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construção rememorativa a que se impõe e se nos é imposta por um sujeito amadurecido,
infante ainda talvez em todo seu processo mnemônico de tomada de consciência.
Essa suspeição de uma introspecção um tanto imprópria para um garoto (Cf. Giner,
2005, p. 81) encontra ainda justificativa se observarmos com atenção o trecho abaixo, quando
no último capítulo do romance um menino descobre o protagonista da obra embaixo da casa
onde esteve escondido reencontrando suas memórias:
– Mami, mami, aquí está un viejo debajo de la casa. Mami, mami, mami, pronto,
sal, aquí está un viejo.
– ¿Dónde? ¿Dónde? ¡Ah!... deja traer unas tablas y tú, anda a traer el perro de doña
Luz.
Y vio sinnúmero de ojos y caras en lo blanco y luego se puso más oscuro debajo del
piso. (…)
– ¿Quién será?
Tuvo que salir. Todos se sorprendieron que fuera él. Al retirarse de ellos no les digo
nada y luego oyó que dijo la señora:
– Pobre familia. Primero la mamá, y ahora éste. Se estará volviendo loco. Yo creo
que se está yendo la mente. Está perdiendo los años (RIVERA, [1971] 2012, p. 161
– grifo meu).
Indo embora sua mente ou não, importa que do limiar, da ambiguidade entre razão e
loucura
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, infância e idade adulta sobressai, paira a certeza, proposta do alto da criação de
Rivera, de que o suposto viejo obrigado a sair debaixo da casa pode ser elevado, no máximo, a
um caráter proposital, sim, de alusão ao autor, sendo, entretanto, mais correto afirmar o
menino como introjecção (re)criada, rememorada, recuperada pelo adulto, pelo “velho” que
faz do menino, enfim, outra ficção (uma ficção de que é o narrador um menino) dentro da
ficção maior de Tomás Rivera, ou seja: fazer de sua ficção de memória uma ficção de
memória fotográfica.
2.3 Imaginária e imaginários de ...Tierra: “sacralidades” em questionamento
Tamanha “simbiose”, com a qual se encerra a linha argumentativa do tópico anterior,
decorre de uma habilidade narratológica que em Rivera, conforme já explicitado a partir das
considerações teóricas utilizadas nesse segmento anterior, vê-se orquestrada desde a
justaposição, e contraposição muitas vezes, das vozes que sobre o texto interferem, que sobre
o texto intervêm. Nesse sentido, é possível compreender o texto ficcional riverano, de certo
modo, sob um ponto de vista polifônico.
56
Apenas mais uma das tantas similitudes com Rulfo, para além do âmbito de observações possíveis de um
Regionalismo em ambos (coincidentes neste aspecto também com o brasileiro Guimarães Rosa).
104
A polifonia em literatura é, desde Bakhtin (1929, 1963) e suas considerações acerca
dela e de sua implicatura e aplicação no gênero romanesco (tendo a análise do gênio
Dostoiévski à cabeça), matéria que fala, grosso modo, do entrechoque de vozes sociais
polêmicas, contraditórias, como constitutivo básico do gênero romance. Todavia, em ...y no se
lo tragó la tierra, primeira e terceira pessoas narrativas, discurso indireto livre e diálogos que
os complementam e a eles se sobrepõem, mais as vozes corais, vozes anônimas que opinam,
sem sequer haverem sido anunciadas, sobre as mais diversas situações trazidas à tona pelo
enredo; enfim, toda essa multiplicidade discursivo-enunciativa de vozes que confundem mais
do que propriamente polemizam parece mais bem condensar-se sob os efeitos de outro tipo de
polifonia, ou da observação da polifonia, partindo-se de outros termos.
Mesmo a polifonia no discurso literário, da qual trata Bakhtin, origina seus termos na
música, em especial da música litúrgico-clássica europeia do medievo, que alcançaria em
influência grandes nomes do gênero nos séculos seguintes. Resumidamente se explica pela
união em harmonia de vozes distintas, cada qual, entretanto, com sua própria melodia. Nesse
aspecto, a narrativa de Rivera opera sob o que se convencionou chamar de “canto fixo” (do
latinismo cantus firmus) na polifonia. Um cantus firmus em que três vozes maiores reunidas
confundem pela composição algo contraditória que propõem: capítulo, conto e romance.
Ocorre que na narratividade de sua obra, Rivera subverte a ritualística quase sempre
previsível do romance emprestando à forma composicional romanesca capítulo tons do canto
do conto. Revolvem, ainda, as entranhas desse canto maior: uma voz que seria a primeira,
também previsível (por “falsa” ser, sendo, por isso mesmo, base necessária para toda a ficção
desenvolvida) do “menino” narrador; a esta se justapõe em parataxe (Cf. Ramos e Buenrostro:
2012, p. 43)
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o conjunto de vozes corais e das anônimas dos diálogos interpostos que ajudam
a contar a(s) história(s); e a terceira voz é a que de fato surpreende, é o viejo narrador que sai
debaixo da casa no último conto-capítulo, fechando, assim, em trítono, um canto fixo
migratório, porque ora a narrativa se sustenta no menino, ora em outras vozes evocadas;
sendo, porém, um tenor maduro o responsável por introduzir, enfim, ao cantus firmus
riverano, o tom de um real, de um verdadeiro cantus fictus.
A tensão criada pela problemática, da qual se estabelece que o narrador é
(simbolicamente) e não é (na “razão retomada” na figura final do velho embaixo da casa) um
menino, termina por corresponder-se de certa maneira às vozes contraditórias como parte
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Quando, ao falarem da operação narrativa levada a cabo por Rivera, os autores tocam no processo de
intensificação da língua que se dá através de uma redução ou subtração paratática (falam, ainda na mesma
página, de “un ensamblaje paratáctico de las voces” – grifo meu). Na ordem do gramatical, a parataxe
corresponde à coordenação e justaposição de orações.
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