Novos poemas



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JORGE DE LIMA

Novos Poemas

Poemas Escolhidos

Poemas Negros



© by Editora Nova Aguilar S.A.


Rua Dona Mariana, 250, casa I — Botafogo

CEP: 22280-020 - Rio de Janeiro, RJ

Tel/Fax: 537-7189 - 537-8275
Capa:

Victor Burton


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE.

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.


L698n


Lima, Jorge de, 1893-1953

Novos poemas ; Poemas escolhidos ; Poemas negros / Jorge de Lima. — Rio de Janeiro : Lacerda Ed., 1997.


ISBN 85-7384-003-X
1. Poesia brasileira. I. Título : Novos poemas. II. Título : Poemas escolhi­dos. III. Título : Poemas negros.

97- 0481 CDD 869.91

CDU 869.0(81)-1

Nota editorial


A trajetória da poesia de Jorge de Lima pode ser dividida em quatro fases, com mais clara ou mais sutil diferenciação. Nascido em 1893, a primeira feição do poeta alagoano — nos poemas dispersos ou nos do livro de estréia, XIV alexandrinos — é a de um ortodoxo neoparnasiano. A influência de Bilac é evidente, sobretudo nas chaves de ouro, com a antítese característica: “Mudo que quer ter voz e ao ter voz quer ser mudo!”; “A Ciência que sonha e o verso que investiga.”; “O rir bom de Jesus e o riso mau de Judas.”, etc. Curiosamente, em um soneto de 1913, “Meu decassílabo”, descobrimos, na mesma época, a mais direta influência de Augusto dos Anjos: “Como às vezes no Bom surge uma inata / E atávica tendên­cia de ser fera...”; — “Herdeiro dos pavores do Selvagem / E dos vícios, das dores, das desgraças / Originárias de milhões de raças...”

Em 1925, subitamente, acontece a adesão ao Modernismo, com o poema “O mundo do menino impossível”, republicado em Poemas, em 1927. Neste livro, assim como em Novos poe­mas, de 1929, Poemas escolhidos, de 1932, e Poemas negros, só reunidos em 1947, encontramos a segunda fase, ortodoxa­mente modernista, de Jorge de Lima. A temática regional, o coloquialismo da língua, o folclorismo, a enumeração de um léxico típico, do topomínico ao onomástico e ao culinário, ca­racterizam o estilo dessa segunda fase, marcada também por um constante interesse temático pelo elemento negro, que a singulariza em relação a diversas individualidades poéti­cas então preocupadas com uma redescoberta do Brasil, por mais distante que tudo isso esteja, paradoxalmente, do que pelo resto do mundo significou a expressão “modernismo”.

Em Tempo e eternidade, de 1935, escrito em parceria com Murilo Mendes, aparece o católico militante, que dominaria a terceira fase. Há um sopro bíblico claramente identificado, uma caudal claudeliana, neste livro, assim como no que lhe sucede, A túnica inconsútil, de 1938, ao lado de uma sensível aproximação ao Surrealismo.

Em Anunciação e encontro de Mira-Celi, esse elemento sur­realista, mais universal e — ainda que totalmente católico — menos explicitamente militante, dá início ao que poderíamos caracterizar como quarta e última fase. Estas características — o uso cada vez maior do inconsciente, o universalismo e a aproximação da poesia pura — se radicalizariam nas duas últi­mas obras, o Livro de sonetos, de 1949, e o enorme conjunto lírico de A invenção de Orfeu, de 1952.

Na presente edição, reunindo os Novos poemas, Poemas es­colhidos e Poemas negros, encontrará o leitor a feição mais típi­ca do Jorge de Lima da segunda fase, o regionalista e folclorista, que conquistou todo o Brasil com a sua irresistível “Ne­gra Fulô”.

Os Editores

Novos Poemas



A

Isolina

e Heráclito Belfort

Gomes de Sousa

Essa negra Fulô


Ora, se deu que chegou

(isso já faz muito tempo)

no bangüê dum meu avô

uma negra bonitinha

chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

— Vai forrar a minha cama,

pentear os meus cabelos,

vem ajudar a tirar

a minha roupa, Fulô!


Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô

ficou logo pra mucama,

para vigiar a Sinhá

pra engomar pro Sinhô!


Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

vem me ajudar, ó Fulô,

vem abanar o meu corpo

que eu estou suada, Fulô!

vem coçar minha coceira,

vem me catar cafuné,

vem balançar minha rede,

vem me contar uma história,

que eu estou com sono, Fulô!


Essa negra Fulô!
“Era um dia uma princesa

que vivia num castelo

que possuía um vestido

com os peixinhos do mar.

Entrou na perna dum pato

saiu na perna dum pinto

o Rei-Sinhô me mandou

que vos contasse mais cinco.”


Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!


Ó Fulô? Ó Fulô?

Vai botar para dormir

esses meninos, Fulô!

“Minha mãe me penteou

minha madrasta me enterrou

pelos figos da figueira

que o Sabiá beliscou.”
Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!


Fulô? Ó Fulô?

(Era a fala da Sinhá

chamando a Negra Fulô.)

Cadê meu frasco de cheiro

que teu Sinhô me mandou?
— Ah! foi você que roubou!

Ah! foi você que roubou!

O Sinhô foi ver a negra

levar couro do feitor.

A negra tirou a roupa.

O Sinhô disse: Fulô!

(A vista se escureceu

que nem a negra Fulô.)


Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!


Ó Fulô? Ó Fulô?

Cadê meu lenço de rendas

cadê meu cinto, meu broche,

cadê meu terço de ouro

que teu Sinhô me mandou?

Ah! foi você que roubou.

Ah! foi você que roubou.
Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!


O Sinhô foi açoitar

sozinho a negra Fulô.

A negra tirou a saia

e tirou o cabeção,

de dentro dele pulou

nuinha a negra Fulô


Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!


Ó Fulô? Ó Fulô?

Cadê, cadê teu Sinhô

que nosso Senhor me mandou?

Ah! foi você que roubou,

foi você, negra Fulô?
Essa negra Fulô!

Serra da barriga


Serra da Barriga!

Barriga de negra-mina!

As outras montanhas se cobrem de neve,

de noiva, de nuvem, de verde!

E tu, de Loanda, de panos-da-costa,

de argolas, de contas, de quilombos!


Serra da Barriga!

Te vejo da casa em que nasci.

Que medo danado de negro fujão!
Serra da Barriga, buchuda, redonda,

do jeito de mama, de anca, de ventre de negra!

Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!

Cadê teus bumbuns, teus sambas, teus jongos?

Serra da Barriga,

Serra da Barriga, as tuas noite de mandinga,

cheirando a maconha, cheirando a liamba?

Os teus meios-dias: tibum nos peraus!

Tibum nas lagoas!
Pixains que saem secos, cobrindo

sovacos de sucupira,

barrigas de baraúna!

Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!

De noite: tantas, curros-curros

e bumbas, batuques e baques!

E bumbas!

E cucas: ô ô!

E bantos: ê ê!

Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos!

Aqui é Zumbi!

Barriga da África! Serra da minha terra!

Te vejo bulindo, mexendo, gozando Zumbi!

Depois, minha serra, tu desabando, caindo,

levando nos braços Zumbi!

Comidas
Comer efó,

pimenta, jiló!

Iaiá me coma,

sou quimbombô!

Cobrei sustância

com mocotó!

Iaiá me diga,

nessa comida

você botou

mulata em pó?
Iaiá me coma

sou quimbombô!


Ai Bahia de Todos os Santos,

até nos pecados das comidas,

você botou nome santo?
Papos-de-anjo,

Peitinhos-de-freira,

Quindins-de-convento,

Fatias-da-sé!


Ai! Bahia de Todos os Santos,

o poema das suas comidas

foi São Benedito quem lhe ensinou?
Baba-de-moça,

Olho-de-sogra,

Levanta-marido,

Fatias-paridas,

Trouxinhas, Suspiros,

e Mimos-do-céu!


Bahia, estas comidas têm mandinga!

Bahia, esse tempeiro tem mocó!

