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CFC (G): Estudios griegos e indoeuropeos

2009, 19 115-123

ISSN: 1131-9070

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Rodópis no país dos faráos:

Itinerário de uma hetera grega

Nuno S

IM

õ



ES

R

ODRIGUES



RESUMO  

Este estudo parte das referências de Heródoto a Rodópis, a famosa hetera de origem grega, e analisa a figura,

inserindo-a no seu contexto histórico e literário, tentando distinguir o que na sua composição é derivado da

factualidade histórica e o que é derivado da ficção. Acaba assim por concluir que a representação de Rodópis

veio a usufruir de ambos os extractos: da História e da Literatura.

Palavras-chave: Rodópis – hetera – Egipto grego.

ABSTRACT

This paper starts from Herodotus’ allusions to Rhodopis, the famous Greek hetaira, and studies the charac-

ter within its historical and literary context, trying to distinguish how much is in fact historic and how much

comes from fiction. It concludes that Rhodopis image was built with both: History and Literature.



Key words: Rhodopis – hetaira – Greek Egypt.

Universidade de Lisboa



Recibido: 4 de febrero de 2008

Aceptado: 28 de noviembre de 2008

No livro II das suas Histórias, dedicado ao Egipto, Heródoto dá a seguinte

notícia:

Também ele [Micerino] deixou uma pirâmide, mas muito menor do que a do seu

pai, pois faltam vinte pés para que cada uma das faces tenha três plethra. É quadrada,

construída até meio com pedra da Etiópia. Alguns de entre os Gregos acreditam que a

construção desta pirâmide se deveu a Rodópis, uma hetera. Mas eles estão enganados.

Essas pessoas parecem falar sem saber quem era na verdade Rodópis. Se soubessem,

não lhe atribuiriam a construção de tal pirâmide, na qual se gastaram, podemos dizê-

lo, incontáveis milhares de talentos. Nem sequer sabem que Rodópis viveu no tempo

do rei Amásis e não no de Micerino. Foi muito tempo depois dos reis que deixaram as

pirâmides em questão que Rodópis viveu. Ela era originária da Trácia, foi serva do

sâmio Iádmon, filho de Hefestopólio, e companheira de servidão de Esopo, o autor das

fábulas. A prova de que Esopo era servo de Iádmon está no facto de que quando os

Délfios pediram por diversas vezes que, através dos arautos, de acordo com um

oráculo divino, alguém reclamasse compensação pelo assassínio de Esopo, a única

pessoa que se apresentou foi Iádmon, um neto de Iádmon. Esopo foi, portanto, servo



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daquele Iádmon. Rodópis foi levada para o Egipto por Xanto de Samos. Tendo sido

levada para fazer negócio com o seu corpo, foi libertada a troco de uma grande

quantia, por um homem de Mitilene, chamado Cáraxo, filho de Escamandrónimo e

irmão de Safo, a poetisa. Rodópis conseguiu assim a sua liberdade, e ficou no Egipto.

Como era muito bela, ganhou muito dinheiro, uma quantia considerável para uma

Rodópis, mas não o suficiente para custear uma tão grande pirâmide. Não faz sentido

atribuir-lhe uma tão grande riqueza, até porque é ainda hoje possível, a quem o desejar,

contemplar um décimo da sua riqueza. De facto, Rodópis desejou deixar na Grécia, em

sua memória, uma oferenda diferente de todas as que anteriormente haviam já sido

feitas aos templos, dedicando-a Delfos. Com um décimo da sua riqueza, ela mandou

fazer tantos espetos de ferro quantos pôde, com capacidade para trespassarem um boi

e enviou-os para Delfos. Ainda hoje lá se encontram empilhados, por detrás do altar

consagrado pelas gentes de Quio, em frente do próprio santuário. É costume as heteras

de Náucratis serem muito atraentes. Aquela de quem falamos foi tão notável que todos

os Gregos ouviram o nome de Rodópis. Mais tarde, uma outra, chamada Arquídice, foi

na Grécia uma grande celebridade, apesar de não se falar dela tanto como de Rodópis.

Quanto a Caráxo, depois de ter libertado Rodópis e regressado a Mitilene, foi atacado

num poema por Safo. Chega de falar de Rodópis.

