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Novos Estudos - CEBRAP

Print version ISSN 0101-3300

Novos estud. - CEBRAP  no.79 São Paulo Nov. 2007

doi: 10.1590/S0101-33002007000300004 

Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes1

 Boaventura de Sousa Santos

Professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Warwick (Inglaterra). É autor, entre outros livros, de A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Cortez, 2006) e Para uma revolução democrática da justiça (Cortez, 2007)

 



RESUMO

Na primeira parte do ensaio, o autor argumenta que as linhas cartográficas "abissais" que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria portanto estritamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento "pós-abissal".



Palavras-chave: emancipação social; exclusão social; epistemologia; colonialismo; globalização.



SUMMARY

In the first part of the essay, the author states that the "abyssal" cartographical lines that used to demarcate the Old and the New World during colonial times are still alive in the structure of modern occidental thought and remain constitutive of the political and cultural relations held by the contemporary world system. Global social iniquity would thus be strictly related to global cognitive iniquity, in such a way that the struggle for a global social justice requires the construction of a "post-abyssal" thought.



Keywords: social emancipation; social exclusion; epistemology; colonialism; globalization.

 

 



O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal2. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o "deste lado da linha" e o "do outro lado da linha". A divisão é tal que "o outro lado da linha" desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível3. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o "outro". A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. O universo "deste lado da linha" só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética.

Para dar um exemplo baseado em meu próprio trabalho, venho caracterizando a modernidade ocidental como um paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais4. Essa distinção visível fundamenta todos os conflitos modernos, tanto em termos de fatos substantivos como de procedimentos. Mas a essa distinção subjaz uma outra, invisível, na qual a anterior se funda: a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. De fato, a dicotomia "regulação/emancipação" se aplica apenas a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territórios coloniais, aos quais se aplica a dicotomia "apropriação/violência", por sua vez inconcebível de aplicar a este lado da linha. Contudo, a inaplicabilidade do paradigma "regulação/emancipação" aos territórios coloniais não comprometeu sua universalidade. O pensamento abissal moderno se destaca pela capacidade de produzir e radicalizar distinções. Por mais radicais que sejam essas distinções e por mais dramáticas que possam ser as conseqüências de estar em um ou outro de seus lados, elas pertencem a este lado da linha e se combinam para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas. As distinções intensamente visíveis que estruturam a realidade social deste lado da linha se baseiam na invisibilidade das distinções entre este e o outro lado da linha.

O conhecimento e o direito modernos representam as manifestações mais cabais do pensamento abissal. Dão-nos conta das duas principais linhas abissais globais dos tempos modernos, as quais, embora distintas e operando de modo diferenciado, são interdependentes. Cada uma cria um subsistema de distinções visíveis e invisíveis de tal modo que as últimas se tornam o fundamento das primeiras. No campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciência, em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. Esse monopólio está no cerne da disputa epistemológica moderna entre as formas de verdade científicas e não-científicas. Já que a validade universal da verdade científica sempre é reconhecidamente muito relativa — pois só pode ser estabelecida em relação a certos tipos de objetos em determinadas circunstâncias e segundo determinados métodos —, de que modo ela se relaciona com outras verdades possíveis que até podem reclamar um estatuto superior mas que não podem ser estabelecidas conforme o método científico, como é o caso da razão como verdade filosófica e da fé como verdade religiosa5? Essas tensões entre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, vieram a se tornar altamente visíveis, mas todas elas, como defendo, têm lugar deste lado da linha. Sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma dessas modalidades. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso. É inimaginável aplicar-lhes não só a distinção científica entre verdadeiro e falso, mas também as verdades inverificáveis da filosofia e da teologia, que constituem o outro conhecimento aceitável deste lado da linha6. Do outro lado não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que na melhor das hipóteses podem se tornar objeto ou matéria-prima de investigações científicas. Assim, a linha visível que separa a ciência de seus "outros" modernos está assente na linha abissal invisível que separa, de um lado, ciência, filosofia e teologia e, de outro, conhecimentos tornados incomensuráveis e incompreensíveis por não obedecerem nem aos critérios científicos de verdade nem aos critérios dos conhecimentos reconhecidos como alternativos, da filosofia e da teologia.

