com a força divina primitiva, carregada com a energia
do sagrado e restaurada em sua condição radical original.
O que estou exortando é a uma abordagem fenomenológica, que
substitua a humanística. Deixemos que a voz do anunciante seja
silenciada. Deixemos que as situações se apresentem conforme ocorram,
sem a interrupção de patrocinadores, relógios ou manipulação editorial.
Uma estação de rádio do Canadá na zona rural do Quebec tem a seguinte
vinheta: “Uma nota musical, o canto de um pássaro, um poeta, uma idéia,
e às vezes também silêncio, nas ondas da CIME FM 99.5 megahertz. Você
está escutando a vida”.
Infelizmente, os assuntos abordados quase nunca vão ao encontro das
reivindicações; mas está se aproximando o tema que anuncio.
Radiodifusão fenomenológica ao invés de humanística. Deixemos que os
fenômenos do mundo falem por si mesmos, com suas próprias vozes, em
seu próprio tempo, sem que o homem tenha sempre que ocupar o lugar
central, torcendo, tirando partido e fazendo mal uso do mundo para seu
próprio proveito.
Por que o rádio não deveria registrar as mínimas alterações no ambiente
sonoro? Ele é o instrumento perfeito para fazer isso. Por que não gravar a
mudança das estações no som das folhas outonais, ou na chegada dos
pássaros na primavera?
E por que não divulgar esses temas nas vozes de quem melhor os
compreende? Como por exemplo, transmitir o monólogo de um chefe
indígena, na íntegra, com seus silêncios calculados e deliberados, que
representam uma parte tão importante de sua eloqüência — e enfurecer
os homens brancos. Por que não sentir a vibração de uma outra
civilização, quem sabe lendo Os miseráveis de Victor Hugo, sem pausas,
pelo tempo que for necessário? Ou os contadores de estórias do mundo
todo nos trazendo as tonalidades miraculosas do desconhecido; por
exemplo, a leitura de As mil e uma noites, com uma seriação perfeita,
fazendo pausas, como o contador pretendia, de madrugada, no meio de
cada episódio, para só continuar ao pôr-do-sol do dia seguinte. Ou a
música da África, da China, da América do Sul e da Ásia, a música de
bambus e pedras, de grilos e cigarras, de moinhos e quedas d’água, sem
interrupção por horas — tal como são ao vivo.
Para muitos desses temas teríamos que sair do estúdio. Mas, por que
não? Sair a céu aberto. Ir em direção às ruas, aos prados, às selvas e aos
campos gelados. Criar a partir de lá. Vire de cabeça para baixo todo o
modelo de radiodifusão e você se surpreenderá como as idéias surgirão
de dentro de você. Você precisará de novos equipamentos, mas isso virá a
seguir. Arrisque-se no novo território, que ele se adaptará a você — um
microfone para gravar os tambores do campo de batalha, mergulhando
nas profundezas do oceano ou captando as vibrações das moléculas.
Faz quase quinze anos que começamos a produzir a série de programas
de rádio intitulada Soundscopes of Canada para a CBC. Em um programa,
viajamos de Newfounland até Vancouver, juntando todas as respostas
que obtínhamos para a pergunta “Como se chega em...?” O que o ouvinte
escutava eram as indicações, por todo o país, de como se ia de um vilarejo
ou cidadezinha até a próxima; indicações dados em todos os dialetos e
línguas de cada região do caminho. Um outro programa consistia em nada
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