1

A história da hetera Rodópis surge no contexto da obra herodotiana como mais



uma das digressões características do autor, que contribuem para o enriquecimento

de informações com que brinda os seus leitores. A uma primeira leitura, a serva

trácia que havia conseguido a sua liberdade à custa da beleza parece constituir um

percurso, no geral, verosímil, sobre o qual a fama se teria instalado. Mas o passo de

Heródoto permite-nos algumas reflexões suplementares que gostaríamos de

partilhar.

A existência de referências a Esopo e a Safo no excerto em análise é pertinente.

Sobre Esopo, pouco podemos afirmar, visto que apenas se incluem informações

acerca da sua condição servil, bem como à convivência com Rodópis na servidão.

Apesar de esta ser também uma figura envolta em aspectos lendários, a alusão a

Esopo pretende garantir uma consistência verídica à figura da hetera, que não ficou

conhecida por qualquer tipo de produção intelectual, como acontece com a maioria

das figuras tornadas públicas no mundo grego antigo. De igual modo, a inclusão de

Safo pretende a confirmação dessa veracidade, mas com uma mais-valia. A nota

relativa à poetisa de Lesbos, que inclui a sua identificação como irmã do homem que

teria comprado a liberdade de Rodópis, depois de ela ter sido levada da Hélade para

o Egipto, permite-nos uma investigação suplementar.

Fragmentos de Safo mencionam o irmão da poetisa, Cáraxo, e também a sua

suposta hetera, mas a quem a poetisa designa por Dórica

2

. Num desses poemas, Safo



pede a Afrodite e às Nereides que façam com que o seu irmão atravesse o mar e lho

tragam de volta, a salvo e esquecido do amor por Dórica, que o traz transtornado

3

.

Talvez seja importante acrescentar que Safo pede ainda às deusas que se solvam



1

Hdt. 2, 134-135.

2

Sapph. frgs. 3; 5; 7; 15.



3

Sapph. frg. 5; ver Page (1955: 48-50); Bowra (1961: 209-211); Wilson (1996: 174-177).



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todos os erros do irmão e que ele lhe traga, doravante, honra



4

, como se ele tivesse

errado e desonrado a família. Poderá tratar-se, eventualmente, de uma alusão à

relações de Cáraxo com Dórica. Num outro poema, a poetisa sugere mesmo que

Cáraxo não volte a cair nas mãos de Dórica e que ela venha desse modo a vangloriar-

se de o ter seduzido duas vezes

5

. Mas onde estão os poemas que, segundo Heródoto,



Safo escreveu invectivando o irmão e a hetera? Se os houve, não chegaram até nós.

Apenas podemos confiar nas palavras do historiador de Halicarnasso para

acreditarmos que existiram. Por outro lado, quem era Dórica, se é sobre Rodópis que

Heródoto escreve?

Em Heródoto, encontramos elementos que nos permitem localizar Rodópis no

tempo. O historiador afirma que a hetera viveu na época de Amásis, faraó que reinou

no século 

VI

a.C., entre 570 e 526 a.C., o que coincide com o tempo de Safo, apesar



da grande margem de manobra que nos fica. Assim, esta informação coaduna-se com

a possibilidade de Rodópis ter sido a amada de Cáraxo, a Dórica mencionada por

Safo. Não é impossível que «Rodópis» não passasse de uma alcunha da hetera em

causa. Na verdade, no mundo grego, as prostitutas e as cortesãs eram

frequentemente conhecidas por nomes que derivavam das suas qualidades ou

capacidades «profissionais», como Dróside, a «Refrescante»; Quelidónion, «Como

a andorinha»; Glícera, a «Doce»; Boópis, «Rosto de bezerra»; Clepsidra, a

«Retentora de água»; ou Frine, «Sapo»

6

. «Rodópis» significa «Rosto de rosa», pelo



que nada obsta que esse fosse um «nome de guerra» escolhido pela hetera Dórica,

para assim ser conhecida no seu meio de acção. Por outro lado, não abandonamos a

hipótese de poder tratar-se de duas pessoas diferentes e que Heródoto apenas

confunda as personagens

7

. Mas, porque o faria?



