134
Esta ambientação barroca, ou neobarroca, não se restringe, contudo, ao universo da
imaginação e do pensamento de Michelina levantados pelo narrador do romance. A oposição
entre a vida reclusa do rapaz com quem termina por ver-se obrigada a casar e a educação
viajada e capitalina da moça vai opor, ainda, todo um jogo entre sombra e luz, algo que
também remete a artifícios usados na arte barroca. No entanto, tal ambientação vai além: ela
segue também nas linhas arquitetônicas da poderosa mansão de don Leonardo Barroso, para
onde viaja a capitalina a fim de que conhecesse e desposasse o excêntrico filho do empresário,
Marianito Barroso. Ali, além do exagero das formas na descrição das mansões do lugar – um
verdadeiro “conjunto de mansiones amuralladas, mitad fortalezas, mitad mausoleos”
(FUENTES, [1995] 2007, p. 15-6) – chamam a atenção o descrever esse mesmo conjunto de
construções portentosas a partir do encerramento, de um abrir e fechar de grades que mais
lembra o claustro de um convento. Uma vez mais, observe-se a repetição como artifício
narrativo para a formação de uma ideia sobre o local, para a fixação da imagem que ultrapassa
seu sentido (no) presente: “Ni una teja, ni un adobe, sólo mármol, cemento, piedra, yeso y
más rejas, rejas detrás de las rejas, dentro de las rejas, hacia las rejas, un laberinto enrejado”
(Ibid., p. 16).
Porém, as correspondências entre o ensaio de Fuentes (e as consequentes leituras e
releituras que traz dos clássicos de sua genealogia literária) e a voz de seu narrador coiote se
tornam ainda mais evidentes se avançamos um pouco mais em um drama que dilacera a
capitalina de seu romance, sua Sor Michelina. Ocorre que a capitalina, ao ser prometida, se vê
dividida entre a obrigação de unir-se ao filho que será seu marido e a imediata paixão pelo
pai, que será seu amante. É quando, dilacerada, dividida, então, a alma dessa jovem, ela
adormece vestida de noiva, com uma roupa antiga que atravessou gerações na família, e tem
um sonho de ambientação barroca similar à do real objetivo contado por Fuentes no capítulo
“El barroco del Nuevo Mundo” do seu El espejo enterrado, no apartado “Mi alma está
dividida” (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 251-2-3), acerca de Sor Juana. Em La frontera, é
mesmo com tal ambientação que se assemelha o sonho de Michelina, que
Se soñó en un convento, paseándose entre patios y arcadas, capillas y corredores,
mientras las demás monjas, acorraladas, se asomaban como animales entre las
rejillas de sus celdas, le gritaban obscenidades porque se iba a casar, porque prefería
el amor de un hombre a los esponsales con Cristo, la injuriaban por faltar a su voto,
por salirse de su orden, de su clase. (FUENTES, [1995] 2007, p. 26-7)
Mas, o sonho da capitalina avança, estando justamente nesse avanço o encontro
maior entre um Fuentes ensaísta e seu narrador provocador, criador de trampas pelas quais
135
quer, como um coiote, atrair, enredar e convencer o leitor de que é confiável em La frontera
de cristal. Assim, tornando ao avanço do sonho da moça na Cidade do México:
Entonces Michelina trataba de huir de su sueño, cuyo espacio era idéntico al del
convento, pero todas las monjas, congregadas frente al altar, le impedían el paso; las
criadas negras les arrancaban los hábitos a las hermanas, las desnudaban hasta las
cinturas y las monjas pedían a gritos los azotes para suprimir el diablo de la carne y
darle el ejemplo a sor Michelina; otras menstruaban impúdicamente sobre las losas y
luego lamían su propia sangre y hacían cruces con ella sobre la piedra helada; otras
más se acostaban al lado de los Cristos yacentes, llagados, heridos, espinados
(FUENTES, [1995] 2007, p. 27).
Há que se ressaltar aqui que a sinonímia forçada, repetida na narração impressa ao
romance, é e não é um exercício de estilo. Há a marca de estilo de Fuentes, uma marca autoral
que talvez não devesse existir nesse exercício de contar. Mas tal artifício literário não é mero
estilo, pois tem sua intencionalidade, reitero, na busca de fixação de imagens que o autor
entende como importantes de serem passadas, transmitidas à mente do imaginante, do leitor.
Para tanto, reforça esse intento o uso das imagens fortes, provocadoras, na ordem mesma do
abjeto. Eis aí o emprego literário de estranhamento, de tirar o leitor de seu lugar comum, num
provocativo emprego de literariedades – estando outra delas nesse autor coiote que simula
estar num lugar, quando está em outro, trazendo para o presente ambientações de um passado
cujo conhecimento perpassa pela erudição talvez não dele, narrador; mas, antes, com efeito,
de seu autor, seu criador, aquele que foi buscar nas portas autorais deixadas abertas pelo
ensaio parte das situações que exprime, das palavras, frases, sentenças que usa e traslada para
sua ficção posterior. Penso corroborem meus argumentos a evidência de semelhança da
citação anterior para com as linhas a seguir, do apartado “La ciudad barroca”, ainda do
capítulo dedicado ao barroco no Novo Mundo em El espejo enterrado (1992):
En una época dominada por la triple tensión del sexo prohibido, el ideal de esposar a
Cristo y el ideal de la maternidad virginal, muchas monjas mexicanas, horrorizadas
ante sus propios cuerpos, se vendaron los ojos, comunicando así su deseo de ser
ciegas y sordas; lamieron el piso de sus celdas hasta formar una cruz con saliva;
fueron azotadas por sus propias criadas y se embarraron con la sangre de sus propias
menstruaciones. (FUENTES, [1992] 2010, p. 262)
Há, pois, que se ressaltar desde um aproveitamento da situação trazida à baila no
ensaio até mesmo o encontro de palavras e frases descritas também em ambas as citações do
romance que aqui antecederam a citação ensaística. Haveria por fim então que se indagar o
destino do tema maior incutido no título do romance: onde estará a fronteira em todo esse
exercício de remissão barroca, de translação do ensaio ao romance? A verdade é que a
fronteira faz-se, sim, presente nesse primeiro capítulo da obra. Apresentada já no início pelo
Dostları ilə paylaş: |