Para além do pensamento abissal boaventura de Sousa Santos



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PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL

Boaventura de Sousa Santos

RESUMO

Na primeira parte do ensaio, o autor argumenta que as linhas



cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pen-

samento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sis-

tema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria portanto estritamente associada à injustiça cognitiva

global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”.

PALAVRAS-CHAVE: 

emancipação social; exclusão social; epistemologia;

colonialismo; globalização.

SUMMARY


In the first part of the essay, the author states that the “abys-

sal” cartographical lines that used to demarcate the Old and the New World during colonial times are still alive in the

structure of modern occidental thought and remain constitutive of the political and cultural relations held by the con-

temporary world system. Global social iniquity would thus be strictly related to global cognitive iniquity, in such a way

that the struggle for a global social justice requires the construction of a “post-abyssal” thought.

KEYWORDS: 



social emancipation; social exclusion; epistemology;

colonialism; globalization.

71

NOVOS ESTUDOS  79 



❙❙ NOVEMBRO 2007    

[1]  Este texto foi apresentado em

diferentes versões no Fernand Brau-

del Center (Binghamton, Nova York)

e nas universidades de Glasgow, Vic-

toria (Canadá), Wisconsin-Madison

e Coimbra. Gostaria de agradecer os

comentários de Gavin Anderson,Ali-

son Phipps,Emilios Christodoulidis,

David Schneiderman, Claire Cutler,

Upendra Baxi, James Tully, Len

Kaplan, Marc Galanter, Neil Kome-

sar, Joseph Thome, Javier Couso,

Jeremy Webber, Rebecca Johnson,

John Harrington, Antonio Sousa

Ribeiro,Joaquin Herrera Flores,Con-

ceição Gomes e João Pedroso. Maria

Paula Meneses, além de comentar o

texto, auxiliou-me no trabalho de

pesquisa, pelo que lhe sou muito

grato. Este trabalho não teria sido

possível sem a inspiração das longas

conversas com Maria Irene Ramalho

sobre as relações entre as ciências

sociais e as ciências humanas.

O pensamento moderno ocidental é um pensa-

mento abissal

2

. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisí-



veis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distin-

ções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que

dividem a realidade social em dois universos distintos:o “deste lado da

linha” e o “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da

linha” desaparece como realidade,torna-se inexistente e é mesmo pro-

duzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qual-

quer modo de ser relevante ou compreensível

3

.Tudo aquilo que é pro-



duzido como inexistente é excluído de forma radical porque

permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão

considera como o “outro”. A característica fundamental do pensa-

mento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da

linha.O universo “deste lado da linha” só prevalece na medida em que

esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas

inexistência,invisibilidade e ausência não-dialética.

Das linhas globais a uma ecologia de saberes

1

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[2]  Não pretendo que o pensa-

mento moderno ocidental seja a

única forma de pensamento abissal.

Ao contrário, é muito provável que

existam ou tenham existido formas

de pensamento abissal fora do Oci-

dente. Não é meu propósito analisá-

las neste texto. Defendo apenas que,

abissais ou não, as formas de pensa-

mento não-ocidentais têm sido trata-

das de um modo abissal pelo pensa-

mento moderno ocidental. Também

não trato aqui do pensamento pré-

moderno ocidental nem das versões

do pensamento moderno ocidental

marginalizadas ou suprimidas por se

oporem às versões hegemônicas, as

únicas de que me ocupo aqui.

[3]  Sobre a sociologia das ausências

como crítica à produção de realidade

inexistente pelo pensamento hege-

mônico,ver Santos,Boaventura de S.



A crítica da razão indolente. São Paulo:

Cortez, 2002; “A critique of lazy rea-

son:against the waste of experience”.

In: Wallerstein, Immanuel (org.). The



modern world-system in the longue

durée. Boulder: Paradigm, 2004, pp.

157-97;A gramática do tempo: para uma



nova cultura política. São Paulo: Cor-

tez,2006.