Tendo em conta o período da fundação de Náucratis, a verosimilhança de

Rodópis ser uma grega levada para território colonial tem todo o sentido. Fornece-

nos, aliás, algumas indicações que nos permitem sustentar a ideia de que a

mobilidade feminina na Grécia arcaica era uma realidade, apesar de

desconhecermos como deixou a sua casa ou a de Iádmon; como foi para o Egipto

com Xanto; ou como se processou a sua provável venda

8

. Por outro lado, atribuir a



Rodópis uma fortuna conquistada graças às suas qualidades físicas e amorosas, em

território bárbaro, sugere um empreendedorismo que, ainda que possa ser não

factual, surge no horizonte como possibilidade real

9

.



Nuno Simões Rodrigues

4

«Que se solvam todos os erros que ele antes cometeu;…/ Que ele queira fazer a irmã



comparticipante da sua honra...», Sapph. frg. 5, em tradução de F. Lourenço.

5

Sapph. frg. 15.



6

Luc., DMeretr. 10, 2-4; Vanoyeke (1991: 57).

7

Por outro lado, a crítica de Heródoto à tradição relativa a Rodópis confirma o pensamento



etiológico e inquiridor do Autor. É mesmo provável que a anedota seja inserida no livro dedicado ao Egipto

precisamente como móbil de treino para a actividade crítica que é seu apanágio e daí concluir. Não

impossível que a tradição em torno de Rodópis circulasse na Grécia apenas como etiologia para os óbolos de

Delfos, mencionados pelo historiador.

8

O processo poderá ter sido semelhante ao que conhecemos para Neera. Sobre este assunto, ver



Curado (2004: 330-331).

9

Talvez a prostituição constituísse uma possibilidade real de os menos favorecidos e economicamente



dependentes se emanciparem.


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O que era Rodópis? Uma hetera? Os textos antigos atribuem-lhe essa designação,

o que, no contexto grego, parece indicar uma actividade específica. Num texto do

século 

IV

a.C., atribuído a Demóstenes, mas da autoria de Apolodoro, e produzido



no âmbito do célebre processo contra Neera, lemos o seguinte:

Com efeito, nós temos as heteras para o prazer. Temos as pallakai  para as

necessidades diárias com o corpo. E temos as esposas para uma descendência legítima

e como guardiãs fiéis do lar.

10

Neste passo, parece encontrar-se os vários tipos de mulheres que o homem grego



tinha à sua disposição. Mas, na verdade, ele está incompleto. Já para não referirmos

o problema da pederastia, que poderia ser associado ao universo enunciado, ali

faltam ainda as pornai. Se heteras eram sobretudo as companheiras, por norma

traduzidas por «cortesãs», as pallakai  eram as «amantes» ou «concubinas»,

mulheres livres ou não, mantidas pelos homens, numa relação mais ou menos

permanente

11

. A hetera era tida como uma «companheira» de homens em ocasiões



sociais que estavam vedadas a outras mulheres, ditas legítimas, as esposas e mães de

família, como os banquetes

12

. Era uma «mulher de amores livres, mas não uma mera



prostituta», como observa A.L. Curado

13

. Quanto às pornai, aquelas que mais



legitimamente poderemos designar como prostitutas, aquelas que vendem o corpo

ao prazer sexual dos homens, em parte, confundiam-se com as heteras. A palavra

implica mesmo uma conotação comercial. Mas, na verdade, a mesma mulher

poderia desempenhar as duas funções, o que exemplifica a complexidade da

realidade

14

. Rodópis poderia, por isso, ser uma hetera, tal como Heródoto a



classifica, mas também uma porne, cujo nome de trabalho seria «a do rosto de rosa»,

que ganhava dinheiro à custa da venda do seu corpo para relações sexuais, o que

fazia dela uma prostituta. O êxito do negócio terá assim sido hiperbolizado na

tradição, tal como reflectem as palavras de Heródoto. De igual modo, a menção de

Safo à honra sugere igualmente uma confirmação dessa hipótese, caso a Dórica dos

seus poemas seja a Rodópis de Heródoto.

