Neblina Sobre Mannheim Bernhard Schlink e Walter Popp



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barriga e chorou ainda com mais força.

- O que é que se passa? - fiz-lhe festas no cabelo.

- Eu... Ora... Eu, isto é de ir às lágrimas. Vou-me embora amanhã.

- E é por isso que estás a chorar?

- É por tanto tempo. E é tão longe daqui.

Levantou o nariz.

- Por quanto tempo e para onde?

- Ora... Eu... - Controlou-se. - Tens um lenço? Vou passar seis meses ao Brasil. Por causa do meu filho.

Sentei-me novamente. Agora era eu que estava à beira das lágrimas. Ao mesmo tempo, sentia-me furioso.

- Por que é que não me contaste isso há mais tempo?

- Eu não fazia ideia de que isto se tornaria tão bom contigo.

- Não compreendo.

Ela pegou na minha mão.

- Eu e o Juan planeámos estes seis meses para ver se ainda conseguíamos viver juntos. O Manuel sente muito a falta da mãe. E contigo, pensei, era apenas um curto

episódio e estaria tudo acabado quando partisse para o Brasil.

- O que é que queres dizer com o facto de teres pensado que estaria tudo acabado quando partisses para o Brasil? Os bilhetes postais com o Pão-de-Açúcar não vão

modificar nada.

Sentia-me triste como um viúvo. Ela não disse mais nada e ficou a olhar o vazio. Depois de um bocado, tirei a minha mão das suas e levantei-me.

- É melhor ir-me embora agora.

Ela assentiu com a cabeça, sem dizer nada.

No corredor, ainda se apoiou em mim por um momento.

- De qualquer maneira, não posso continuar a ser a mãe-cuco que tu detestas.

24

De cabeça bem erguida



Tive uma noite sem sonhos. Acordei às seis horas, sabia que tinha de falar naquele dia com a Judith, e pensei no que deveria contar-lhe. Tudo? Como iria ela conseguir

continuar a trabalhar nas IQR e a viver como vivia? Mas esse era um problema que eu não podia resolver por ela. Às nove horas, telefonei-lhe.

- Cheguei ao fim do caso, Judith. Vamos dar um passeio pelo porto e conto-te?

- Não me está a soar bem. O que é que descobriste?

- Vou buscar-te às dez.

Pus café a fazer, tirei a manteiga do frigorífico, os ovos e o presunto, piquei cebolas e cebolinho, aqueci leite para o Turbo, espremi três laranjas, pus a mesa

e fiz dois ovos estrelados sobre o presunto e cebolas levemente refogadas. Quando os ovos estavam no ponto certo, polvilhei-os com cebolinho. O café estava pronto.

Fiquei sentado durante muito tempo diante do meu pequeno-almoço, sem lhe tocar. Pouco antes das dez bebi uns golos de café. Dei os ovos ao Turbo e saí.

Quando toquei à campainha, a Judith desceu logo. Estava linda no seu casaco de lã grossa com a gola levantada, tão linda como só se consegue quando se está triste.

Deixámos o carro perto dos escritórios do porto e caminhámos ao longo da Rua Rheinkai, por entre os edifícios dos caminhos-de-ferro e os antigos armazéns. Sob o

céu cinzento de Setembro, estava tudo numa quietude dominical. Os tractores John Deere estavam parados como se esperassem o começo de uma missa campal.

- Começa lá a contar-me.

- O Firner não te contou nada da minha peripécia com os seguranças da fábrica, na quinta-feira à noite?

- Não. Acho que ele descobriu que eu andava com o Peter.

Comecei a contar a conversa que havia tido no dia anterior com o Korten, demorei-me mais tempo com a questão de saber se o velho Schmalz, como último elo de uma

cadeia de ordens muito eficiente, se teria excedido, armando-se megalo-manamente em salvador da fábrica, ou se teriam abusado dele, e também não poupei nos pormenores

do assassinato na ponte. Deixei muito claro que ia uma grande distância entre aquilo que eu sabia e aquilo que era possível provar.