No campo do direito moderno, este lado da linha é determinado por aquilo que se reputa como legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou o direito internacional. Distinguidos como as duas únicas formas de existência relevantes perante a lei, o legal e o ilegal acabam por constituir-se numa distinção universal. Tal distinção central deixa de fora todo um território social onde essa dicotomia seria impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos não reconhecidos oficialmente7. Assim, a linha abissal invisível que separa o domínio do direito do domínio do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha organiza o domínio do direito.

Em cada um dos dois grandes domínios — a ciência e o direito — as divisões levadas a cabo pelas linhas globais são abissais no sentido de que eliminam definitivamente quaisquer realidades que se encontrem do outro lado da linha. Essa negação radical de co-presença fundamenta a afirmação da diferença radical que deste lado da linha separa o verdadeiro do falso, o legal e o ilegal. O outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, assim como seus autores, e sem uma localização territorial fixa. Na verdade, como já apontei, existiu originalmente uma localização territorial, a qual coincidiu historicamente com um território social específico: a zona colonial8. Tudo o que não pudesse ser pensado em termos de verdadeiro ou falso, de legal ou ilegal, ocorria na zona colonial. A esse respeito, o direito moderno parece ter alguma precedência histórica sobre a ciência na criação do pensamento abissal. De fato, foi a linha global que separava o Velho Mundo do Novo Mundo que tornou possível a emergência, deste lado da linha, do direito moderno e em particular do direito internacional moderno9.

A primeira linha global moderna foi provavelmente a do Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha (1494)10, mas as verdadeiras linhas abissais emergem em meados do século XVI com as amity lines ("linhas de amizade")11. Seu caráter abissal se manifesta no elaborado trabalho cartográfico investido em sua definição, na extrema precisão exigida a cartógrafos, fabricantes de globos terrestres e pilotos, no policiamento vigilante e nas duras punições às violações. Na sua constituição moderna, o colonial representa não o legal ou o ilegal, mas o sem lei. Uma máxima que então se populariza, "Não há pecados ao sul do Equador", ecoa na famosa passagem dos Pensamentos de Pascal, escritos em meados do século XVII: "Três graus de latitude subvertem toda a jurisprudência. Um meridiano determina a verdade [...]. Singular justiça que um rio delimita! Verdade aquém dos Pirineus, errado além"12. De meados do século XVI em diante, o debate jurídico e político entre os Estados europeus acerca do Novo Mundo concentra-se na linha global, isto é, na determinação do colonial, e não na ordenação interna do colonial. O colonial é o estado de natureza, onde as instituições da sociedade civil não têm lugar. Hobbes refere-se explicitamente aos "povos selvagens em muitos lugares da América" como exemplares do estado de natureza, e Locke pensa da mesma forma ao escrever em Sobre o governo civil: "No princípio todo o mundo foi América"13.

O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as concepções modernas de conhecimento e direito. As teorias do contrato social dos séculos XVII e XVIII são tão importantes por aquilo que dizem como por aquilo que silenciam. O que dizem é que os indivíduos modernos, ou seja, os homens metropolitanos, entram no contrato social abandonando o estado de natureza para formar a sociedade civil14. O que silenciam é que com isso se cria uma vasta região do mundo em estado de natureza — um estado de natureza a que são condenados milhões de seres humanos sem quaisquer possibilidades de escapar por via da criação de uma sociedade civil. A modernidade ocidental, em vez de significar o abandono do estado de natureza e a passagem à sociedade civil, significa a coexistência de sociedade civil e estado de natureza separados por uma linha abissal com base na qual o olhar hegemônico, localizado na sociedade civil, deixa de ver e declara efetivamente como não-existente o estado de natureza. O presente que vai sendo criado do outro lado da linha é tornado invisível ao ser reconceitualizado como o passado irreversível deste lado da linha. O contato hegemônico converte simultaneidade em não-contemporaneidade, inventando passados para dar lugar a um futuro único e homogêneo. Assim, o fato de que os princípios legais vigentes na sociedade civil deste lado da linha não se aplicam ao outro lado não compromete sua universalidade.