A prostituição era um tipo de comércio que se podia encontrar no Egipto grego

como em qualquer outra parte do mundo antigo, apesar de as trabalhadoras desse

ofício não nos terem deixado muitos vestígios acerca dele

15

. Seja como for, o



percurso de Rodópis é testemunha da ideia de que era possível, a algumas mulheres,

entre os Gregos, não só sobreviver num mundo estruturalmente masculino, mas

impor-se mesmo. A questão que agora colocamos é: porque não conhecemos outros

casos de sucesso como o de Rodópis? O que tem ele de tão especial? Terá ela sido

10

Ps.- D. 59, 122.



11

Curado (2004: 352); Kurke (1997: 106-150).

12

D. 59, 24.



13

Curado (2004: 352). Ver o mesmo estudo, para as especificidades da tradução do passo acima citado.

14

O caso de Neera poderá servir-nos de guia, como se pode avaliar por Curado (2004: 321-356);



Brulé (2001: 227-233).

15

Montserrat (1996: 108-109). Como nota este mesmo Autor, não se deverá desconsiderar o conjunto



de histórias cristãs que se debruçam sobre a conversão de prostitutas egípcias ao cristianismo, pois são

sintoma de que elas existiam.



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a única mulher de êxito no universo da prostituição no mundo grego antigo? Na



verdade, conhecemos as histórias de algumas prostitutas gregas, como as das já

mencionadas Neera e Arquídice, ou até Irene e Taís, cortesãs ao serviço de Ptolemeu I,

mas nenhuma parece sugerir um êxito tão grande na sua vida profissional como

Rodópis. Porque se tornou de tal forma famosa que chegou a ser digna de registo na

obra de Heródoto, e não só?

Efectivamente, em Diodoro Sículo, autor do século I a.C., admite-se que uma das

pirâmides era o túmulo de Rodópis, o que significa que a tradição contestada por

Heródoto no século 

V

a.C. se mantinha cerca de meio milénio depois



16

. No mesmo

período, Estrabão não só aceita a ideia de que Rodópis teria sido uma das

responsáveis pela construção de uma das pirâmides, como partilha uma história com

Eliano, autor do século seguinte. Estes voltam a ser testemunhas da tradição que

girava em torno da beleza de Rodópis, contando uma anedota que a tinha por

protagonista. Um dia, estando Rodópis a banhar-se, uma águia pegou numa das suas

sandálias e voou, acabando por deixar cair o objecto sobre os joelhos do faraó, que

era então Psamético (664-610 a.C.)

17

. Encantado pela beleza da sandália o faraó



decidiu procurar a dona da mesma e, depois de encontrá-la, levou-a para Mênfis,

onde acabou por se casar com ela

18

. Como notou já G. Anderson, esta versão da



história de Rodópis recorda-nos o conto tradicional da Gata Borralheira, também

conhecido como Cinderela

19

. Apesar da pertinência da datação da figura ao associá-



la a Psamético, faraó da Época Baixa, o que nos interessa aqui destacar é a

celebrização do tema na cultura antiga. Essa mesma fama confirma-se em

Heliodoro, autor que viveu entre os séculos 

III


IV

d.C. A figura de Rodópis volta a



ser requisitada para As Etiópicas ou  Teágenes e Caricleia, romance do período

tardio, cuja acção se localiza no universo egípcio etíope. O enredo gira em torno de

dois jovens, sendo ela sacerdotisa de Delfos e ele um tessálio, que por Caricleia se

apaixona. O casal vive uma série de aventuras, que começam com uma viagem ao

Egipto e terminam num ambiente de suspense, em que Caricleia está prestes a ser

sacrificada aos deuses, na Etiópia, quando se descobre que ela é filha do rei e tudo

termina em bem com o casamento dos heróis.

Entre as várias personagens que se destacam no romance de Heliodoro, está

Calasíris, um velho originário de Mênfis, sacerdote do templo de Ísis. Calasíris

apaixonara-se por uma cortesã de nome Rodópis e passa a contar a sua história.

Rodópis é uma mulher originária da Trácia, senhora de uma excepcional beleza.