A Judith caminhava com passos seguros ao meu lado. Tinha a cabeça bem erguida e com a mão esquerda mantinha a gola do casaco fechada contra o vento do Norte. Não

me interrompeu. Mas agora dizia-me com um pequeno sorriso, que me atingiu mais fortemente do que se ela tivesse chorado:

- Sabes, Gerhard, é tão absurdo. Quanto te pedi que descobrisses a verdade, pensei que ela iria ajudar-me. Mas sinto- me mais desamparada do que antes.

Invejei a Judith pela clareza da sua mágoa. A minha tristeza estava empapada com o sentimento de impotência, de culpa, porque, embora sem querer, tinha entregado

o Mischkey aos carrascos, com o sentimento de terem abusado de mim, e com o orgulho inadequado de ter levado tão longe o esclarecimento. Também me entristecia o

modo como o caso começara por nos aproximar, àjudith e a mim, e depois nos envolvera de tal maneira que nunca poderíamos voltar a aproximar-nos inocentemente.

- Envias-me a conta?

Ela não percebera que o Korten queria pagar a minha investigação. Quando lho expliquei, ainda se introverteu mais e disse:

- Isso diz mesmo bem com este caso. Também diria bem se eu fosse promovida e me tornasse secretária-chefe do Korten. Isto repugna-me tanto...

Entre o armazém com o número 17 e aquele com o número 19, virámos à esquerda e aproximamo-nos do Reno. Do outro lado, estava o arranha-céus das IQR. O Reno fluía,

largo e silencioso.

- O que é que devo fazer agora?

Eu não sabia a resposta. Se no dia seguinte ela conseguisse colocar a pasta dos documentos para serem assinados diante do Firner, como se não se tivesse passado

nada, então tudo continuaria como antes.

- O que é horrível é o Peter estar já tão longe, interiormente. Em casa, deitei fora tudo o que me lembrava dele, porque me fazia doer demasiado. Mas agora sinto

frio, na minha solidão arrumada.

Descemos ao longo do Reno. De repente, ela virou-se para mim, agarrou-me pelo casaco, abanou-me e gritou:

- Não podemos simplesmente resignar-nos com isto! - Com a mão direita descreveu um largo arco que abarcava a fábrica do outro lado. - Eles não podem safar-se assim!

- Não, eles não deviam poder, mas podem. Os poderosos sempre se safaram, ao longo da História. E, neste caso, talvez nem sequer se trate dos poderosos, mas apenas

de uma megalomania do Schmalz.

- Mas essa é que é realmente a força do poder: que não seja necessário agir pessoalmente, mas encontrar um megalómano qualquer que o faça. Isso não pode desculpá-los,

de maneira nenhuma.

Tentei explicar-lhe que não queria encontrar desculpas para ninguém, mas que simplesmente não podia continuar com a investigação.

- Tu também és um qualquer que faz o trabalho sujo para os poderosos. Agora, deixa-me só, eu sei o caminho de regresso.

Reprimi o meu impulso de a deixar e, em vez disso, disse:

- Isso é uma loucura. A secretária do director das IQR acusa o detective, que conduziu uma investigação para as IQR, de trabalhar para as IQR. Mas que arrogância.

Continuámos a andar. Depois de um bocado, ela enfiou o braço no meu.

- Antigamente, quando acontecia uma coisa má, tinha sempre a sensação de que tudo iria compor-se. A vida, quero eu dizer. Até mesmo depois do meu divórcio. Agora

sei que nada irá ser igual ao que era dantes. Conheces esta sensação?

Assenti com a cabeça.

- Olha, o que me fará melhor agora é andar mais um pouco por aqui, sozinha. Vai-te embora descansado. Não precisas de me olhar com esse ar preocupado, não vou fazer

nenhum disparate.

Na Rua Rheinkai, voltei a olhar para trás. Ela ainda não tinha dado um passo. Olhava as IQR sobre o recinto plano da fábrica antiga. O vento levava um saco vazio

de cimento pela rua.