[4] Essa 

tensão representa o outro

lado da discrepância moderna entre

as experiências atuais e as expectati-

vas quanto ao futuro,também expres-

sas no mote positivista “ordem e pro-

gresso”. O pilar da regulação social é

constituído pelos princípios do Es-

tado, da comunidade e do mercado,

enquanto o pilar da emancipação

consiste nas três lógicas da racionali-

dade: a racionalidade estético-ex-

pressiva das artes e da literatura, a

racionalidade instrumental-cogni-

tiva da ciência e da tecnologia e a

racionalidade moral-prática da ética e

do direito. Cf. Santos, Boaventura de

S. Toward a new common sense. Nova

York: Routledge, 1995; A crítica da

razão indolente,op.cit.

[5]  Ainda que de formas muito dis-

tintas, Pascal, Kierkegaard e Nietzs-

che foram os filósofos que mais a

fundo analisaram, e viveram, as anti-

nomias contidas nessa questão.Mais

recentemente, cabe mencionar Karl

Jaspers (Reason and anti-reason in our



time. New Haven: Yale University

Press, 1952; Basic philosophical wri-



tings. Athens: Ohio University Press,

1986; The great philosophers. Nova

York: Harcourt Brace, 1995) e Ste-

Para dar um exemplo baseado em meu próprio trabalho, venho

caracterizando a modernidade ocidental como um paradigma fun-

dado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais

4

. Essa dis-



tinção visível fundamenta todos os conflitos modernos,tanto em ter-

mos de fatos substantivos como de procedimentos. Mas a essa

distinção subjaz uma outra, invisível, na qual a anterior se funda: a

distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios colo-

niais.De fato,a dicotomia “regulação/emancipação” se aplica apenas

a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territó-

rios coloniais, aos quais se aplica a dicotomia “apropriação/violên-

cia”,por sua vez inconcebível de aplicar a este lado da linha.Contudo,

a inaplicabilidade do paradigma “regulação/emancipação” aos terri-

tórios coloniais não comprometeu sua universalidade. O pensa-

mento abissal moderno se destaca pela capacidade de produzir e radi-

calizar distinções. Por mais radicais que sejam essas distinções e por

mais dramáticas que possam ser as conseqüências de estar em um ou

outro de seus lados, elas pertencem a este lado da linha e se combi-

nam para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas. As

distinções intensamente visíveis que estruturam a realidade social

deste lado da linha se baseiam na invisibilidade das distinções entre

este e o outro lado da linha.

O conhecimento e o direito modernos representam as manifesta-

ções mais cabais do pensamento abissal.Dão-nos conta das duas prin-

cipais linhas abissais globais dos tempos modernos,as quais,embora

distintas e operando de modo diferenciado, são interdependentes.

Cada uma cria um subsistema de distinções visíveis e invisíveis de tal

modo que as últimas se tornam o fundamento das primeiras. No

campo do conhecimento,o pensamento abissal consiste na concessão

do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciên-

cia, em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a

teologia. Esse monopólio está no cerne da disputa epistemológica

moderna entre as formas de verdade científicas e não-científicas.Já que

a validade universal da verdade científica sempre é reconhecidamente

muito relativa — pois só pode ser estabelecida em relação a certos tipos

de objetos em determinadas circunstâncias e segundo determinados

métodos —, de que modo ela se relaciona com outras verdades possí-

veis que até podem reclamar um estatuto superior mas que não podem

ser estabelecidas conforme o método científico,como é o caso da razão

como verdade filosófica e da fé como verdade religiosa

5

? Essas tensões



entre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, vieram a

se tornar altamente visíveis, mas todas elas, como defendo, têm lugar

deste lado da linha. Sua visibilidade assenta na invisibilidade de for-

mas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma dessas moda-

lidades. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus,

72 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL

❙❙

Boaventura de Sousa Santos



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