Neblina Sobre Mannheim Bernhard Schlink e Walter Popp



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- E agora, o que é que se vai passar? - perguntou ele.

- Vou entregar o meu relatório às IQR. O que eles farão, não sei.

- Consegue deixar a Judith de fora?

- Isso não é assim tão simples. De certa maneira, ela foi o engodo. Como é que poderei explicar o modo como consegui desmascará-lo?

- E tem mesmo de descrever o modo como me desmascarou? Não basta que eu simplesmente confesse ter conseguido entrar no sistema IGE?

Pensei nisso. Não acreditei que ele quisesse enganar-me e, sobretudo, não vi como poderia fazê-lo.

- Vou tentar. Mas não pense em me enganar. Senão, terei de anexar a outra parte do relatório.

Fomos ter com as duas mulheres ao parque de estacionamento. Estaria a ver a senhora Buchendorff pela última vez? Aquele pensamento provocou-me uma pontada.

- Até breve? - despediu-se ela. - A propósito, como vai o seu caso?

21

O nosso coraçãozinho de manteiga



O relatório para o Korten ficou pequeno. Apesar disso, precisei de cinco horas e de uma garrafa de Caberriet Sauvignon até terminar de o ditar, por volta da meia-noite.

Todo o caso voltou a passar diante de mim, e não era fácil deixar a senhora Buchendorff de fora.

Descrevi a ligação IQR-GRI como o flanco vulnerável do sistema IGE, através do qual não apenas as pessoas das IQR, mas também as que trabalhavam em empresas ligadas

ao CRI, poderiam penetrar. Usei a caracterização do CRI feita pelo Mischkey, de placa giratória da espionagem industrial. Aconselhei a desacoplagem do registo directo

dos valores das emissões do sistema central.

Depois descrevi de forma depurada o desenrolar da minha investigação, das minhas conversas e pesquisas na fábrica até a uma confrontação fictícia com o Mischkey,

em que ele reconhecia a sua participação nos ataques e se prontificava a repetir tudo numa confissão às IQR, com a explanação de pormenores técnicos.

Fui para a cama com a sensação de ter a cabeça vazia e pesada. Sonhei que jogava uma partida de ténis contra uma carruagem de comboio. O maquinista, com máscara

de gás e pesados sapatos de borracha, tentava tenazmente tirar-me o tapete, sobre o qual eu jogava, de debaixo dos pés. Quando o conseguiu, continuámos a jogar sobre

um chão vidrado, e debaixo de nós passavam velozmente as travessas. A minha parceira era uma mulher sem rosto, com selos pesados e pendentes. Eu tinha sempre medo

de que, com os seus movimentos possantes, ela pudesse quebrar o vidro. Quando isso aconteceu, acordei horrorizado e aliviado.

De manhã fui ao escritório de dois jovens advogados, na Rua Tattersall, cuja pouco ocupada secretária por vezes redige os meus relatórios. Os advogados jogavam no

seu terminal de computador. A secretária assegurou-me que teria o trabalho pronto às onze da manhã. Depois, no escritório, li o meu correio, constituído maioritariamente

por prospectos de sistemas de alarme e vigilância, e telefonei à senhora Schle-mihl.

Esta fez-se muito rogada, mas por fim consegui marcar o meu encontro com o Korten para o almoço, no Casino. Quando passei para ir buscar o relatório, marquei logo

na agência de viagens um voo para Atenas, para essa noite. Anna Breda-kis, uma amiga dos meus tempos de estudante universitário, pedira-me para a avisar com bastante

antecedência da minha chegada. Tinha de preparar o iate, herdado dos pais, para o nosso cruzeiro, e constituir uma tripulação a partir dos seus sobrinhos e sobrinhas.

Eu preferia andar a vaguear pelas tabernas do porto de Pireu, a ler no Mannheimer Morgen acerca da prisão do Mischkey e deixar que a senhora Buchendorff me completasse

a ligação telefónica com o Firner para que este me desse os parabéns pelo meu sucesso.

Cheguei meia hora atrasado ao almoço com o Korten, mas não consegui provar nada a ninguém com isso.

- É o senhor Selb? - perguntou-me um ser cinzento à entrada, que tinha posto demasiado rouge. - Então vou já avisar o senhor director-geral. Se quiser fazer o favor

de ter paciência.