A mesma cartografia abissal é constitutiva do conhecimento moderno. Mais uma vez, a zona colonial é por excelência o universo das crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que de forma alguma podem ser considerados como conhecimento e por isso estão para além do verdadeiro e do falso. O outro lado da linha alberga apenas práticas mágicas ou idolátricas, cuja completa estranheza conduziu à própria negação da natureza humana de seus agentes. Com base nas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidade humana, os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os selvagens eram subumanos. A questão era: os índios têm alma? Quando o papa Paulo III respondeu afirmativamente em sua bula Sublimis Deus, de 1537, fê-lo concebendo a alma dos povos selvagens como um receptáculo vazio, uma anima nullius, muito semelhante à terra nullius15, o conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e a ocupação dos territórios indígenas. Com base nessas concepções abissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da tensão entre regulação e emancipação, aplicada a este lado da linha, não entra em contradição com a tensão entre apropriação e violência, aplicada ao outro lado da linha.

A apropriação e a violência assumem formas diferentes nas linhas abissais jurídica e epistemológica, mas em geral a apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física, material, cultural e humana. Na prática, é profunda a ligação entre a apropriação e a violência. No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias e de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão até a pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, ao passo que a violência é exercida mediante a proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, a adoção forçada de nomes cristãos, a conversão e a destruição de símbolos e lugares de culto e a prática de todo tipo de discriminação cultural e racial.

No tocante ao direito, a tensão entre apropriação e violência é particularmente complexa em virtude de sua relação direta com a extração de valor: tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador do direito e das autoridades tradicionais por meio do governo indireto (indirect rule), pilhagem de recursos naturais, deslocação maciça de populações, guerras e tratados desiguais, diferentes formas de apartheid e assimilação forçada etc. Enquanto a lógica da regulação/emancipação é impensável sem a distinção matricial entre o direito das pessoas e o direito das coisas, a lógica da apropriação/violência reconhece apenas o direito das coisas, sejam elas humanas ou não. A versão extrema desse tipo de direito, irreconhecível deste lado da linha, é o direito de propriedade pessoal do Estado Livre do Congo pelo rei Leopoldo II da Bélgica [a partir de 1885]16.

Existe portanto uma cartografia moderna dual nos âmbitos epistemológico e jurídico. A profunda dualidade do pensamento abissal e a incomensurabilidade entre os termos da dualidade foram implementadas por meio das poderosas bases institucionais — universidades, centros de pesquisa, escolas de direito e profissões jurídicas — e das sofisticadas linguagens técnicas da ciência e da jurisprudência. O outro lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e da ilegalidade e para além do verdade e da falsidade. Juntas, essas formas de negação radical produzem uma ausência radical: a ausência de humanidade, a subumanidade moderna. Assim, a exclusão se torna simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres subumanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social (a suposta exterioridade do outro lado da linha é na verdade a conseqüência de seu pertencimento ao pensamento abissal como fundação e como negação da fundação). A humanidade moderna não se concebe sem uma subumanidade moderna17. A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para que a outra parte da humanidade se afirme como universal (e essa negação fundamental permite, por um lado, que tudo o que é possível se transforme na possibilidade de tudo e, por outro, que a criatividade do pensamento abissal banalize facilmente o preço da sua destrutividade).