Terceira Parte

1

Um marco na Jurisprudência



Depois de um longo e dourado final de Estio, o Inverno irrompeu rudemente. Não me recordo de nenhum Novembro mais frio. Não trabalhei muito. A investigação do caso

Sergej Mencke avançava a passo de caracol. A companhia de seguros fazia-se rogada em me enviar à América. O encontro com o mestre de bailet ocorrera durante os ensaios

e instruíra-me sobre danças indianas, que estavam nesse momento a ser ensaiadas, mas de resto apenas me mostrara que havia quem gostasse e quem não gostasse do Sergej,

e que o mestre de ballet pertencia a estes últimos. Durante duas semanas, o reumatismo atacou-me de tal maneira que não consegui fazer mais do que os esforços quotidianos

imprescindíveis. Para além disso, passeei muito, fui frequentemente à sauna e ao cinema, terminei de ler o Grúnen Heinrich, que deixara suspenso durante o Verão,

e vi a pelagem de Inverno do Turbo a crescer. Num sábado, encontrei ajudith no mercado. Já não trabalhava nas IQR, vivia do subsídio de desemprego e ajudava na livraria

feminista Xan-thippe. Ficámos de nos encontrar um dia, mas nenhum de nós deu o primeiro passo. Joguei com o Eberhard as partidas do campeonato mundial de xadrez

entre o Karpov e o Kasparov. Quando estávamos no último jogo, a Brigitte telefonou-me do Rio. A ligação zunia e fazia outros ruídos, e eu quase não a percebi. Acho

que disse que sentia a minha falta. Isso não me servia de nada.

Dezembro começou com uns inesperados dias de ventos quentes. No dia dois de Dezembro, o Tribunal Constitucional promulgou a inconstitucionalidade do registo directo

de emissões de poluentes em vigor em Baden-Wúrtenberg e na Renânia-Palatinado.

Censurava a violação da liberdade de informação das empresas e do direito ao livre exercício de uma actividade industrial, mas, ao fim e ao cabo, foi por uma questão

de competência que rejeitou est e regulamento. O conhecido redactor-chefe do Frankfurter Allgemeinen Zeitung festejava a decisão como um marco

da Jurisprudência, porque a protecção de dados fizera finalmente explodir as amarras da mera protecção do cidadão e conquistara a dimensão da protecção empresarial.

Apenas agora se revelava toda a importância da decisão para efectuar o recenseamento populacional.

Fiquei a pensar no que aconteceria à lucrativa actividade paralela do Gremlich. Iriam as IQR continuar a pagar-lhe para o manterem calado? Também me perguntei se

a Judith teria lido a notícia de Karlsruhe, e o que lhe teria passado pela cabeça ao lê-la. Se essa decisão tivesse sido tomada um ano mais cedo, não teriam existido

problemas entre o Mischkey e as IQR.

No mesmo dia encontrei na caixa do correio uma carta de São Francisco. Vera Múller era uma antiga habitante de Man-nheim, emigrara em 1936 para os EUA e ensinara

literatura europeia em diversas faculdades californianas. Havia alguns anos que estava reformada e lia, por nostalgia, o Mannheimer Morgen. Tinha-se admirado por

não ter tido resposta à sua primeira carta para o Mischkey. Reagira ao anúncio porque o destino da sua amiga judia, durante o Terceiro Reich, estava tristemente

enredado com as IQR. Achava que se tratava de um trecho da História recente sobre o qual deveriam existir mais investigações e publicações, e estava pronta a estabelecer

o contacto com a senhora Hirsch. Não queria provocar nenhuma aflição desnecessária, mas apenas estabelecer o contacto se o projecto de investigação fosse cientificamente

sólido e frutuoso sob o ponto de vista da consideração do passado. Pedia mais informações. Era a carta de uma senhora culta, redigida num alemão bonito, encantadoramente

arcaico e escrito com uma letra alcantilada e austera. Em Heidelberg, durante o Verão, vejo de vez em quando velhas turistas americanas com tons azulados no cabelo

branco, óculos de aros cor-de-rosa e maquilhagem garrida sobre a pele rugosa. Sempre me causou estranheza essa coragem de se apresentarem como caricaturas, expressão

de um desespero cultural. Ao ler a carta de Vera Múller, consegui imaginar subitamente uma dessas senhoras idosas como sendo interessante e fascinante, e descobri,

no seu desespero cultural, o cansaço sábio de povos há muito esquecidos. Escrevi-lhe dizendo que tentaria, em breve, ir ter com ela.