Esperei no átrio. O Korten veio ter comigo e cumprimentou-me bruscamente.

- Não consegues avançar no caso, meu querido Selb? Terei de te ajudar?

Era o tom de voz com que o tio rico cumprimenta o sobrinho maçador que contrai dívidas e que vem mendigar dinheiro. Olhei-o, surpreendido. Ele podia ter muito que

fazer e estar tenso e enervado, mas enervado também eu estava.

- Tens de pagar a conta que também está dentro deste envelope. De resto, podes ouvir como resolvi o teu caso, mas se não quiseres, está bem.

- Não sejas tão sensível, meu querido, não tão sensível. Por que é que não disseste logo à senhora Schlemihl do que se tratava?

Agarrou-me no braço e tornou a levar-me para o Salão Azul. Os meus olhos procuraram em vão a ruiva das sardas.

- Então, resolveste o caso?

Fiz-lhe um resumo do conteúdo do meu relatório. Quando, ao comer a sopa, lhe falei nas falhas dos seus homens, ele assentiu com a cabeça, com um ar sério.

- Compreendes agora por que é que eu ainda não posso largar mão disto? São todos muito medíocres.

Não podia dizer nada contra isso.

- E como é que é esse tal, esse Mischkey? - perguntou ele.

- Como é que imaginas alguém que encomenda para a vossa fábrica cem mil macaquinhos Rhesus e apaga os números de conta começados por 13?

O Korten sorriu satisfeito.

- Exactamente - disse eu -, um pássaro engraçado e, além disso, um informático brilhante. Se ele fizesse parte do vosso Centro Informático, nunca teriam tido estas

avarias.


- E como é que apanhaste esse pássaro brilhante?

- O que tenho a dizer sobre isso, está no meu relatório. Não tenho vontade nenhuma de me alongar sobre o assunto. De resto, achei o Mischkey simpático, e não me

foi fácil ter de provar a sua culpa. Acharia bonito se não fossem muito severos, muito duros com ele. Compreendes o que eu quero dizer, não é verdade?

- Selb, o nosso coraçãozinho de manteiga - riu-se o Korten. - Nunca aprendeste a escolher entre fazer ou deixar totalmente de fazer algo.

Mais ponderado, acrescentou:

- Mas talvez isso seja exactamente o teu ponto forte. Sendo sensível, persegues coisas e pessoas, cuidas sensivelmente dos teus escrúpulos, e ao fim e ao cabo, funcionas.

Fiquei sem fala. Por que razão tanta agressividade e cinismo? A observação do Korten pusera o dedo onde me doía, e ele sabia disso e pestanejou, satisfeito.

- Não tenhas medo, meu querido Selb, não vamos partir nenhuma louça desnecessariamente. E aquilo que disse sobre ti... Eu admiro isso em ti, não me compreendas mal.

Ainda estava a fazer pior e olhou-me com indulgência. Mesmo que as suas palavras tivessem alguma coisa de verdade... A amizade não significa tratar com cuidado as

mentiras que o outro diz a si mesmo? Mas o que ele afirmava não era verdade. A ira subiu dentro de mim.

Já não quis nenhuma sobremesa. E também preferi beber o café no Café Gmeiner. E o Korten tinha de estar às duas numa reunião.

Fui de carro para Frankfurt, às oito da noite, e voei para Atenas.

Segunda Parte

1

Ainda bem que o Turbo gosta de caviar



Em Agosto, estava de novo em Mannheim. Sempre gostei de viajar nas férias, e as semanas no Egeu passaram-se sob um brilho azul especialmente intenso. Mas, desde

que envelheci, regresso a casa com mais prazer do que antes. Depois da morte da Klara renovei a decoração do meu apartamento. Durante o casamento não havia conseguido

fazer prevalecer o meu gosto, e por isso foi com cinquenta e seis anos que recuperei as alegrias da decoração que os outros gozam quando jovens. Gosto dos meus dois

pesados sofás de couro que custaram uma fortuna e que resistem ao gato, da antiga estante de farmácia onde estão os livros e os discos, e do beliche que mandei encastrar

no nicho do escritório. No regresso, também me alegro sempre pelo Turbo, que, embora eu saiba que é bem tratado pela vizinha, sofre a minha ausência do seu modo

silencioso.

