Trabalho e troca: Adam Smith e o surgimento do discurso econômico


O PARADOXO DA RIQUEZA E A DIVISÃO DO TRABALHO



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O PARADOXO DA RIQUEZA E A DIVISÃO DO TRABALHO
Em um depoimento sobre as lições proferidas por Smith, John Millar, um de seus discípulos e amigos mais íntimos, nos ofereceu uma pista sobre a maneira como seu mestre concebia o conhecimento e a exposição de um sistema filosófico. Ele afirmou que “cada exposição [feita por Smith] consistia comumente de várias proposições distintas, que ele procurava sucessivamente provar e ilustrar. Essas proposições, quando anunciadas em termos gerais, tinham, por seu alcance, freqüentemente o aspecto de um paradoxo.” (Cf. Stewart, 1982: 273).

No seu ensaio sobre a História da astronomia,16 Smith afirma que a busca do conhecimento é resultado do desconforto que os homens sentem ao se depararem com fenômenos (appearances) que destoam da ordem ou do padrão natural que eles se acostumaram a observar entre os diferentes objetos. A reação inicial diante destes fenômenos paradoxais ou destas situações inesperadas é de surpresa (surprise), seguida por um espanto ou assombro (wonder),17 que deixam o observador em um estado de desconforto, incerteza e confusão. E é esta inquietação e o desprazer que a acompanha que provocam no indivíduo o impulso de procurar uma explicação para o fenômeno, algo que permita recolocar o objeto inesperado em conexão com os demais, que permita recuperar a coerência entre eles: “algo que possa preencher o espaço em branco, que, como uma ponte, possa ao menos unir aqueles objetos aparentemente distantes...” (Astronomy, II.8). Smith acrescenta ainda que a explicação é melhor aceita quando o fenômeno que nos surpreende é deduzido de um princípio (de preferência familiar ou bem conhecido) que o une aos demais objetos, tranqüilizando desse modo a nossa imaginação.

Ora, a divisão do trabalho ocupa, na Riqueza das nações, exatamente a posição de princípio (e princípio “bem conhecido”) capaz de conectar e explicar fenômenos aparentemente desconexos e incompreensíveis (cf. Muller, 1995: 65ss.). Já no primeiro capítulo, Smith discute um paradoxo que, desde sua formulação inicial por Locke, tornou-se um lugar comum nos textos de autores do século XVIII. O problema aparece no Segundo tratado, no interior de um argumento construído para mostrar que a maior parte dos produtos que atendem às necessidades humanas deriva do trabalho e não da natureza. Para demonstrar esse ponto, Locke (1993: 297) chama a atenção para as tribos da América que dispõem de solos férteis e “contudo, por não serem melhorados pelo trabalho, não têm um centésimo das conveniências de que desfrutamos: E o rei de um território grande e fértil de lá alimenta-se, veste-se e mora pior que um trabalhador diarista na Inglaterra.”

Smith reelabora o paradoxo, sem alterar sua essência. Trata-se, mais uma vez, de chamar atenção para o fato de que a condição material de um trabalhador inglês é melhor que a de um potentado de uma sociedade primitiva:

“Em comparação com o luxo extravagante dos grandes, as acomodações de um operário certamente parecem ser extremamente simples e acessíveis e, no entanto, talvez seja verdade que as acomodações de um príncipe europeu nem sempre sobrepujem a de um camponês trabalhador e frugal tanto quanto as acomodações deste último sobrepujam as de muitos reis da África, senhores absolutos das vidas e das liberdades de dez mil selvagens nus.” (WN I.i.11; trad. modificada).

A maneira que Smith encontra para explicar este paradoxo consiste em afirmar que mesmo o trabalhador mais simples em um país civilizado dispõe de um grande número de outras pessoas trabalhando para atender suas necessidades. Assim, ele pode desfrutar da “grande multiplicação das produções de todos os diversos ofícios, em conseqüência da divisão do trabalho, que gera, em uma sociedade bem dirigida, aquela opulência universal que se estende até às camadas mais baixas do povo.” (WN I.i.10; trad. modificada).

Através da troca, mesmo aqueles que pertencem à classe mais baixa de uma sociedade comercial podem dispor da cooperação e do trabalho de muitas outras pessoas para prover suas necessidades, beneficiando-se dos ganhos de produtividade que a divisão do trabalho confere a cada produtor. Ao mesmo tempo, fica evidente que o bem-estar material não tem relação direta com o poder que o indivíduo dispõe.