Telefonei às Seguradoras Reunidas de Heidelberg. Deixei ficar claro que sem a viagem à América apenas me restava escrever o relatório final e apresentar a conta.

Uma hora depois telefonou-me um responsável a dizer-me que podia partir.

Por isso, estava outra vez no caso Mischkey. Não fazia ideia do que ainda poderia descobrir. Mas ali estava aquela pista que se havia perdido e que agora aparecera

novamente. E com a luz verde das Seguradoras Reunidas de Heidelberg, podia segui-la com tanta facilidade que não tive de pensar muito no porquê e no fim a atingir.

Eram 15 horas, e verifiquei, com a ajuda da minha agenda de bolso, que eram 9 horas em Pittsburgh. Ficara a saber pelo mestre de ballet que os amigos do Sergej Mencke

trabalhavam no Pittsburgh State Ballet, e as informações telefónicas internacionais deram-me o respectivo número de telefone. A rapariga dos Correios estava muito

bem-disposta.

- Quer telefonar à pequena do Flashdance?

Eu não conhecia o filme.

- O filme presta para alguma coisa? Vale a pena ir vê-lo?

Ela tinha ido vê-lo três vezes. O telefonema internacional para Pittsburgh foi uma tortura por causa do meu mau inglês. Mas pelo menos consegui ficar a saber, pela

secretária do ballet que ambos os bailarinos passariam o mês de Setembro em Pittsburgh.

Combinei com a minha agência de viagens que receberia uma factura correspondente a um voo Lufthansa de Frankfurt para Pittsburgh mas que me reservariam um voo a

preços económicos de Bruxelas para São Francisco, com mudança de avião em Nova Iorque e uma saltada a Pittsburgh. No início de Dezembro nunca havia muito movimento

sobre o Atlântico. Reservaram-me um voo para quinta-feira de manhã.

Ao fim da tarde telefonei para São Francisco, a Vera Múller. Disse-lhe que tencionava escrever-lhe, mas que subitamente surgira a possibilidade de uma estada nos

EUA e que no fim-de-semana estaria em São Francisco. Ela disse que me anunciaria à senhora Hirsch, que ela própria estaria ausente de São Francisco durante o fim-de-semana,

mas que gostaria muito de estar comigo na segunda-feira. Anotei o endereço da senhora Hirsch: 410 Connecticut Street, Potrero Hill.

2

Com um estalo, apareceu a imagem



Recordava imagens de filmes antigos, de navios a chegarem a Nova Iorque, a passarem pela estátua da Liberdade e diante dos arranha-céus, e imaginara poder ver mesmo

a partir da pequena janela à minha esquerda, em vez da do convés de um navio a vapor. Mas o aeroporto situava-se muito longe da cidade, era frio e sujo, e fiquei

contente quando mudei e me sentei dentro do avião para São Francisco. As filas de cadeiras estavam de tal maneira perto que só se aguentava estar sentado com o assento

reclinado. Aquando da distribuição da refeição, as costas tinham de voltar à posição vertical e, provavelmente, a companhia só servia a comida para que ficássemos

contentes por podermos depois recostar-nos novamente.

Cheguei à meia-noite. Um táxi levou-me por uma auto-estrada de seis faixas para a cidade e o hotel. Sentia-me num estado miserável por causa da tempestade que o

avião havia atravessado. O moço do hotel que me transportou as malas até ao quarto ligou a televisão; com um estalo, apareceu a imagem. Um homem falava com uma impertinência

obscena. Mais tarde apercebi-me de que se tratava de um pregador.

Na manhã seguinte, o porteiro chamou-me um táxi, e eu saí para a rua. A janela do meu quarto dava para a parede de um edifício vizinho, e a manhã passada no quarto

fora cinzenta e silenciosa. Agora, as cores e os barulhos da cidade explodiam ao meu redor, sob um céu azul sem nuvens. A viagem sobre as colinas da cidade, pelas

ruas rectas que conduziam colina acima e depois se precipitavam para baixo, os solavancos rangentes das molas gastas do táxi quando passávamos num cruzamento de

ruas perpendiculares, as vistas para os arranha-céus, as pontes e um grande bosque, deixaram-me num estado semelhante ao da embriaguez.