Acabara de pousar as minhas malas e de abrir a porta, quando vi diante de mim, enquanto o Turbo se pendurava na perna das calças, uma gigantesca cesta que havia

sido deixada no chão da entrada.

A porta da casa do lado abriu-se e a senhora Weiland cumprimentou-me.

- Ainda bem que voltou, senhor Selb. Meu Deus, está muito bronzeado. O seu gato sentiu muito a sua falta, não é verdade, pequenino, pequenino, pequenino? Já viu

a cesta? Veio cá trazê-la há três semanas um motorista das IQR. É pena por causa das lindas flores. Ainda pensei se deveria pô-las numa jarra, mas agora também já

estariam murchas. O correio está, como de costume, em cima da sua secretária.

Agradeci e procurei refúgio da sua torrente de palavras atrás da porta da entrada.

A cesta tinha todas as mercearias finas de que eu gostava e de que eu não gostava, desde empada de fine gras até caviar Ma-lossol. Ainda bem que o Turbo gosta de

caviar. O cartão que vinha junto, com o logotipo da fábrica artisticamente concebido, estava assinado pelo Firner. As IQR agradeciam os meus preciosos serviços.

Também tinham pago. Encontrei na correspondência os meus extractos bancários, postais de férias do Eberhard e do Willy e as inevitáveis contas. Esquecera-me de dizer

para não me entregarem o Mannheimer Morgen; a senhora Wieland pusera os jornais numa pilha muito direita em cima da mesa da cozinha. Folheei-os antes de os meter

dentro do caixote do lixo, e saboreei o gosto insípido do tumulto político distante.

Desfiz as malas e pus uma máquina de roupa a lavar. Depois fiz as minhas compras, deixei que a mulher do padeiro, o açougueiro e o comerciante de mercadorias coloniais

admirassem o meu ar repousado, e perguntei por novidades, como se na minha ausência se tivessem passado coisas maravilhosas.

Era o tempo das férias escolares. As lojas e as estradas estavam mais vazias, o meu olhar de condutor de automóvel encontrava lugares para estacionar nos sítios

menos prováveis e sobre a cidade pairava um silêncio estival. Trouxera das férias aquela leveza que possibilita que se experimente a conhecida vizinhança de uma

maneira nova e diferente. Tudo isso me dava uma sensação de pairar que eu queria saborear. Adiei a ida ao escritório para a tarde. Inquieto, dirigi-me ao Kleinen

Rosengarten: estaria fechado para férias? Mas, ainda longe, vi o Giovanni com o guardanapo por cima do braço, de pé, à porta do jardim.

- Tu já retornar dos grega? Grega não bom. Anda, eu fazer-te spaguetti Gorgonzola.

- Si, Ittaker óptimo.

Estávamos a jogar o nosso jogo de "alemão-conversa-com-emigrante".

O Giovanni trouxe-me o frascatie falou-me de um novo filme.

- Era um papel mesmo para si, um assassino que também poderia ser detective privado.

Depois do spaguetti Gorgonzola, do café e da Sambuca, depois de uma horinha com o Súddeutschen nas instalações da torre do depósito de água, depois de um gelado

e de um outro café no Gmeiner, compareci no meu escritório. Não foi assim tão mau. O meu gravador de chamadas anunciara a minha ausência até àquele dia e não gravara

nenhuma mensagem. Na correspondência encontrei duas cartas, para além das comunicações da Associação Alemã dos Detectives, da notificação dos impostos, de folhetos

publicitários e de uma proposta para a assinatura do dicionário estatal evangélico. O Thomas propunha-me dar aulas numa cadeira do curso de Agente de Segurança Licenciado

na Universidade Técnica de Mannheim. As Seguradoras Unidas de Heidelberg pediam-me para as contactar logo que regressasse de férias.

Limpei um pouco do pó, folheei o correio, fui buscar a garrafa de Sambuca, a lata com os grãos de café e o copo à gaveta da secretária e servi-me. Embora me recuse

ao cliché do -whisky dentro da secretária do detective privado, tem de haver uma garrafa. Depois, registei um novo texto no meu gravador de chamadas, marquei uma

data com as Seguradoras de Heidelberg, adiei a resposta à proposta do Thomas para um outro dia e fui para casa. Passei a tarde e a noite na varanda e despachei insignificâncias.