A demonstração desta proposição começa pela conhecida descrição da manufatura de alfinetes, com sua extensa divisão de tarefas entre dez trabalhadores, de tal modo que “um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas etc..” (WN I.i.3). O resultado é um enorme crescimento das forças produtivas do trabalho: juntos os dez operários produzem quarenta e oito mil alfinetes por dia, ao passo que isoladamente eles mal conseguiriam produzir vinte alfinetes no mesmo intervalo. Em seguida, Smith enumera as três circunstâncias associadas à divisão do trabalho que permitem alcançar esse salto de produtividade: i) o aprimoramento da destreza do trabalhador, pela repetição de operações simples; ii) a eliminação das perdas de tempo na passagem de uma tarefa à outra; e iii) a invenção de instrumentos destinados a poupar trabalho, que se torna mais fácil em função da divisão do processo produtivo em operações simples (WN I.i.5-8).

Da divisão de tarefas no interior de uma manufatura, Smith passa a outros exemplos que, desta vez, apresentam a divisão do trabalho entre produtores de diferentes ramos de produção, mostrando como até mesmo a roupa rude e simples de um trabalhador envolve em sua produção a cooperação de um sem número de produtores: o pastor de ovelhas, o selecionador da lã, o cardador, o fiandeiro, o tecelão, os transportadores e comerciantes etc. (WN I.i.4).

É importante salientar que, nesta passagem, Smith ignora por completo as diferenças entre os dois tipos de divisão do trabalho mencionados: a divisão técnica do trabalho, que se dá no interior de uma manufatura sob a coordenação e o planejamento do capitalista, e a divisão social do trabalho, que se realiza entre diferentes unidades de produção independentes e ligadas entre si pela troca espontânea e não planejada de seus produtos no mercado (Rubin, 1979: 179). A atenção de Smith concentra-se exclusivamente no efeito material destas duas formas da divisão do trabalho, que consiste no acréscimo de produtividade.

Dessa maneira, ele pode apresentar a sociedade como uma imensa manufatura onde o trabalho se divide entre várias unidades separadas, mas complementares, de tal modo que a interconexão entre os produtores se coloca em primeiro plano:

“se examinarmos todas essas coisas e considerarmos a grande variedade de trabalhos empregados em cada uma dessas utilidades, perceberemos que sem a ajuda e cooperação de muitos milhares não seria possível prover às necessidades, nem mesmo de uma pessoa da classe mais baixa de um país civilizado, por mais que imaginemos – erroneamente – ser muito pouco ou simples aquilo que tais pessoas necessitam.” (WN I.i.11; trad. modificada).

Ainda que cada produtor esteja apenas perseguindo seu interesse individual, ele acaba, dessa maneira, atendendo ao interesse dos demais. Prevalece, portanto, a percepção de uma ordem harmoniosa entre os homens, que deixa em segundo plano os possíveis antagonismos entre os interesses individuais ou os efeitos desastrosos da concorrência sobre os produtores: falências, desemprego etc.. (Rubin, 1929: 180).

Se as vantagens da sociedade comercial derivam da divisão do trabalho, esta, por sua vez, não depende de “uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem.” Ao contrário ela é o resultado de uma propensão específica à natureza humana que não visa aquele fim, a tendência de satisfazer nossos interesses pessoais através da troca: “a propensão a barganhar, permutar ou trocar uma coisa pela outra.” (WN I.ii.1; trad. modificada).18

É sobre essa propensão à troca que repousa a garantia do progresso na sociedade. A possibilidade de trocar os produtos de seu trabalho permite que cada homem dedique-se a uma única atividade e cultive seus talentos e inclinação para aquele tipo de negócio. Dessa maneira, todos se beneficiam, pois podem “comprar qualquer parcela da produção dos talentos dos outros, de acordo com suas necessidades” ao invés de terem que contar apenas com suas habilidades pessoais (WN I.ii.5).

Em resumo, o funcionamento da economia deve prescindir da benevolência (mas não se opõe a ela), até mesmo porque em uma sociedade onde cada homem depende de inúmeras outras pessoas para obter os produtos de que necessita seria impraticável conquistar a amizade de todas elas em tempo hábil. Além disso, um homem que dependa apenas da benevolência alheia para sua sobrevivência coloca-se em uma condição servil, ao passo que ao se comportar como um comerciante, propondo aos demais algum negócio que apela apenas ao seu interesse individual – “dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer” –, ele se comporta como um homem livre (WN I.ii.2).