A casa situava-se numa rua sossegada. Como todas as casas em redor, também era de madeira. Uma escada conduzia à porta de entrada. Subi-a e toquei à campainha. Um

ancião abriu-me a porta.

- Senhor Hirsch?

- O meu marido morreu há dez anos. Não tens de te desculpar, é frequente pensarem que sou um homem e já estou habituada. És o tal alemão de quem a Vera me falou,

não é verdade?

Talvez fosse da confusão ou do voo ou da viagem de táxi - devo ter desmaiado e voltei a mim quando a velhota me despejou um copo de água no rosto.

- Tiveste sorte em não teres caído pelas escadas abaixo. Quando conseguires, entra e eu sirvo-te um whisky.

Senti as entranhas a arder. A sala era mofenta e cheirava a velhice, a corpos velhos e a comida velha. Em casa dos meus avós também pairava o mesmo cheiro, lembrei-me

subitamente, e subitamente fiquei transido do medo de envelhecer que eu sempre reprimia.

A mulher estava sentada diante de mim e observava-me. A luz do sol entrava em faixas pelas persianas e caía sobre ela. Era totalmente calva.

- Queres falar comigo sobre Karl Weinstein, o meu marido. A Vera acha que é importante falar sobre o que se passou naquele tempo. Mas não são histórias bonitas.

O meu marido tentou esquecê-las.

Não me apercebi logo de quem era Karl Weinstein. Mas quando ela começou a falar, lembrei-me. Ela não sabia que não estava apenas a contar a sua história, mas também

a tocar no meu passado.

Falou com uma estranha voz monocórdica. Weinstein havia sido professor de química orgânica em Breslau, até 1933. Em 1941, quando foi enviado para um campo de concentração,

o seu antigo assistente, Tyberg, requisitou-o para os laboratórios das IQR e ficou na equipa deste. Weinstein até ficou muito contente por poder trabalhar novamente

na sua área e por lidar com alguém que o apreciava como cientista, que se lhe dirigia por "senhor professor" e que se despedia dele amavelmente, à noite, antes de

regressar, com os outros trabalhadores forçados da fábrica, ao acampamento de barracas.

- O meu marido não tinha muito sentido prático, e também não era muito corajoso. Não fazia ideia nenhuma, ou não queria fazer ideia nenhuma, do que se passava em

seu redor e do que o esperava.

- Esteve com ele nesse tempo das IQR?

- Encontrei o Karl no transporte para Auschwitz, em 1941. E outra vez depois do fim da guerra. Sabes, sou flamenga e primeiro consegui esconder-me em Bruxelas, até

eles me descobrirem. Eu era uma mulher bonita. Fizeram experiências médicas com a pele da minha cabeça. Penso que foi isso que me salvou a vida. Mas em 1945 eu era

velha e careca. Tinha vinte e três anos.

"Um dia, eles foram ter com o Weinstein, um da fábrica e um das SS. Disseram-lhe o que ele tinha de dizer perante a Polícia, o procurador do Ministério Público e

o juiz. Tratava-se de sabotagem, de um manuscrito que ele teria encontrado na secretária do Tyberg, de uma conversa que ele teria ouvido entre o Tyberg e um colaborador.

Voltei a ver diante de mim Karl Weinstein a ser conduzido ao meu gabinete, nas suas roupas de prisioneiro, e a prestar o seu testemunho.

- Primeiro, ele recusou-se. Era tudo mentira, e o Tyberg nunca o tratara mal. Mas eles mostraram-lhe como iriam espancá-lo até morrer. Nem sequer lhe prometeram

a vida, mas apenas que o deixariam sobreviver mais um pouco. Consegues imaginar isto? Depois, o meu marido foi transferido e simplesmente esquecido num outro campo

qualquer. Havíamos combinado um lugar de encontro, caso alguma vez tudo aquilo terminasse. Em Bruxelas, na Grand' Place. Fui lá parar por puro acaso, na Primavera

de 1946, e nunca mais voltara a pensar nele. Ele estava lá à minha espera, desde o Verão de 1945. Reconheceu-me logo, embora eu me tivesse tornado uma mulher velha

e careca. Quem é que poderia resistir?

Riu-se.