Lá vem tabuleiro!

Cocadas, pipocas!

Lá vem verdureiro:

Pimenta, jiló!

Lá vem Frei Tomé:

Barriga-de-freira,

Toicinho-do-céu!
Bênção, Frei Tomé!

Moqueca, dendê,

Arroz com efó,

Pimenta, jiló!


Me coma Iaiá

que eu sou quimbombô!

que eu sou quimbombô!
Lá vem tabuleiro

de amendoim!

Comidas gostosas

mexidas por mim!


Me compre Iaiá

por São Bom Jesus

Senhor do Bonfim!

Maleita
Lá vem maroim, lá vem carapanã,

lá vem muriçoca sambando com pium.

A terra está suando poças d’água,

a lagoa está dormindo,

o caboclo está tremendo, está sambando com pium.

Minha madrasta Maleita foi você que me enterrou.

Quem sabe se por um figo que o destino beliscou?

Manda um rabinho da seca de 77, meu São Sol,

pra secar estas lagoas,

pra esquentar esta maleita.

Mas vem correndo um vento frio

e até a água se arrepia.
O caboclo está tremendo,

está sambando com pium!

Inverno
Zefa, chegou o inverno!

Formigas-de-asas e tanajuras!

Chegou o inverno!

Lama e mais lama,

chuva e mais chuva, Zefa!

Vai nascer tudo, Zefa!

Vai haver verde,

verde do bom,

verde nos galhos,

verde na terra,

verde em ti, Zefa,

que eu quero bem!

Formigas-de-asas e tanajuras!

O rio cheio,

barrigas cheias,

mulheres cheias, Zefa!

Águas nas locas,

pitus gostosos,

carás, cabojes,

e chuva e mais chuva!

Vai nascer tudo:

milho, feijão,

até de novo

teu coração, Zefa!

Formigas-de-asas e tanajuras!

Chegou o inverno!

Chuva e mais chuva!

Vai casar tudo,

moça e viúva!
Chegou o inverno!

Covas bem fundas

pra enterrar cana;

cana caiana e flor de Cuba!

Terra tão mole

que as enxadas

nela se afundam

com olho e tudo!

Leite e mais leite

pra requeijões!

Cargas de imbu!

Em junho o milho,

milho e canjica

pra São João!

E tudo isto, Zefa...

E mais gostoso

que isso tudo:

noites de frio,

lá fora o escuro,

lá fora a chuva,

trovão, corisco,

terras-caídas,

corgos gemendo,

os caborés gemendo,

os caborés piando, Zefa!

Os cururus cantando, Zefa!

Dentro da nossa

casa de palha:

carne-de-sol

chia nas brasas,

farinha-d’água,

café, cigarro,

cachaça, Zefa...

... rede gemendo...


Tempo gostoso!

Vai nascer tudo!

Lá fora chuva,

chuva e mais chuva,

trovão, corisco,

terras-caídas

e vento e chuva,

chuva e mais chuva!

Mas tudo isso, Zefa,

vamos dizer,

só com os poderes

de Jesus Cristo!

Madorna de Iaiá
Iaiá está na rede de tucum.

A mucama de Iaiá tange os piuns,

balança a rede,

canta um lundum

tão bambo, tão molengo, tão dengoso,

que Iaiá tem vontade de dormir.


Com quem?
Ram-rem.
Que preguiça, que calor!

Iaiá tira a camisa,

toma aluá,

prende o cocó,

limpa o suor,

pula pra rede.


Mas que cheiro gostoso tem Iaiá!

Que vontade doida de dormir...


Com quem?
Cheiro de mel da casa das caldeiras!

O sagüim de Iaiá dorme num coco.


Iaiá ferra no sono,

pende a cabeça,

abre-se a rede,

como uma ingá.

Pára a mucama de cantar,

tange os piuns,

cala o ram-rem,

abre a janela,

olha o curral:

— um bruto sossego no curral!


Muito longe uma peitica faz si-dó...

si-dó... si-dó... si-dó...