Meu argumento é que essa realidade é tão verdadeira hoje quanto era no período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que separam o mundo humano do mundo subumano, de tal modo que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. As colônias representam um modelo de exclusão radical que permanece no pensamento e nas práticas modernas ocidentais tal como no ciclo colonial. Hoje, como então, a criação e a negação do outro lado da linha fazem parte de princípios e práticas hegemônicos. Atualmente, Guantánamo representa uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídico abissal, da criação do outro lado da fratura como um não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia18. Contudo, seria um erro considerá-la exceção. Existem muitas Guantánamos, desde o Iraque até a Palestina e Darfur. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discriminações sexuais e raciais, quer na esfera pública, quer na privada: nas zonas selvagens das megacidades, nos guetos, nas prisões, nas novas formas de escravidão, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho infantil, na exploração da prostituição.

Neste artigo, começo por argumentar que a tensão entre regulação e emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violência, e de tal maneira que a universalidade da primeira tensão não é questionada pela existência da segunda. Em seguida, sustento que as linhas abissais ainda estruturam o conhecimento e o direito modernos e são constitutivas das relações e interações políticas e culturais que o Ocidente protagoniza no interior do sistema-mundo. Em suma, meu argumento é o de que a cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia literal das linhas que separavam o Velho do Novo Mundo. A injustiça social global está assim intimamente ligada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta pela justiça social global também deve ser uma luta pela justiça cognitiva global. Para ser bem-sucedida, essa luta exige um novo pensamento — um pensamento pós-abissal, cujas características apresento na parte final do artigo.

 

A DIVISÃO ABISSAL ENTRE REGULAÇÃO/EMANCIPAÇÃO E APROPRIAÇÃO/VIOLÊNCIA

A permanência das linhas abissais globais ao longo de todo o período moderno não significa que elas tenham se mantido fixas, já que historicamente sofreram deslocamentos. No entanto, em cada momento histórico elas são fixas e sua posição é fortemente vigiada e preservada, assim como sucedia com as "linhas de amizade". Nos últimos sessenta anos essas linhas sofreram dois grandes abalos. O primeiro teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de independência das antigas colônias19. O outro lado da linha sublevou-se contra a exclusão radical à medida que os povos que haviam sido sujeitos ao paradigma da apropriação/violência se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no paradigma da regulação/emancipação20 . Durante algum tempo o paradigma da apropriação/violência parecia estar chegando ao fim, bem como a divisão abissal entre este lado da linha e o outro lado da linha. Os deslocamentos das linhas globais epistemológica e jurídica pareciam convergir para o encolhimento e finalmente para a eliminação do outro lado da linha, mas não foi isso o que aconteceu, como mostram a teoria da dependência, a teoria do sistema-mundo moderno e os estudos pós-coloniais21.

O segundo abalo das linhas abissais — no qual concentro minha atenção neste texto —vem ocorrendo desde os anos 1970 e segue na direção oposta. Desta feita, o movimento das linhas globais se dá de tal forma que o outro lado da linha parece estar se expandindo enquanto este lado da linha parece se encolher. A lógica da apropriação/violência passa a ganhar força em detrimento da lógica da regulação/emancipação numa extensão tal que o domínio desta última não só se encolhe, como também se contamina internamente pela primeira. A complexidade desse movimento nos é difícil de divisar se não conseguimos nos abstrair do fato de que o estamos olhando desde este lado da linha. Para captar sua totalidade é necessário um grande esforço de descentramento, e nenhum estudioso pode fazê-lo sozinho, como indivíduo. Com base num esforço coletivo para desenvolver uma epistemologia das regiões periféricas e semiperiféricas do sistema-mundo22, argumento que esse movimento é composto de um movimento principal, que designo como "regresso do colonial e do colonizador", e por um contramovimento que designo como "cosmopolitismo subalterno".

