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paisagem sonora, o seu “ruído”, enfatizando «as frenéticas
complexidades da vida moderna».
O compositor eletroacústico que ouvimos em Techné considera inclusive
que há profundas semelhanças das preocupações concretistas de Pierre
Schaeffer com o situacionismo: «Ambos favorecem um envolvimento
direto com o que as envolve, com as ruas da cidade como espaço de
ambiência cujas ocorrências naturais são a substância de uma
arquitetônica da cultura e da mudança. Cortando e colando fragmentos
de uma fita magnética com miríades de gravações, a composição de
musique concrète assemelha-se com os projetos de cut up feitos com base
nos mapas de Paris por parte dos situacionistas Guy Débord e Asger
Jorn.» Conscientes disso, os herdeiros musicais de Schaeffer, entre os
quais LaBelle, continuam a incluir a experienciação sensual, empírica e
subjetiva da rua nas suas obras.
Concretistas são também Leif Elggren e CM von Hausswolff e a idéia
situacionista de rua aparece, expandida, no país virtual que fundaram,
Elgaland-Vargaland, cujo território dizem ser formado pelas zonas de
fronteira de todas as nações do mundo, as chamadas “terras de
ninguém”, bem como pelos territórios mentais e perceptivos dos estados
hipnagógico, a área de fronteira entre o despertar e o sono, e escapista,
que surge quando nos apetece estar noutro lugar, ou as fronteiras
definidas por certas doenças mentais, a near death experience, a hipnose,
o mesmerismo, a telecinese, a telepatia, o delírio, os estados alterados de
consciência por meio de drogas ou álcool, o êxtase religioso, a inspiração
artística, a possessão por um espírito, o medo, o amor ou o orgasmo. Para
Elggren e Hausswolff são territórios relacionados os discos rígidos
“bichados”, os vírus informáticos, os CD-ROMs, os floppydisks, os
programas de computador, as frequências sonoras, a fissão ou a fusão de
partículas. Só não mencionam a Internet, que é onde o país tem a sua
existência funcional.
À boa maneira situacionista, o Estado de Elgaland-Vargaland só não é um
projeto de arte porque pretende ser mais do que arte. De forma inédita e
com uma boa dose de humor, o propósito central é pôr a nu a verdade do
que são os Estados ditos democráticos. Segundo uma explicação assinada
por Hakan Nilsson, ministro dos Bloody-Marys (!), no website do novo
país, é preciso ter em conta que os direitos do indivíduo só existem na
medida em que não ameaçam os direitos do Estado. O fato de a religião, o
mercado e a liberdade de expressão não poderem ser controlados na
geopolítica liberal faz com que o Estado pareça tê-los libertado, de forma
paternalista. “Mas não nos deixemos enganar”, avisa o “governante”, pois
a primeira atitude desse mesmo Estado é proteger-se contra os seus
cidadãos, mesmo que faça crer que as suas medidas de força surgem em
defesa e benefício destes. Aliás, é neste particular que intervém o grande
argumento da guerrilha urbana desde a “crise” das Brigate Rosse na Itália:
não é o “terrorismo” que cria o Estado policial, mas este que produz o
terror, nascido precisamente para denunciar a natural condição
autoritária e beligerante do Estado.
E é assim que Elgaland-Vargaland é apresentado como uma monarquia
autocrática e ditatorial, tal como o era a “mãe” da atual concepção do
Estado nos séculos do direito divino (2). E isso apesar de, na sua
Constituição, surgirem artigos cujo conteúdo acalenta certos aspectos do
discurso anarquista. Lê-se, por exemplo, no Artigo 8º que “todos os
cidadãos têm o poder irrestringível de decidir sobre a sua vida, em
harmonia com os seus ideais e modelos pessoais”, ou, no Artigo 13º, que
“o Estado de Elgaland-Vargaland tem o propósito de abolir o seu território
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físico, buscando para esse efeito, a) a unificação do planeta numa única
nação; b) a expansão do território por meio da repetida e fractal divisão
de todos os outros Estados existentes, até ao nível do território ocupado
pelos indivíduos”. Os direitos declarados constitucionalmente passam
pela “liberdade de dispor da sua existência” (suicídio, eutanásia) ou pela
possibilidade de se “mover livremente na ordem hierárquica”.