Fiz contas com os extractos bancários e verifiquei que, com os trabalhos que fizera até agora, quase tinha atingido o que costumo ganhar num ano. E isto depois das

férias. Muito tranquilizante.

Consegui manter o meu estado de leveza ainda nas semanas seguintes. Trabalhei sem grande entusiasmo no caso de burla das Seguradoras que aceitara. O Sergej Mencke,

dançarino sofrível de ballet no Teatro Nacional de Mannheim, havia segurado as suas pernas por uma quantia elevada e pouco tempo depois partira uma delas, fazendo

uma fractura complicada. Nunca mais iria poder dançar. Estava em jogo um milhão, e a seguradora queria ter a certeza de que tudo se havia passado da maneira correcta.

Imaginar que alguém partisse intencionalmente a própria perna horrorizava-me. Quando eu era pequeno, a minha mãe contou-me, para ilustrar a força de vontade masculina,

que Inácio de Loiola, ao verificar que a perna soldara mal depois de partida, havia voltado a parti-la com um martelo. Sempre detestei automutiladores, o pequeno

espartano que deixou que a raposa lhe esventrasse a barriga, Mucius Scaevola, e Inácio de Loiola. Mas, por mim, poderiam receber todos um milhão, se com isso desaparecessem

dos livros escolares. O meu dançarino de ballet disse que partira a perna ao fechar a pesada porta do seu Volvo. Na noite em questão, tivera febre alta, mas apesar

disso aguentara dançar a sua cena e depois nunca mais voltara a estar bem em si. Por essa razão fechara a porta, embora a perna ainda estivesse do lado de fora.

Fiquei bastante tempo sentado no carro e tentei imaginar se uma coisa assim seria possível. Não poderia fazer muito mais porque o Teatro fechara para férias, o que

espalhara os seus colegas pelos quatro ventos.

Por vezes, pensava na senhora Buchendorff e no Mischkey. Não encontrara nada sobre aquele caso nos jornais. Quando uma vez passei casualmente pela Rua Rathenau,

as portadas do primeiro andar estavam fechadas.

2

Estava tudo bem com o carro



Foi por puro acaso que ouvi atempadamente a mensagem que ela deixou gravada numa tarde de meados de Setembro. Normalmente, ouço apenas à noite ou na manhã seguinte

as mensagens deixadas à tarde. A senhora Buchendorff telefonara à tarde e perguntara se ainda poderia falar comigo depois de sair do trabalho. Eu esquecera-me do

meu guarda-chuva, por isso tivera de voltar ao escritório, vi o sinal do atendedor de chamadas e telefonei-lhe. Combinámos um encontro às cinco horas. Ela tinha

uma voz sumida.

Pouco antes das cinco estava no meu escritório. Fiz café, lavei as chávenas, arrumei as pilhas de papéis sobre a minha secretária, desapertei um pouco o nó da gravata,

abri o primeiro botão da camisa, tornei a ajustar a gravata e empurrei as cadeiras à frente da minha secretária de um lado para o outro. Por fim, ficaram no sítio

onde estão sempre. A senhora Buchendorff foi pontual.

- Não sei se fiz bem em vir. Talvez esteja apenas a imaginar coisas.

Estava de pé, sem fôlego, ao lado da palmeira envasada. Sorriu, insegura. Estava pálida e tinha olheiras fundas debaixo dos Olhos. Quando a ajudei a tirar o casaco,

reparei na falta de naturalidade dos seus movimentos - estava uma pilha de nervos.

- Sente-se. Quer café?

- Há dias que só bebo café. Mas sim, por favor, dê-me uma chávena.

- Com leite e açúcar?

Ela estava ausente com os seus pensamentos e não respondeu. De súbito, olhou para mim com uma firmeza que reprimia violentamente as suas dúvidas e incertezas.

- Percebe alguma coisa de assassinatos?

Pousei as chávenas cuidadosamente e sentei-me atrás da minha secretária.

- Trabalhei em casos de assassinatos. Por que pergunta?