A propensão à troca assegura também, através da divisão do trabalho, a máxima riqueza para a sociedade, permitindo que sejam evitadas as situações moralmente degradantes associadas à pobreza:

“Entre as nações selvagens, de caçadores e pescadores, cada indivíduo capacitado para o trabalho ocupa-se mais ou menos com um trabalho útil, procurando obter, da melhor maneira que pode, os bens necessários e os confortos materiais para si mesmo ou para os membros de sua família ou tribo que são muito velhos ou muito jovens, ou doentes demais para ir à caça ou à pesca. Todavia, tais nações sofrem de tanta pobreza e miséria que, somente por falta de bens, freqüentemente são reduzidas – ou pelo menos pensam estar reduzidas – à necessidade de às vezes eliminar e às vezes abandonar suas crianças, seus velhos e as pessoas que sofrem de doenças prolongadas, as quais perecem de fome ou são devorados por animais selvagens. Ao contrário, entre as nações civilizadas e prósperas, embora grande parte dos cidadãos não trabalhe, muitos deles, com efeito, consomem a produção correspondente a 10 ou até 100 vezes a que é consumida pela maior parte dos que trabalham – a produção resultante de todo o trabalho da sociedade é tão grande, que todos dispõem, muitas vezes de suprimento abundante...” (WN I.4).19

Assim, Smith assegura que o funcionamento desimpedido da economia - de uma esfera da sociabilidade apoiada apenas na busca do interesse pessoal - é capaz de proporcionar as condições de liberdade e riqueza que permitem a uma sociedade alcançar a felicidade e elevar a condição moral de seus membros, afastando o fantasma da miséria ou da servidão (Muller, 1995: 70-3).

O primeiro requisito – moral - para esta demonstração foi estabelecido na Teoria dos sentimentos morais, ao diferenciar os efeitos das ações humanas dos sentimentos que as motivam. Não há, para Smith, sentimentos intrinsecamente bons ou maus. As ações guiadas por interesses estritamente pessoais, moderados pelo espectador imparcial para que não violem a regra da justiça, geram, de modo imprevisto, o bem comum, a felicidade da humanidade. O que torna um sentimento virtuoso é o acordo entre os resultados das ações que ele promove e o desígnio estabelecido pela Divindade ao criar o mundo (Evensky, 1987: 452-3).20

A segunda condição – ontológica - consistiu em apresentar a sociedade - nos capítulos iniciais da Riqueza das nações - como um conjunto de pessoas que trabalham e que trocam. Pela divisão do trabalho, cada homem participa de um processo produtivo que o mantém em conexão com os demais, pois “são muito poucas as necessidades que o homem consegue atender com o produto de seu próprio trabalho. A maior parte delas deverá ser atendida com o produto do trabalho de outros...” (WN I.v.1). Para tanto, além de trabalharem, os homens precisam trocar: “Assim sendo, todo homem subsiste por meio da troca, tornando-se de certo modo comerciante; e assim é que a própria sociedade se transforma naquilo que é propriamente uma sociedade comercial.” (WN I.iv.1; trad. modificada). Ao trocarem os produtos de seus trabalhos, os homens estão obtendo o trabalho de outros. E como a divisão do trabalho é limitada pelo tamanho do mercado, quanto mais se generalizem as trocas, maior será a opulência proporcionada pelo trabalho.

Desse modo, essa descrição da esfera econômica revela, em primeiro lugar, que o que parece ser uma troca de produtos por dinheiro consiste numa troca de produtos do trabalho humano e, em segundo lugar, que a troca de produtos do trabalho de diferentes produtores se reduz, na verdade, a uma troca de trabalhos (Rubin, 1979: 182).21 É essa ontologia da economia que fundamenta a possibilidade de analisar os fenômenos de um ponto de vista teórico e estritamente econômico. Smith pretendeu mostrar não apenas que a esfera da economia obedecia a princípios distintos daqueles que prevalecem na esfera política - e que serão o objeto dos dois primeiros livros da Riqueza das nações – como também que a ordem subjacente ao domínio da vida econômica operaria espontaneamente no sentido de gerar o bem da humanidade, permitindo assim que o discurso econômico se “emancipasse” da filosofia moral. Convém, no entanto, frisar que essa “emancipação” deve ser entendida cum grano salis: a reflexão sobre a economia só ganha autonomia teórica porque seu objeto (as ações econômicas) é apresentado como algo que está naturalmente orientado para o bem, algo que tem, por si só, um caráter moral.

É só depois de ter desenhado a sociedade como uma sociedade de homens que trabalham e trocam - só depois de haver situado as trocas no interior de uma ontologia da sociedade mercantil – que Smith procurará explicar os determinantes das proporções segundo as quais trocas se realizam (Coutinho, 1993: 111). É precisamente por ver nas trocas um mecanismo de coordenação entre os diferentes ramos de produção que a teoria do valor pode assumir a centralidade que ela tem em sua teoria econômica – diga-se de passagem, precisamente o que faltava aos fisiocratas e à maioria dos antecessores de Smith.