REGRESSO DO COLONIAL E DO COLONIZADOR Nesse movimento, o "colonial" é uma metáfora daqueles que entendem que suas experiências de vida ocorrem do outro lado da linha e se rebelam contra isso. O regresso do colonial é a resposta abissal àquilo que é percebido como uma intromissão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas. Esse regresso assume três formas principais: a do terrorista, a do imigrante indocumentado e a do refugiado23. De maneiras distintas, cada um deles traz consigo a linha abissal global que define a exclusão radical e a inexistência jurídica. A nova onda de leis de imigração e de legislação antiterrorismo, por exemplo, segue a lógica reguladora do paradigma "apropriação/violência" em muitas de suas disposições24. O regresso do colonial não significa necessariamente sua presença física nas sociedades metropolitanas. Basta que tenha uma ligação relevante com elas. No caso do terrorista, essa ligação pode ser estabelecida pelos serviços secretos. No caso do trabalhador imigrante indocumentado, basta que seja um subempregado numa das muitas centenas de sweatshops, as manufaturas subcontratadas por corporações metropolitanas multinacionais que operam no Sul global25. No caso dos refugiados, a ligação é estabelecida mediante a solicitação do status de refugiado numa dada sociedade metropolitana.

O colonial que regressa é de fato um novo colonial abissal. Desta feita, o colonial retorna não só aos antigos territórios coloniais mas também às sociedades metropolitanas. Aqui reside a grande transgressão, pois o colonial do período colonial clássico não podia ingressar nas sociedades metropolitanas, a não ser por iniciativa do colonizador (como escravo, por exemplo). Os espaços metropolitanos que se encontravam demarcados desde o início da modernidade ocidental deste lado da linha estão sendo invadidos ou perpassados pelo colonial. Mais ainda, o colonial demonstra um nível de mobilidade imensamente superior ao dos escravos fugidos26. Nessas circunstâncias, o abissal metropolitano se vê confinado a um espaço cada vez mais limitado e reage remarcando a linha abissal. Na sua perspectiva, a nova intromissão do colonial tem de ser confrontada com a lógica ordenadora da "apropriação/violência". Chegou ao fim o tempo de uma divisão nítida entre o Velho e o Novo Mundo, entre o metropolitano e o colonial. A linha tem de ser desenhada a uma distância curta o bastante para garantir a segurança. O que costumava pertencer inequivocamente a este lado da linha é agora um território confuso, atravessado por uma linha abissal sinuosa. O muro segregativo erguido por Israel na Palestina27 e a categoria "combatente inimigo ilegal"28, criada pela administração norte-americana após o 11 de Setembro, possivelmente constituem as metáforas mais adequadas da nova linha abissal e da cartografia confusa que ela gera.

Uma cartografia confusa não pode deixar de levar a práticas confusas. A "regulação/emancipação" é cada vez mais desfigurada pela presença e pela crescente pressão da "apropriação/violência" em seu interior. Mas nem a pressão nem a desfiguração podem ser percebidas por inteiro, precisamente pelo fato de que o outro lado da linha foi desde sempre incompreensível em seu atributo de território subumano29. De formas distintas, o terrorista e o trabalhador imigrante indocumentado são ambos ilustrativos da pressão da lógica da apropriação/violência e da inabilidade do pensamento abissal para se aperceber dessa pressão como algo estranho à "regulação/emancipação". Cada vez se torna mais evidente que as legislações antiterrorismo promulgadas em muitos países — seguindo a Resolução 1.566 do Conselho de Segurança da ONU, de 8/10/200430, e sob forte pressão de Washington — esvaziam o conteúdo civil e político dos direitos e das garantias básicas das constituições nacionais. Visto que tudo isso ocorre sem que haja uma suspensão formal desses direitos e garantias, estamos assistindo à escalada do estado de exceção, que, à diferença do estado de sítio ou do estado de emergência, restringe os direitos democráticos sob o pretexto da sua salvaguarda ou mesmo expansão31.

De forma mais ampla, parece que a modernidade ocidental só poderá se expandir globalmente na medida em que viole todos os princípios sobre os quais fez assentar a legitimidade histórica do paradigma da regulação/emancipação deste lado da linha. Assim, direitos humanos são violados para que possam ser defendidos, a democracia é destruída para que se garanta sua salvaguarda e a vida é eliminada em nome da sua preservação. Linhas abissais são traçadas tanto no sentido literal quanto no metafórico. No sentido literal, são linhas que demarcam fronteiras como vedações32 e campos de morte; dividem cidades em zonas civilizadas (condomínios fechados em profusão33) e zonas selvagens, e distinguem prisões como locais de detenção legal e à margem da lei34.