Elgaland-Vargaland tem o seu próprio hino, composto por Elggren e von
Hausswolff a partir de uma quantidade imensa de hinos nacionais e que
retoma a idéia do célebre Hymnen de Stockhausen (anos 60). Foi editado
em CD pela Ash International, selo interessado em “redefinir as fronteiras
musicais, psicológicas e geográficas”, a mesma que lançou «Runaway
Train», o registro das conversas entre o maquinista de um trem
descontrolado e a base, ou um outro disco que contém as confissões de
presos das células da morte americanas momentos antes da sua
execução.
São cidadãos de Elgaland-Vargaland os músicos, eletrônicos na sua
maioria, Robin Rimbaud (Scanner), Ulf Bilting, Andrew McKenzie (The
Hafler Trio), John Peter Nilsson, John Duncan, Jim O’Rourke, J.G. Thirlwell
(Foetus), Bruce Gilbert, Russell Haswell, Ilpo Vaisanen (Pan Sonic), Holger
Hiller, Marc Behrens, Christian Fennesz, Ryoji Ikeda, Raymond Strid,
Francisco López, Oren Ambarchi e Mats Gustafsson, entre muitos outros
de vários pontos do planeta. Todos eles participam, a seu modo, do
propósito de enfrentar as estruturas do globalismo econômico e político
capitalista, por meio de propaganda, infiltração e idealismo. Leif Elggren
herdou da sua influência maior, o surrealismo, a noção de que é preciso
mudar a sociedade e o próprio homem. “Fazer arte é dizer ‘quero ser eu
mesmo a criar as minhas regras’”, diz. Parafraseando Marcuse, ele
considera que a arte ainda é um ato de oposição. De oposição e, como
vemos, de (re)invenção geográfica. Verificando bem, Elgaland-Vargaland
já invadiu territórios reais. Estes são músicos migrantes, a prática da
improvisação proporcionando que muitos deles cultivem os encontros
com outros músicos de diversas nacionalidades. Já não se trata da velha
idéia de “digressão internacional” por parte dos grupos de rock ou de jazz;
os nomes acima indicados estão em trânsito permanente e a música que
fazem, a sós (por exemplo, mediante a utilização de sons captados “in
loco”, no caso dos concretistas) ou com quem encontram nos países onde
aterram, depende dessa transitoriedade.
Vejamos o exemplo de Jason Kahn, músico norte-americano residente em
Zurique que já morou em Tóquio e está permanentemente em viagem.
Quando toca, disse-me ele, nunca está em questão ser um americano
emigrado na Europa, simplesmente porque a sua música, eletroacústica e
improvisada, não tem qualquer linhagem étnica direta: “Ao me encontrar
com outros músicos, é o som que experencio acima de tudo. Não nego
que o background cultural de cada um de nós possa ter algum impacto na
música que fazemos, mas isso é relativizado pelo fato de o som ser
universal. Pode parecer um chavão, mas quando toco com músicos de
outras nacionalidades os nossos fundamentos culturais cedem face ao
som que estamos criando - esse som é o fator que nos unifica, que torna
possível comunicarmos, mesmo que não falemos a mesma língua.
Quando nem sequer há tempo para assimilar as novas culturas que
encontro nas minhas viagens, só posso confiar no som para me
transportar para além dos contextos culturais e geográficos por onde
passo.”
E é como dizia Yona Friedman: a migração é uma das mais importantes
utopias da História. Se a arquitetura pudesse ser transformada pelo
caráter migratório destes músicos e destas músicas, as cidades de hoje
seguiriam o modelo dos antigos khans /caravançarais (3) do Oriente: uma
infra-estrutura de recolhimento devidamente equipada com tecnologias
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