Antes que Iaiá corte a madorna,

a moleca de Iaiá

balança a rede,

tange os piuns,

canta um lundum

tão bambo,

tão molengo,

tão dengoso,

que Iaiá sem se acordar,

se coça,

se estira

e se abre toda, na rede de tucum.

Sonha com quem?

Diabo brasileiro


Enxofre, botijas, galinha preta!

Credo em cruz, capeta, pé-de-pato!

Diabo brasileiro, dente-de-ouro, botija, onde está?

Credo, capeta, pé-de-pato!


Diabo brasileiro quero saber quando dá

a dezena do carneiro?

Enxofre, botija, galinha preta!

Credo em cruz, capeta, pé-de-pato!


Capeta, dente-de-ouro, tome galinha preta,

quero dormir com a Zefa!

Capeta, bode preto, quero dormir com a Zefa!
Capeta, diabo brasileiro, só lhe dou galinha preta!

Capeta, quero casar com a Zefa, quero que Sêo Vigário

me case logo com a Zefa!
Capeta tome galinha preta!

Capeta, diabo brasileiro, quando dá

a centena do macaco?

Quero quebrar banqueiro, capeta danado, pé-de-pato,

dente-de-ouro, cheiro de enxofre, tome galinha preta!

Capeta, pé-de-pato, quero acertar com o bicho,

quero comprar gravata, botina de bico fino,

terno de casimira pra quando a Zefa me ver!

Capeta, pé-de-pato, tome galinha preta!
Capeta, pé-de-pato, dente-de-ouro, quero dente de ouro,

quero capa de borracha, punho engomado, camisa,

bengala castão de ouro, capeta, pé-de-pato

tome galinha-preta!

Quero saber suas partes, suas sabedorias,

quero saber mandingas,

capeta, pé-de-pato, tome galinha preta,

que eu quero quebrar banqueiro, que eu quero tirar botija,

que eu não quero trabalhar, que eu também sou brasileiro!
Capeta, tome galinha preta,

que eu quero saber embolada,

quero saber martelo, quero ser um cantador,

capeta, quero dizer à Zefa essa quentura de amor!

Capeta, tome galinha preta, que eu quero casar com a Zefa.

Por Deus, que eu quero, capeta, pé-de-pato!

Tome galinha preta!

Santa Rita Durão


Durão! que apelido bom para um caboclo pachola,

caboclo de bagaceira ou cangaceiro do sertão,

capaz de bancar Caramuru no bando de Lampião!
Mas teu Brasil, Caramuru, não tem sertão,

nem sul, nem norte, nem no teu mato

há catolé, oiticoró, cabaço de marimba, barbatimão!
Nas tuas roças não tem banana-samburá,

não tem mandioca-gomo-roxo, não tem feijão mulatinho,

não tem nada, Sêo Durão!
Nos teus caminhos não há malmequeres,

flor-de-relógio, vassoura-de-botão,

não há, Sêo Durão,

essa florzinha espia-caminho que moça não pode ver!


As tuas semanas-santas não têm flores-de-quaresma

para alegrar Nossa Senhora que perdeu Nosso Senhor!

As tuas frutas são como essas frutas de cera

(enfeites de certas mesas).


As tuas caatingas não têm burras-leiteiras

que dão leite,

não têm pau-sangue que verte sangue,

que nem cabocla, todas as luas,

não têm peitinhos de jaracatiás,

não têm beijos de maracujás-de-estalo,

não têm imbés

chupando troncos de baraúnas tão grossas,

tão pretas como pretas-minas!
E os teus quintais não têm, plantado

num caco de panela,

um pé de saudade roxa, pra o enterro dos manezinhos

que se não morressem (quem sabe, Sêo Durão?),

poderiam ser cangaceiros do grupo de Lampião.

E agora,
agora vão ser anjinhos pra glória de Deus!

Amém!

Joaquina maluca


Joaquina Maluca, você ficou lesa

não sei por que foi!

Você tem um resto de graça menina,

na boca, nos peitos,

não sei onde é...
Joaquina Maluca, você ficou lesa,

não é?


Talvez pra não ver

o que o mundo lhe faz.

Você ficou lesa, não foi?