O outro lado do movimento em questão é o "regresso do colonizador", que implica o ressuscitamento de formas de governo colonial tanto nas sociedades metropolitanas — agora incidindo sobre a vida dos cidadãos comuns — como naquelas anteriormente sujeitas ao colonialismo europeu. A expressão mais saliente desse movimento pode ser concebida como uma nova forma de governo indireto35, que emerge em diversas situações em que o Estado se retira da regulação social e os serviços públicos são privatizados, de modo que poderosos atores não-estatais adquirem controle sobre a vida e o bem-estar de vastas populações. A obrigação política que ligava o sujeito de direito ao Rechtstaat, o Estado constitucional moderno, antes prevalecente neste lado da linha, passou a ser substituída por obrigações contratuais privadas e despolitizadas, nas quais a parte mais fraca se encontra mais ou menos à mercê da parte mais forte. Essa forma de governo apresenta algumas semelhanças perturbadoras com o governo da apropriação/violência que historicamente prevaleceu do outro lado da linha.

Tenho descrito essa situação como a ascensão do fascismo social, um regime social de relações de poder extremamente desiguais, que concedem à parte mais forte poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca. Noutro lugar distingui cinco formas de fascismo social36. Aqui me refiro a três delas, que refletem mais claramente a pressão da lógica da apropriação/violência sobre a lógica da regulação/emancipação. A primeira forma é o fascismo do apartheid social. Trata-se da segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são as zonas do estado de natureza hobbesiano, as zonas de guerra civil interna existentes em muitas megacidades em todo o Sul global. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defenderem, transformam-se em castelos neofeudais, os enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana (cidades privadas ou condomínios fechados). A divisão entre zonas selvagens e civilizadas está se transformando em um critério geral de sociabilidade, em um novo espaço-tempo hegemônico que perpassa todas as relações sociais, econômicas, políticas e culturais e que por isso é comum aos âmbitos estatal e não-estatal.

A segunda forma é o fascismo contratual. Ocorre nas situações em que a diferença de poder entre as partes do contrato de direito civil (seja ele um contrato de trabalho ou um contrato de fornecimento de bens ou serviços) é de tal ordem que a parte mais fraca, vulnerabilizada por não ter alternativa ao contrato, aceita as condições que lhe são impostas pela parte mais poderosa, por mais onerosas e despóticas que sejam. O projeto neoliberal de transformar o contrato de trabalho num contrato de direito civil como qualquer outro configura uma situação de fascismo contratual. Essa forma de fascismo ocorre hoje freqüentemente nas situações de privatização de serviços públicos como os de saúde, segurança social, abastecimento de água etc.37. Nesses casos, o contrato social que orientava a produção de serviços públicos no Estado-Providência e no Estado desenvolvimentista é reduzido ao contrato individual do consumo de serviços privatizados. À luz das deficiências da regulação pública, essa redução preconiza a eliminação do âmbito contratual de aspectos decisivos para a proteção dos consumidores, de modo que esses aspectos se tornam extracontratuais e ficam à mercê da benevolência das empresas. Ao assumirem poderes extracontratuais, as agências de serviços privadas ou paraestatais assumem as funções de regulação social anteriormente exercidas pelo Estado. Este, implícita ou explicitamente, subcontrata a essas agências o desempenho dessas funções, e ao fazê-lo sem a participação efetiva e mesmo o controle dos cidadãos torna-se conivente com a produção social de fascismo contratual.

A terceira forma de fascismo social é o fascismo territorial. Ocorre sempre que atores sociais com forte capital patrimonial tomam do Estado o controle do território onde atuam ou neutralizam esse controle, cooptando ou violentando as instituições estatais e exercendo a regulação social sobre os habitantes do território sem a participação destes e contra os seus interesses. Na maioria dos casos, trata-se de novos territórios coloniais privados dentro de Estados que quase sempre estiveram sujeitos ao colonialismo europeu. Sob diferentes formas, a usurpação original de terras como prerrogativa do conquistador e a subseqüente "privatização" das colônias encontram-se presentes na reprodução do fascismo territorial e, mais geralmente, nas relações entre terratenentes e camponeses sem terra. As populações civis residentes em zonas de conflitos armados também se encontram submetidas ao fascismo territorial38.