- O Peter morreu, o Peter Mischkey. Foi um acidente, dizem eles, mas eu não consigo acreditar nisso.

- Meu Deus!

Levantei-me e andei de um lado para o outro atrás da secretária. Sentia-me mal. No Verão, no court de ténis, destruíra um pedaço da vivacidade do Mischkey, e agora

ele estava morto.

Nessa altura, não destruíra eu também alguma coisa dela? Por que razão se dirigia agora a mim?

- O senhor só o viu uma vez, no jogo de ténis, e então ele jogou com tanto entusiasmo; também é verdade que conduzia como um louco, mas nunca tinha tido um acidente

e guiava sempre tão seguro e concentrado... Não bate certo com o que se diz que se passou.

Então ela não sabia nada do meu encontro com o Mischkey em Heidelberg. E não falaria daquela maneira do jogo de ténis se soubesse que tinha sido eu quem provara

a culpabilidade do Mischkey. Pelos vistos, ele não lhe tinha contado e ela não se apercebera de nada, nem mesmo como secretária do Firner. Eu não sabia o que pensar.

- Simpatizei muito com o Mischkey, e lamento muito a sua morte, senhora Buchendorff. Mas ambos sabemos que mesmo o melhor condutor não é imune a um acidente. Por

que razão acha que não foi um acidente?

- Conhece a ponte sobre a linha de caminho-de-ferro entre Eppelheim e Wieblingen? Foi onde tudo aconteceu, há duas semanas. Segundo o relatório da Polícia, o Peter

derrapou na ponte, partiu a vedação e caiu sobre a linha, não sobre a de passagem, mas sobre a do meio. Tinha o cinto de segurança posto, mas o carro esmagou-o debaixo

dele. Partiu o pescoço e morreu no local. - Soltou um soluço, tirou um lenço e assoou-se. - Peço desculpa. Ele fazia aquele caminho todas as quinta-feiras; depois

de fazer sauna na piscina de Eppelheim, ensaiava com o seu grupo em Wieblingen. Tinha jeito para a música, sabe, e era realmente bom ao piano. O troço da ponte é

quase uma linha recta, a estrada estava seca e a visibilidade era boa. Por vezes há nevoeiro, mas naquela noite não havia.

- Há testemunhas?

- A Polícia não encontrou nenhuma. E também já era tarde, por volta das 23 horas.

- O carro foi verificado por um perito?

- A Polícia diz que estava tudo bem com o carro.

Não era preciso fazer perguntas sobre o que sucedera ao Mischkey. Tinham-no levado para a morgue, e se ali tivessem verificado a presença de álcool no sangue ou

de um ataque de coração ou de algo do género, a Polícia tê-lo-ia dito à senhora Buchendorff. Por um instante, vi o Mischkey deitado sobre a mesa de pedra das autópsias.

Enquanto jovem assistente do Promotor, eu tivera de estar muitas vezes presente durante as autópsias. Veio-me à cabeça a imagem de como por fim enchiam a cavidade

abdominal dos cadáveres com algodão e os cosiam com grandes pontos.

- O enterro foi anteontem.

Reflecti durante alguns momentos.

- Diga-me, senhora Buchendorff, há mais algum motivo que a leve a desconfiar da versão do acidente?

- Nas últimas semanas, por vezes já não o reconhecia. Estava mal-humorado, reservado, ensimesmado, ficava muitas vezes em casa, quase não queria sair comigo. Uma

vez chegou mesmo a pôr-me fora da casa dele. E evitava responder às perguntas que lhe fazia. As vezes pensava que ele tinha outra, mas ao mesmo tempo estava mais

ligado a mim do que nunca. Tudo isto me confundiu completamente. Quando, uma vez, fiquei especialmente ciumenta... Talvez pense que não consigo lidar com as minhas

mágoas e que estou histérica. Mas o que se passou naquela tarde...

Servi-lhe café e lancei-lhe um olhar de incitamento.