Talvez pra não ver o que o mundo lhe fez.

Joaquina Maluca, você foi bonita, não foi?

Você tem um resto de graça menina

não sei onde é...
Tão suja de vício,

nem sabe o que o foi.

Tão lesa, tão pura, tão limpa de culpa,

nem sabe o que é!

Os cavalinho
Os cavalinhos ficam nas noites de festa

dentro das mil e uma noites.

Eles rodam, rodam, rodam,

marcam na terra o limite do mundo.


Eles levam os mais belos guerreiros!
Que felizes guerreiros!

As suas damas vão com eles à peleja!

E em vez dos cavalinhos irem pelo mundo,

o mundo é que vem rodar

em torno dos cavalinhos.
O realejo toca.

As damas estão alegres.

Os cavaleiros riem.
Poeta, para onde te levaram

os teus corcéis?

Minha sombra
De manhã a minha sombra

com meu papagaio e o meu macaco

começam a me arremedar.

E quando eu saio

a minha sombra vai comigo

fazendo o que eu faço

seguindo os meus passos.
Depois é meio-dia.

E a minha sombra fica do tamaninho

de quando eu era menino.

Depois é tardinha.

E a minha sombra tão comprida

brinca de pernas de pau.


Minha sombra, eu só queria

ter o humor que você tem,

ter a sua meninice,

ser igualzinho a você.


E de noite quando escrevo,

fazer como você faz,

como eu fazia em criança:

Minha sombra

você põe a sua mão

por baixo da minha mão,

vai cobrindo o rascunho dos meus poemas

sem saber ler e escrever.

Domingo
“Amanhã é domingo pede cachimbo.

O galo monteiro pisou na areia.

A areia é fina deu no sino.

O sino é de prata deu na mata.

A mata é valente deu no tenente.

O tenente é mofino deu no menino.

O menino é carolho furou teu olho.”
Ah! que saudades que eu tenho

da aurora de minha vida!

Ah! Casimiro, a aurora de minha vida

foi um domingo bonito:

Logo cedo o galo monteiro cantava no pátio

e a aurora saía do canto do galo

e o Zuza da Lica, tenente da guarda,

de quepe nos olhos, botões areados,

rondava fumando a casa da Aurora!

(Aurora Carvalho — cunhada do padre!)


O sino da igreja chamava pra missa.

A areia era fina nos pés sem sapatos.

E a gente trepava na torre da igreja

e o sino da igreja cantava tão alto

que o galo monteiro olhava de baixo

ciscando na areia com inveja do sino,

e a mata escutava o canto de prata.

Somente o tenente ficava danado,

subia na torre atrás do menino!

Os olhos carolhos olhavam de cima:

Tenente mofino! Tenente mofino!
“Amanhã é domingo pede cachimbo.

O galo montês pisou na areia.

A areia é fina deu no sino.

O sino é de prata deu na mata.

A mata é valente deu no tenente.

O tenente é mofino deu no menino.

O menino é carolho furou teu olho.”

Flos sanctorum
Santa Bárbara que nos livra do corisco.

São Bento que cura mordida de cobra,

São Gonçalo casador.

São Jorge que me cedeu o seu nome

pra meu pai me batizar,

que escolheu o seu dia

pra eu chegar nesse mundo,

que só não me deu seu cavalo

porque o pobre do bichinho

não podia descer da lua!


Pulei tanta tacha de engenho,

passei tanta correnteza,

conheci tanto perau fundo!
E você, meu anjo-da-guarda,

nunca me disse seu nome,

pra eu fazer um poeminha pra você!

Louvado
Louvado seja N.S. Jesus Cristo

e a Mãe d’Ele — Nossa Senhora, minha madrinha.


Louvado seja o que é d’Ele e d’Ele vem:

ritos, amitos, benditos, são beneditos!


Louvadas sejam suas palavras tão bonitas:

Glória Patri, Aleluia, salve-rainha

e também suas palavras misteriosas:



per omnia scecula, vita cetema, amen.
Louvado seja este “louvado” em nome d’Ele

e mais louvado que esse louvado — Jesus Cristo

mas a Mãe d’Ele — Nossa Senhora, minha madrinha.
Louvadas sejam as virtudes teologais

e entre elas três seja louvada a Fé.