O fascismo social é a nova forma do estado de natureza, e prolifera à sombra do contrato social sob duas formas: pós-contratualismo e pré-contratualismo. O pós-contratualismo é o processo pelo qual grupos e interesses sociais são excluídos do contrato social sem nenhuma perspectiva de regresso: trabalhadores e membros das classes populares em geral são expulsos do contrato social em virtude da eliminação dos seus direitos econômicos e sociais, tornando-se assim populações descartáveis. O pré-contratualismo consiste no bloqueamento do acesso à cidadania a grupos sociais que tinham a expectativa fundamentada de nela ingressar: por exemplo, a juventude urbana dos guetos das megacidades do Norte e do Sul globais39. Como regime social, o fascismo social pode coexistir com a democracia política liberal. Ele a banaliza a ponto de não ser necessário, nem sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o capitalismo. Trata-se pois de um fascismo pluralista, e por isso de uma forma de fascismo inédita. De fato, creio que talvez estejamos entrando num período em que as sociedades são politicamente democráticas e socialmente fascistas.

As novas formas de governo indireto constituem também a segunda grande transformação da propriedade e do direito de propriedade na era moderna. Como apontei de início, a propriedade dos territórios do Novo Mundo fundamentou o estabelecimento das linhas abissais modernas. A primeira transformação teve lugar quando a propriedade sobre as coisas se expandiu, com o capitalismo, perante a propriedade sobre os meios de produção. Como bem descreveu Karl Renner, o proprietário das máquinas se tornou proprietário da força de trabalho que nelas operava, de modo que o controle sobre as coisas se converteu em controle sobre as pessoas40. Evidentemente, Renner negligenciou o fato de que essa transformação não ocorreu nas colônias, já que nelas o controle sobre as pessoas era a forma original do controle sobre as coisas, compreendendo tanto as coisas não-humanas como as humanas. A segunda grande transformação da propriedade tem lugar muito além da produção, quando a propriedade de serviços se torna um meio de controlar as pessoas que deles necessitam para sobreviver. Recorrendo aqui à caracterização do governo colonial na África proposta por Mamdani, o novo governo indireto promove um despotismo descentralizado41. O despotismo descentralizado não conflita com a democracia liberal; antes, torna-a cada vez mais irrelevante para a qualidade de vida de populações cada vez mais vastas.

Sob as condições do novo governo indireto, o pensamento abissal moderno, mais do que regular os conflitos sociais entre cidadãos, é solicitado a suprimir os conflitos sociais e a ratificar a impunidade deste lado da linha, como sempre ocorreu do outro lado da linha. Pressionado pela lógica da apropriação/violência, o próprio conceito de direito moderno — uma norma universalmente válida que emana do Estado e é por ele imposta coercitivamente caso necessário — encontra-se em transformação. Entre as mudanças conceituais em curso verifica-se a proposição de uma modalidade de regulamentação eufemisticamente denominada "lei branda" (soft law)42. Apresentada como a manifestação mais benevolente do ordenamento "regulação/ emancipação", essa forma de regulamentação traz consigo a lógica da apropriação/violência sempre que estejam em jogo relações de poder muito desiguais. Trata-se de uma lei cujo cumprimento é voluntário. Sem surpresa, vem sendo aplicada, em meio a outros âmbitos sociais, no campo das relações capital/trabalho, e sua versão mais cabal é a dos códigos de conduta recomendados às multinacionais metropolitanas na subcontratação de serviços às "suas" sweatshops em todo o mundo. Essa forma de lei — eufemisticamente denominada "branda" por ser branda com aqueles cujo comportamento empreendedor é considerado regular (empregadores) e dura com aqueles que sofrem as conseqüências do seu não-cumprimento (trabalhadores) — apresenta semelhanças intrigantes com o direito colonial, cuja aplicação dependia mais da vontade do colonizador do que de qualquer outra coisa. As relações sociais que ela regula são, se não um novo estado de natureza, uma zona intermédia entre o estado de natureza e a sociedade civil, onde o fascismo social prolifera e floresce.