- Foi numa quarta-feira em que nós os dois tínhamos resolvido tirar uma folga para voltarmos a ter mais tempo um para o outro. O dia começou logo mal; é verdade

que o que eu queria não era tanto que tivéssemos mais tempo um para o outro, mas que ele tivesse mais tempo para mim. Depois do almoço ele disse subitamente que

tinha de sair durante duas horas para ir ao Centro de Informática. Eu vi muito bem que aquilo não era verdade, fiquei desiludida, e irada, e senti a sua frieza,

e vi-o com a outra, e fiz uma coisa que acho verdadeiramente má - mordeu o lábio. - Segui-o de carro. Ele não se dirigiu para o Centro de Informática, mas para a

Rua Rohr-bach e subiu o monte pelo Steigenveg. Foi fácil segui-lo. Ia na direcção do cemitério Ehren. Tive sempre o cuidado de manter uma certa distância entre nós.

Quando cheguei ao cemitério, ele ja havia estacionado o carro e avançava pelo largo caminho central. O senhor conhece o cemitério Ehren, com aquele caminho que parece

conduzir ao céu, não conhece? No fim, há um bloco de arenito com a forma de um sarcófago rudemente talhado, quase do tamanho de um homem. Dirigia-se para lá. Eu

não percebia nada e mantive-me escondida atrás de árvores. Quando chegou quase ao pé do bloco de arenito, saíram de trás dele dois homens, rápida e silenciosamente,

como que do nada. O Peter olhou de um para o outro; parecia querer dirigir-se a um deles, mas sem saber a qual. Depois, tudo se passou muito depressa. O Peter virou-se

para a direita, o homem à sua esquerda deu dois passos, agarrou-o por trás e segurou-o. O homem da direita deu-lhe socos no estômago, uma e outra vez. Foi totalmente

irreal. Os homens não pareciam, de algum modo, muito empenhados, e o Peter não fez nenhuma menção de se defender. Talvez estivesse tão atordoado como eu. E tudo

acabou muito depressa. Quando comecei a correr, o homem que lhe batia ainda lhe tirou os óculos do nariz com um movimento quase delicado, deixou-os cair no chão

e pisou-os. Da mesma forma silenciosa e súbita como tudo se havia passado, soltaram o Peter e desapareceram novamente atrás do bloco de arenito. Ainda os ouvi correr

pela floresta durante algum tempo. Quando cheguei ao pé do Peter, este caíra e estava deitado enroscado de lado. Depois, eu... Mas isso agora não interessa. Ele

nunca me contou a razão por que foi ao cemitério Ehren e o espancaram. Também nunca me perguntou por que razão o tinha seguido.

Ficámos os dois calados. O que ela contara parecia ser o trabalho de profissionais, e eu compreendi por que razão ela duvidava da morte acidental do Peter.

- Não, não acho que esteja histérica. Há ainda mais alguma coisa que lhe tenha parecido estranha?

- Coisas sem importância, como, por exemplo, que ele tivesse recomeçado a fumar. E que deixasse murchar as plantas. Também deve ter tido um comportamento esquisito

com o seu amigo Pablo. Uma vez encontrei-me com este, no tempo em que já não sabia o que fazer, e ele também estava preocupado com o Peter. Estou contente por acreditar

em mim. Quando quis contar à Polícia aquilo que aconteceu no cemitério, ninguém mostrou interesse em ouvir.

- E agora quer que eu faça as investigações que a Polícia descurou?

- Sim. Penso que o senhor não é barato. Posso dar-lhe dez mil marcos, e a um preço desses gostaria de ter certezas sobre a morte do Peter. Precisa de um adiantamento?

- Não, senhora Buchendorff. Não preciso de nenhum adiantamento, e também não vou dizer-lhe agora se vou aceitar o caso. O que posso fazer é uma pré-investigação:

tenho de fazer perguntas, verificar pistas, e só depois poderei decidir se realmente entro a fundo no caso. Isso não será muito caro. Concorda?

- Muito bem, vamos fazer assim, senhor Selb.

Anotei alguns nomes, moradas e datas e prometi mantê-la ao corrente. Acompanhei-a até à porta. Lá fora continuava ainda a chover.

3

Um São Cristóvão de prata



O meu velho amigo na Polícia de Heidelberg é o comis-sário-chefe Nágelsbach. Está à espera de passar à reforma: desde que começou a trabalhar, aos quinze anos, como

estafeta do Ministério Público em Heidelberg, já construiu com pauzinhos de fósforo a catedral de Colónia, a Torre Eiffel, o Empire State Building, a Universidade


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