Tendo ido para o Egipto, visitou Mênfis, acompanhada por uma escolta numerosa

que consigo levava também o domínio de técnicas amorosas. Todos os que a

conheciam ficavam perdidamente enamorados dela. Como Rodópis ia com

16

D.S. 1, 64, 14.



17

Apesar da discordância cronológica, a figura é situada num período mais ou menos homogéneo,

entre 664 e 526 a.C. De qualquer modo, o tempo de Psamético está mais de acordo com a possibilidade de

Safo se ter referido a Rodópis do que o de Amásis.

18

Str. 17, 1, 33.



19

Anderson (2000: 27-29). Este Autor acentua sobretudo o carácter lendário da figura de Rodópis,

frisando o aspecto «cinderelesco» da mesma e praticamente negando qualquer plausibilidade de existência

histórica da figura.



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frequência ao templo de Ísis, o velho Calasíris acabou por se apaixonar pela hetera,

acabando por pôr em risco a continência sexual que praticava. Rodópis acabou por

se tornar a maior de todas as tentações por que Calasíris alguma vez passara, o que

o conduziu ao exílio, fugindo da «abominável Rodópis» (apotropaion Rhodopin).

Este aspecto religioso deverá ser, aliás, o principal objectivo do episódio de Rodópis

em Heliodoro

20

.

A história de Calasíris, contudo, está longe de ser uma criação original de



Heliodoro. Na verdade, um texto egípcio da época baixa incluía já o tema da

Rodópis heliodoriana, avant la lettre. Trata-se da história do príncipe Khamwas,

quarto filho de Ramsés II, que foi sacerdote de Ptah em Mênfis. A popularidade da

figura originou tradições populares que se substanciaram em contos, como os de

Setne-Khamwas. Trata-se de dois contos em que o primeiro, conhecido como Setne

I, data da época ptolemaica e foi escrito em demótico

21

. O enredo, com alguma



simbologia mágica, gira em torno de um livro com ensinamentos mágicos, da

autoria do próprio deus Tot, depositado no túmulo menfita de um príncipe de tempos

antigos, chamado Naneferkaptah

22

. Depois de uma série de aventuras, entre as quais



se conta a intervenção dos ka  do defunto, da esposa e do filho, Setne Khamwas

consegue apropriar-se do livro. Tendo regressado à sua casa e estando um dia no

templo de Ptah, porém, Setne Khamwas viu uma mulher tão bela como jamais vira

em toda a sua vida. Ia enfeitada com jóias e ouro e seguiam-na jovens raparigas e

mais cinquenta e duas pessoas da sua casa. Setne descobre que a mulher, por quem

se apaixonou, se chama Tabubu e é a filha de um sacerdote da deusa Bastet. Tabubu

dirigiu-se ao templo para prestar culto a Ptah. Setne tenta seduzir Tabubu com várias

promessas, mas a mulher apenas lhe exige continuamente o cumprimento de

trabalhos que se vão tornando cada vez mais difíceis. Por fim, Setne percebe que está

a ser alvo de um encantamento controlado por Naneferkaptah, por via de manter em

suas mãos o livro mágico. Setne acaba por fazer o desejado pelos espíritos dos

guardiães do livro e o conto termina.

Como facilmente se percebe, a Rodópis de Heliodoro encontra o seu motivo de

inspiração neste conto do período tardio. A própria figura de Calasíris, enquanto

velho sacerdote de Ísis, sugere uma influência das personagens dos texto egípcio.

Muito provavelmente, a tradição popular terá celebrizado o conto de Setne o que

levou a que Heliodoro se aproveitasse do tema e o inserisse no seu romance. Além

disso, Heliodoro também deveria conhecer o texto de Heródoto, uma vez que é no

historiador de Halicarnasso que se encontra a referência de que kalasiris era o nome

dado às túnicas de linho usadas pelos Egípcios

23

. Por outro lado, os séculos 



VIII

VII



,

que correspondem à Época Baixo na História Egípcia, equivalem ao período em que

os Gregos se instalaram no Egipto, tendo trazido a sua literatura, crenças e temas

24

.



Também os receberam dos Egípcios (tinham mesmo já recebido), mas o conto de

20

Heliod., Etiópicas 2, 25; sobre Calasíris, ver Pinheiro (1991: 6983).