Em suma, o pensamento abissal moderno, que deste lado da linha era chamado a regular as relações entre cidadãos e entre estes e o Estado, é agora chamado, nos domínios sociais sujeitos a uma maior pressão por parte da lógica da apropriação/violência, a lidar com os cidadãos como se fossem não-cidadãos e com os não-cidadãos como se fossem perigosos selvagens coloniais. Assim como o fascismo social coexiste com a democracia liberal, o estado de exceção coexiste com a normalidade constitucional, a sociedade civil coexiste com o estado de natureza e o governo indireto coexiste com o primado do direito. Longe de ser a perversão de alguma regra normal, fundadora, esse estado de coisas constitui o projeto original da epistemologia e da legalidade modernas, ainda que a linha abissal entre o metropolitano e o colonial tenha se deslocado, transformando o colonial numa dimensão interna do metropolitano.

COSMOPOLITISMO SUBALTERNO À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a idéia de que o pensamento abissal continuará a auto-reproduzir-se — por mais excludentes que sejam as práticas que origina — a menos que se defronte com uma resistência ativa. Assim, a resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito de início, não existe justiça social global sem justiça cognitiva global. Isso significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas: ela requer um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal. Será isso possível? Existirão as condições que, se devidamente aproveitadas, poderão propiciar sua emergência? A investigação sobre essas condições explica minha especial atenção ao contramovimento acima mencionado, resultante do abalo que as linhas abissais globais vêm sofrendo desde os anos 1970 e o qual designei como "cosmopolitismo subalterno"43.

Apesar de seu caráter por ora claramente embrionário, o cosmopolitismo subalterno contém uma promessa real. De fato, para captá-lo é necessário realizar aquilo que chamo de "sociologia das emergências"44, a qual consiste numa amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido referentes tanto à compreensão como à transformação do mundo. O cosmopolitismo subalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e organizações que configuram a globalização contra-hegemônica, lutando contra a exclusão social, econômica, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global, conhecida como "globalização neoliberal"45. Tendo em mente que a exclusão social sempre é produto de relações de poder desiguais, essas iniciativas são animadas por um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão — compreendendo a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos —, e como tal baseado simultaneamente nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença. Desde o início deste século, o Fórum Social Mundial tem sido a expressão mais cabal da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismo subalterno46. Entre as entidades que dele participam, os movimentos indígenas são, do meu ponto de vista, aqueles cujas concepções e práticas representam a mais convincente emergência do pensamento pós-abissal, o que é muito auspicioso para a possibilidade de um tal pensamento, já que os povos indígenas são os habitantes paradigmáticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma "apropriação/violência".

A novidade do cosmopolitismo subalterno reside acima de tudo em seu profundo sentido de incompletude, sem contudo ambicionar a completude. Por um lado, defende que a compreensão do mundo excede largamente a compreensão ocidental do mundo, e que a nossa compreensão da globalização, portanto, é muito menos global do que a própria globalização. Por outro lado, defende que quanto mais compreensões não-ocidentais forem identificadas mais evidente se tornará o fato de que ainda restam muitas outras por identificar, e que as compreensões híbridas — com elementos ocidentais e não-ocidentais — são virtualmente infinitas. O pensamento pós-abissal parte da idéia de que a diversidade do mundo é inesgotável e continua desprovida de uma epistemologia adequada, de modo que a diversidade epistemológica do mundo está por ser construída.

A seguir apresento um esquema geral do pensamento pós-abissal. Concentro-me nas suas dimensões epistemológicas, deixando de lado suas dimensões jurídicas.

 


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