Não consegui contar-lhe que fora diante de mim que o Weinstein prestara o seu testemunho. Também não consegui contar-lhe a razão por que aquilo era tão importante



para mim. Mas eu tinha de saber. Por isso, perguntei-lhe:

- Tem a certeza de que o testemunho que o seu marido prestou era falso?

- Não compreendo, contei-lhe o que ele me contou. - Tornou-se distante. - Vá-se embora - disse -, vá-se embora.

3

Do not disturb



Desci a colina e fui parar às docas e aos armazéns da Bay. Não se viam táxis, nem autocarros, nem uma estação de Metro. Eu nem sequer tinha a certeza de haver Metro

em São Francisco. Segui em direcção aos arranha-céus. As ruas não tinham nome, apenas um número. Diante de mim avançava lentamente um pesado Cadillac preto. Parava

passo a passo, um negro num fato de seda cor-de-rosa saía, achatava com os pés uma lata de cerveja ou de cola e fazia-a desaparecer num grande saco de plástico azul.

Avistei uma loja a poucas centenas de metros de distância. Quando me aproximei, verifiquei que estava protegida por grades como se fosse uma fortaleza. Entrei à

procura de uma sanduíche e de um maço de Sweet Afton. As mercadorias estavam atrás de grades, a caixa lembrava-me um guiché de um banco. Não obtive nenhuma sanduíche

e ninguém sabia o que era Sweet Afton, e eu senti-me culpado embora não tivesse feito nada. Quando saí da loja com um maço de Chesterfield, passou por mim, no meio

da entrada, um comboio de mercadorias.

No molhe, encontrei uma loja de aluguer de automóveis e aluguei um Chevrolet. O banco da frente, corrido, tinha-me fascinado. Lembrava-me o Horch, em cujo banco

dianteiro a mulher do meu professor de latim me introduzira no amor. Com o carro, recebi um mapa da cidade com as 49 Mile Drive assinaladas. Consegui orientar-me

nele facilmente, graças às numerosas marcações. Encontrei um restaurante perto dos rochedos. Tive de ficar numa fila a entrada até ser conduzido a um lugar à janela.

Sobre o Pacífico levantava-se nevoeiro. O espectáculo cativou-me, como se por detrás do nevoeiro a rasgar-se se tornasse visível, por um instante, a costa do Japão.

Comi um bife de atum, uma batata envolvida em papel de alumínio e salada de alface. A cerveja chamava-se Anchor Steam e sabia quase ao mesmo que a cerveja com sabor

a fumo do Schlenkerla de Bamberg. O serviço era atencioso: a empregada enchia sempre a minha chávena de café de novo sem ser necessário pedir, e informava-se acerca

do meu bem-estar e de onde eu vinha. Também conhecia a Alemanha: uma vez tinha visitado o namorado em Baumholder.

Depois da refeição fui esticar as pernas; andei a trepar pelos rochedos e vi de repente diante de mim, mais bonita do que a recordava dos filmes, a Golden Gate Bridge.

Despi o casaco, dobrei-o, coloquei-o sobre uma pedra e sentei-me em cima dele. Ali, a costa caía abruptamente; debaixo de mim cruzavam-se veleiros coloridos, e um

cargueiro traçava o seu rumo tranquilo.

Tinha planeado viver em paz com o meu passado. Culpa, expiação, entusiasmo e cegueira, orgulho e cólera, moral e resignação - tinha conseguido manter tudo isso num

equilíbrio engenhoso. Dessa maneira, o passado tornara-se numa abstracção. Agora, a realidade havia-me apanhado e punha em perigo esse equilíbrio. Claro que tinha

deixado que abusassem de mim como procurador do Ministério Público, tinha aprendido isso depois da guerra. Podemos perguntar-nos se existem abusos melhores e piores.

Para mim, contudo, à partida, não era a mesma coisa ter-me tornado culpado ao serviço de algo presumivelmente grande e mau, ou terem-me usado como um estúpido labrego

ou, se preferirem, como oficial, no tabuleiro de xadrez de uma intriga pequena e mesquinha que eu ainda não conseguia compreender totalmente.

O que significava aquilo que a senhora Hirsch me contara? O Tyberg e o Dohmke, cujo processo eu instruíra naquele tempo, haviam sido condenados com base no falso


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