Boaventura de sousa santos



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Revista Crítica de Ciências Sociais,

 78, Outubro 2007: 3-46



BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS 

Para além do Pensamento Abissal:

Das linhas globais a uma ecologia de saberes

*

Na primeira parte do ensaio, argumenta‑se que as linhas cartográficas “abissais” que 

demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no 

pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e 

culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo. A injustiça 

social global estaria, portanto, estritamente associada à injustiça cognitiva global, de 

modo que a luta por uma justiça social global requer a construção de um pensamento 

“pós‑abissal”, cujos princípios são apresentados na segunda parte do ensaio como 

premissas programáticas de uma “ecologia de saberes”.

O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal.



 Consiste num 



sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamen‑

tam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas 

radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o uni‑

verso “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A divisão 

é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna‑se 

*  Este trabalho foi apresentado em diferentes versões no Fernand Braudel Center, Universidade 

de New York em Binghamton, na Universidade de Glasgow, na Universidade de Victoria, na 

Universidade de Wisconsin‑Madison e na Universidade de Coimbra. Gostaria de agradecer a Gavin 

Anderson, Alison Phipps, Emilios Christodoulidis, David Schneiderman, Claire Cutler, Upendra 

Baxi, James Tully, Len Kaplan, Marc Galanter, Neil Komesar, Joseph Thome, Javier Couso, Jeremy 

Webber, Rebecca Johnson, e John Harrington, António Sousa Ribeiro, Margarida Calafate Ribeiro, 

Joaquin Herrera Flores, Conceição Gomes e João Pedroso pelos seus comentários. Maria Paula 

Meneses, além de comentar o texto, auxiliou‑me no trabalho de pesquisa pelo que lhe estou muito 

grato. Este trabalho não teria sido possível sem a inspiração das longas conversas com Maria Irene 

Ramalho sobre as relações entre as ciências sociais e as ciências humanas. Foi ela também a res‑

ponsável pela preparação da versão inglesa. 



  Não pretendo que o pensamento moderno ocidental seja a única forma de pensamento abissal. 



Pelo contrário, é muito provável que existam, ou tenham existido, formas de pensamento abissal 

fora do Ocidente. Não é meu propósito analisá‑las neste texto. Defendo apenas que, abissais ou 

não, as formas de pensamento não‑ocidental têm sido tratadas de um modo abissal pelo pensamento 

moderno ocidental. Também não trato aqui do pensamento pré‑moderno ocidental nem das versões 

do pensamento moderno ocidental marginalizadas ou suprimidas por se oporem às versões hege‑

mónicas, as únicas de que me ocupo neste ensaio.




 | Boaventura de Sousa Santos 

inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa 

não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível.



 Tudo 



aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical por‑

que permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de 

inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do 

pensamento abissal é a impossibilidade da co‑presença dos dois lados da 

linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo   

da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade 

e ausência não‑dialéctica. Para dar um exemplo baseado no meu próprio 

trabalho, tenho vindo a caracterizar a modernidade ocidental como um 

paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação social.



 



Esta distinção visível fundamenta todos os conflitos modernos, tanto no 

relativo a factos substantivos como no plano dos procedimentos. Mas subja‑

cente a esta distinção existe uma outra, invisível, na qual a anterior se funda. 

Esta distinção invisível é a distinção entre as sociedades metropolitanas e 

os territórios coloniais. De facto, a dicotomia regulação/emancipação ape‑

nas se aplica a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá‑la aos 

territórios coloniais. Nestes aplica‑se uma outra dicotomia, a dicotomia 

apropriação/violência que, por seu turno, seria inconcebível aplicar deste 

lado da linha.

Sendo que os territórios coloniais constituíam lugares impensáveis para 

o desenvolvimento do paradigma da regulação/emancipação, o facto de 

este paradigma lhes não ser aplicável não comprometeu a sua universalidade. 

O pensamento abissal moderno salienta‑se pela sua capacidade de produzir 

e radicalizar distinções. Contudo, por mais radicais que sejam estas distin‑

ções e por mais dramáticas que possam ser as consequências de estar de um 

ou do outro dos lados destas distinções, elas têm em comum o facto de 

pertencerem a este lado da linha e de se combinarem para tornar invisível 

a linha abissal na qual estão fundadas. As distinções intensamente visíveis 

que estruturam a realidade social deste lado da linha baseiam‑se na invisi‑

bilidade das distinções entre este e o outro lado da linha. 



  Sobre a sociologia das ausências como crítica à produção de realidade não existente pelo pensa‑



mento hegemónico, ver Santos, 000, 00b, 004, 006b e 006c.



  Esta tensão representa o outro lado da discrepância moderna entre as experiências actuais e as 



expectativas quanto ao futuro, também expressas no mote positivista da “ordem e progresso”.      

O pilar da regulação social é constituído pelo princípio do Estado, princípio da comunidade e 

princípio do mercado, enquanto o pilar da emancipação consiste nas três lógicas da racionalidade: 

a racionalidade estético‑expressiva das artes e literatura, a racionalidade instrumental‑cognitiva da 

ciência e tecnologia e a racionalidade moral‑prática da ética e do direito (Santos, 995: ). Ver 

também Santos, 000 e 00.




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