21

Carreira (2005: 220).

22

Podem ler-se versões modernas do conto de Setne em Lichtheim (1980: 127-138); Lalouette



(1987: 190-203).

23

Hdt. 2, 81; cf. 2, 164, onde se indica que esse nome era também atribuído aos guerreiros.



24

Carreira (2005: 217).



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Setne I sugere algum desse intercâmbio cultural, visto que encontramos nele algum

sabor da catábase e herói odisseicos. Mas também a cultura grega parece ter-se

preenchido com temática oriental, como, aliás, o exemplo de Rodópis nos recorda.

Não deixa, assim, de ser pertinente que o texto heliodoriano se baseie numa

tradição literária egípcia, que acaba por preencher o conteúdo da configuração de

Rodópis, esta herdada da tradição grega. Neste sentido, há dois aspectos a salientar.

Em primeiro lugar, o sucesso e a fama de Rodópis, que se configura na sua

reutilização no texto de Heliodoro, um milénio quase após a mais que eventual,

cremos, existência da hetera Rodópis. Em segundo lugar, a recepção de um tema

egípcio num texto grego que só se pode explicar pela transmissão oral do assunto,

bem como pela interculturalidade gerada pela convivência entre Gregos e Egípcios,

desde a fundação de Náucratis e depois da hegemonia alexandrina. Rodópis

confirma-se assim como um êxito de interculturalidade.

Resta-nos então responder à questão que se coloca sobre as razões do sucesso de

uma grega, hetera e porne, em território egípcio, cuja fama chegou ao mundo

helénico. Cremos que as razões para tal êxito assentam no próprio Egipto. Isto é, a

celebrização de Rodópis deve-se ao mito da mulher oriental, difundido no mundo

clássico. Na verdade, a própria literatura egípcia dá a ideia do que era essa

licenciosidade e liberdade de comportamentos. Os textos sapienciais, por exemplo,

advertem contra as mulheres que se oferecem nas ruas, «prontas a lançar a rede»

25

.

E os contos trazem à ribalta figuras femininas como a sedutora mulher adúltera do



Conto dos Dois Irmãos, a Fedra egípcia

26

. A ideia de uma mulher emancipada,



sexualmente sedutora e dominadora, senhora do seu próprio destino parece adequar-

se fundamentalmente à mundividência oriental da luxúria e da libertinagem, quando

partimos da perspectiva clássica, culturalmente distinta. Assim o indica o mito de

Ônfale, por exemplo, rainha da Lídia, região da Ásia Menor. O pitoresco oriental

deste mito evidencia-se na superioridade feminina que se faz valer da paixão que

exerce sobre o herói masculino

27

. A confirmação de que os Gregos associavam o



carácter de Ônfale a essas características está no facto de Plutarco ter comparado

Aspásia e Cleópatra a Ônfale, pelo poder e domínio que exerciam sobre Péricles e

Marco António, respectivamente

28

. Também o mito das Amazonas, que definia o



povo de mulheres guerreiras e por isso dominadoras sobre o masculino, era

associado ao universo das fronteiras remotas do mundo conhecido, como a oriental

Cítia

29

. Essa associação deriva de uma relativa maior liberdade da mulher nas



culturas orientais antigas, ao nível da intervenção e da prática social, em todas as

suas vertentes. Bastará termos em conta alguma da iconografia erótica egípcia para

nos apercebermos dessa postura mental

30

. Por outro lado, o comportamento de



algumas soberanas orientais, ainda que muitas vezes chegado a nós pelo crivo grego,

mostra que o exercício do poder no feminino era algo de mais naturalmente aceite

25

Carreira (2005: 141-142).



26

Carreira (2005: 162-167).

27

Apollod., Biblioteca 2, 6, 3; 7, 8; Ov., Ep. 9, 55-60.



28

Plu., Ant. 90, 4; Per. 24, 9; cfThes. 6, 6, onde se diz que também Teseu foi escravo da rainha da Lídia.

29

Ver Devambez (1976: 265-280); Portela (2002: 13).



30

Ver, por exemplo, Meskell (2002: 134-140); Manniche (1987: passim); Mys´liwiec (2004: passim).