Deste ponto em diante, o que estará em jogo é propriamente a análise econômica, um problema que escapa ao escopo deste ensaio. Interessa-nos apenas, antes de concluir, salientar alguns aspectos adicionais da relação entre a filosofia moral e a economia política de Smith.



ÉTICA E ECONOMIA
Até aqui, enfatizamos o fato de que, para Smith, o funcionamento desimpedido da “sociedade comercial” não depende de que cada homem seja benevolente, mas, ao contrário, permite que eles usufruam de um nível de riqueza e bem-estar que torna possível que cada um exercite a benevolência, ao mesmo tempo que elimina o risco das situações moralmente degradantes associadas à pobreza.

Este potencial, no entanto, é colocado em risco pelos efeitos negativos do próprio desenvolvimento das “sociedades comerciais”, que reclamam a atenção e o cuidado do legislador. O governo é chamado não apenas a prover a defesa, justiça e infra-estrutura, que são condições necessárias para o desenvolvimento do mercado, mas também a tomar medidas que se contraponham aos efeitos debilitantes da divisão do trabalho sobre a capacidade moral dos trabalhadores (Muller, 1995: 148-50).22

O resultado é que, se os riscos de degeneração dos indivíduos associados à divisão do trabalho não superam, no julgamento de Smith, os benefícios que ela proporciona para a sociedade, a idéia de que o livre funcionamento do domínio econômico permitiria à humanidade alcançar a felicidade deve ser relativizada. Afinal, a capacidade do indivíduo de executar juízos morais e, desse modo, aderir às virtudes da prudência e da justiça é uma condição para a própria preservação da sociedade comercial. A preservação desta capacidade passa a depender da mão visível do Estado, do apelo à liderança moral do governante. Deste modo, a filosofia moral continua ocupando uma posição central no pensamento econômico de Smith.

Estas e outras considerações apresentadas nos livros IV e V da Riqueza das nações, que problematizam as relações entre riqueza e virtude no desenvolvimento da civilização, foram em grande medida ignoradas ou obscurecidas na recepção dessa obra pelos economistas do século XIX. Na Inglaterra, as críticas aos efeitos da divisão do trabalho continuaram a ser formuladas, porém por autores que se situavam fora da economia política – quando não opostos a ela -, tais como Coleridge ou Carlyle (Copley, 1995:17-8). Ao contrário, autores como Ricardo, Malthus e Stuart Mill, a partir de uma leitura da Riqueza das nações centrada essencialmente nos dois livros iniciais e na exposição do “sistema de liberdade natural”, consolidaram a imagem de Adam Smith como o criador de uma nova ciência, a economia política (Tribe, 1995:24).

A idéia de um “sistema de liberdade natural” consiste, efetivamente, no eixo em torno do qual a exposição do funcionamento do sistema econômico se organiza na Riqueza das nações:

“Consequentemente, uma vez eliminados inteiramente todos os sistemas, sejam eles preferenciais ou de restrições, impõe-se por si mesmo o sistema óbvio e simples da liberdade natural. Deixa-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e fazer com que tanto seu trabalho como seu capital concorram como os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas.” (WN IV.ix.51).

Mas essa representação de um “sistema de liberdade natural” está referida à concepção mais geral de Smith sobre a natureza do processo civilizatório. Ela consiste em afirmar que a liberdade para que cada indivíduo busque seu interesse próprio não se contrapõe ao bem comum ou ao desenvolvimento da civilização. Neste sentido, Smith tenta conciliar o desenvolvimento do comércio com as virtudes cívicas e rompe com a visão predominante em sua época sobre uma oposição incontornável entre o impulso aquisitivo, próprio das economias mercantis, e os valores morais. Uma mão invisível concilia a busca do interesse individual com a manutenção da ordem e coesão social (Tribe, 1995:25-8).

No contexto do século XIX, estas referências mais amplas do sistema de liberdade natural foram gradualmente esquecidas e a lição de Smith foi reduzida a uma mera defesa do livre comércio. Despida de suas intenções originais, a Riqueza das nações passou a ser lida apenas como uma descrição do funcionamento auto-regulado e espontâneo do mercado, uma análise da produção e distribuição das riquezas materiais articuladas exclusivamente em torno de uma teoria do valor (de troca). As relações entre ética, economia e política foram, então, deslocadas para um plano secundário ou esquecidas.