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no mundo oriental do que no espaço grego. A própria Cleópatra VII é um exemplo

dessa ideia, apesar da sua origem macedónica

31

. E o mesmo se diga acerca de



algumas das suas antepassadas ptolemaicas, como Arsínoe II

32

. O exemplo de



Semíramis, provável versão grega da rainha assíria Samuramat, é igualmente

esclarecedor nesse sentido

33

. A imagem de Rodópis teria assim sido preenchida com



temas orientais, literários e populares, fundamentalmente. A prostituta famosa é, por

definição, oriental. Rodópis é a representação do êxito, nesse domínio.

Ao mesmo tempo, uma leitura dos símbolos da rosa no mundo greco-egípcio

poderá fornecer-nos uma indicação para a verosimilhança da escolha de tal nome

para uma hetera-porne, ao mesmo tempo que confere plausibilidade a hipótese por

nós colocada. No mundo grego antigo, a rosa simbolizava sobretudo a formosura,

derivada da forma, do perfume, da beleza e da frescura da flor. A rosa era por isso o

símbolo do amor e a flor consagrada à deusa Afrodite. Também por essas razões, era

identificada com o valor que o lótus tinha no Egipto. Este era aí tido como a flor

primordial, símbolo do sexo feminino e da vulva arquetípica

34

. Assim se sugere em



alguns dos poemas do Papiro Harris 500, onde se lê, por exemplo: «A boca da

minha amada é um botão de lótus»

35

. Uma substituição do lótus pela rosa produziria



exactamente o mesmo efeito. Eis uma razão mais do que plausível para a adopção

do nome Rodópis para o exercício da sua actividade sexual em território greco-

egípcio, bem como para a celebrização no espaço helénico. Talvez por isso Safo

apenas a desejasse conhecer por Dórica e não por Rodópis. Ou talvez Dórica fosse

uma outra grega, igualmente empreendedora nas colónias helénicas, na actividade

em que melhor poderia desenvolver o êxito comercial. Ou talvez, por isso também,

Dórica tenha sido representada por Rodópis, diluída na imagem superestruturante da

hetera referida por Heródoto, e essa se tivesse tornado a antonomásia de todas as

mulheres que um dia, no mundo helénico, se libertaram da dependência fazendo do

seu próprio corpo o sustento da mais velha profissão do mundo. Ao mesmo tempo

que o Egipto surgia como a terra das oportunidades, ainda que no política e

socialmente delicado e polémico campo do amor comercializável

36

. Por isso, talvez



o historiador assumisse a hetera de Cáraxo como simplesmente uma Rodópis.

Recorde-se como Heródoto se refere às heteras de Náucratis. Por outras palavras,

trata-se de relacionar o tema da luxúria oriental com a vivência grega, como se se

tratasse da necessidade de incluir na mundividência grega a perenidade cultural

egípcia, assim reconhecida, ainda que de forma camuflada como milenar.

Rodópis no país dos faráos: Itinerário de uma hetera grega

31

Ver e.g. Rodrigues (2002: 127-149) e Rodrigues (1999: 217-259).



32

Ver o nosso estudo Rodrigues (no prelo).

33

Bahrani (2001: 176-177).



34

Chevalier, Gheerbrant (1994: 416-417, 575-576).

35

4º poema do Papiro Harris 500 apud Sousa (2002, 110). Note-se a comparação, igualmente



sugestiva, como se de o próprio Egipto se tratasse, que este Autor faz, p. 166, n. 38, entre o lótus e o delta

egípcio: o rio que se abre como uma gigantesca flor de lótus. Se o lótus se identifica com a rosa, Rodópis é

assim o próprio Egipto, a própria sedução erótica personalizada e identificada com o país do Nilo. O lótus é

uma das plantas com presença naturalmente significativa na poesia egípcia.

36

Sobre esta questão, recordamos o passo de Herod. 1, 26-35, em que o autor grego se refere ao



Egipto como a casa de Afrodite.


Rodópis no país dos faráos: Itinerário de uma hetera grega

CFC (G): Estudios griegos e indoeuropeos

2009, 19 115-123

123

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Nuno Simões Rodrigues

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