NOTAS CONCLUSIVAS
O trajeto percorrido até aqui procurou explicitar de que modo foi possível fundar na Modernidade um discurso econômico cuja auto-imagem é a de um saber positivo, autônomo em relação à ética. Procurou-se mostrar de que maneira a Riqueza das nações se constituiu num ponto de inflexão crucial neste processo. Smith logrou conciliar a busca da vantagem pessoal, característica das “sociedades comerciais”, com o objetivo prático-moral - inscrito no plano da Providência - de alcançar o bem da humanidade. Empregando a metáfora da mão invisível, a Riqueza das nações nos revela como uma sociabilidade apoiada na divisão do trabalho e nas trocas e movida pelo princípio da barganha produz como resultados inesperados a “opulência universal”. Ela demonstraria, portanto, a existência de um domínio especificamente econômico, dotado de coerência interna e, sobretudo, que operaria espontaneamente no sentido de gerar o bem da humanidade.

Essa ontologia do sistema de livre mercado constitui o principal legado de Smith para a constituição do discurso econômico: a imagem de uma esfera da economia movida pelo interesse pessoal, que produz resultados superiores aos alcançados por qualquer forma alternativa de organização da produção material. Os nexos complexos entre essa concepção e a filosofia moral que a fundamenta - nexos que eram evidentes na obra de Smith e que o levaram a apontar os problemas decorrentes do próprio funcionamento do mercado e a relativizar suas virtudes - foram, no entanto, gradualmente esquecidos à medida que a economia política se desenvolveu, ao longo do século XIX. Elevada à condição de cânone da nova ciência, a Riqueza das nações passou a ser lida como um texto desvinculado ou, até mesmo, contraditório com a filosofia moral à qual estava referida. A centralidade da ética no projeto de Smith tornou-se, no discurso econômico, uma dimensão anulada.

Deste modo, o nome de Adam Smith permaneceu associado não apenas à imagem do fundador da ciência econômica, mas também a um modo específico de conceber essa disciplina, qual seja, como uma afirmação das virtudes do laissez-faire. Estudos mais recentes sobre a obra de Smith têm contribuído para perceber o que há de caricatural nessa imagem. Deixando em segundo plano as análises econômicas para enfocarem a dimensão política e ética de seu pensamento, ao mesmo tempo em que se preocupam em localizá-lo em relação aos problemas e motivações intelectuais do século XVIII, tais pesquisas trouxeram à luz um quadro totalmente diverso, mais matizado e complexo, do qual emerge um Smith mais cético ou menos entusiasmado com os benefícios derivados da criação das sociedades comerciais (cf. Brown, 1997 ; Tribe, 1999).

Se a liberdade de perseguir os interesses próprios, que é característica das sociedades comerciais, está vinculada na obra de Smith à uma ordem moral que liga cada indivíduo à sociedade, a consideração destes pressupostos morais deveria nos levar a uma revisão da compreensão tradicional dos objetivos, natureza e limites de sua teoria econômica. Para além do interesse que a compreensão do pensamento de Smith tem em si mesma, não é ocioso apontar a relevância e a atualidade que alguns desdobramentos dessa investigação podem ter. A reconstrução dos argumentos de Smith, de sua linguagem e contexto, pode contribuir para nos proporcionar um novo entendimento das relações entre a ética e economia, esforço que vem sendo reclamado por filósofos e economistas.

Tal como afirma Amartya Sen (1999), a teoria econômica empobreceu consideravelmente sua abordagem ao desconsiderar a variedade das considerações morais que determinam os comportamentos humanos, inclusive os econômicos, e centrar-se exclusivamente nas motivações ditadas pelo interesse pessoal. Em particular, acabou assumindo uma concepção de racionalidade restrita, que iguala o comportamento racional à busca do interesse individual e considera irracionais quaisquer comportamentos guiados por outras motivações. A exemplo de Sen, cremos que existem poucos indícios de que Smith realmente tivesse a visão parcial e limitada sobre as motivações morais dos atos econômicos que se costuma atribuir a ele e que ainda caracteriza a teoria econômica moderna, e que “vale a pena discutir essa questão porque Smith foi figura de máxima importância na origem da economia e também porque o tratamento que ele deu ao tema é verdadeiramente esclarecedor e útil.” (Sen, 1999: 37-8).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, trad. de Alfredo Bosi, São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BROWN, Vivienne. ‘Mere inventions of the imagination’: a survey of recent literature on Adam Smith. Economics and philosophy, v. 13(2): 281-312, 1997.

CAMPBELL, R.H. e SKINNER, A.S.. General introduction. In: SMITH, Adam. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. Eds. R. H. Campbell, A. S. Skinner e W. B. Todd. Indianapolis: Liberty Fund, 1981, pp. 1-60.


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