Louvados sejam os santos nacionais

martirizados pelos caetés.


Louvadas sejam as coisas religiosas:

santas missões e procissões, sermões.


Louvado seja o meu país cristão

pelo tempo da Páscoa descoberto

todo enfeitado como um céu aberto.
Louvado seja esse Jesus daqui.

Jesus camarada, Cristo bonzão,

a quem todo brasileiro ofende tanto

contando sempre com o seu perdão.

Poema de duas mãozinhas
E aquelas mãozinhas,

tão leves,

tão brancas,

riscavam as paredes,

quebravam os bonecos,

armavam castelos de areia

na praia,

viviam as duas

qual João mais Maria.
A boca da noite

o Cata-piolhos

rezava baixinho:
“Pelo sinal

da Santa Cruz

livre-nos Deus

Nosso Senhor”.


E aquelas mãozinhas

dormiam unidinhas

qual João mais Maria.
“Dedo-mindinho,

Sêo vizinho,

o Pai-de-todos,

Sêo Fura-bolos,

Cata-piolhos,

quede o toicinho?

— o gato comeu.”
Mas noites de lua

cheinhas de estrelas,

Sêo Fura-bolos

contava as estrelas...

O Pai-de-todos

cuidava dos outros:

nasciam berrugas

no Cata-piolhos,


E aquelas mãozinhas

viviam sujinhas

qual João mais Maria...
Um dia (que dia!)

o Dedo-mindinho

feriu se num espinho...

E à boca da noite

o Cata-piolhos deixou de rezar;
e João mais Maria, juntinhos,

ligados,


pararam em cruz

cobertos de fitas

que nem dois bonecos

sem molas, quebrados...


Quem compra um boneco da loja de Deus?

Mês de maio


Mês de maio!

Ai! mês bem feito

que tem o dia primeiro

pra ser Dia do Trabalho.


Comemorando este dia

vamos todos descansar!


Mês de maio, mês de maio,

ai, mesinho brasileiro!

O Brasil quis fazer anos

escolheu seu dia três. —


Comemorando este dia

vamos, meu bem, descansar!


Mês de maio, fora os domingos,

fora os dias emprensados

que a gente deve guardar,

tem dia santo de guarda

que é o dia nove de maio,

tem o maior dia santo

dia do Corpo de Deus.

Comemorando esses dias

o brasileiro só deve

pensar mesmo em descansar!

Quem trabalhou mais que Pai João

cavando a terra com a enxada?

Dia 13 de Pai João!

Meu bem... vamos nos deitar?


Mês de maio, mês santinho!

Nossa Senhora escolheu

este mês pra ser mês dela...
Nossa Senhora não deixe

este mesinho acabar.

Meus olhos
Nossa Senhora, minha madrinha,

tu vês as coisas verdes, não é?

Meus olhos pretos, coitados deles!

Teus olhos verdes, felizes deles,

minha madrinha, Nossa Senhora da Conceição!
Nossa Senhora, dá-me teus olhos

para eu ver com eles meus pobres olhos.

Coitados deles, minha madrinha,

só vêem as coisas como elas são.


Nossa Senhora, minha madrinha

pinta meus olhos, que eu quero ver

verdes os dias que inda virão.

Nossa Senhora, minha madrinha,

tu vês as coisas verdes, não é?
Teus olhos verdes, felizes deles!

Meus olhos pretos, cor de carvão!

Nossa Senhora, minha madrinha,

tu vês meus olhos como eles são?

Credo
“Padre nosso que estás no Céu,”

perdi meu Credo que tu me deste.

Eu era menino: Creio em Deus Padre...

Que força me dava a tua oração!

Santa Maria, mãe de Jesus,

perdi as armas que Deus me deu!

“Padre Nosso que estás no céu,”

santificado seja teu nome,

seja feita — a tua vontade,

e faze que eu ache meu credo de novo!

Eu era menino: Creio em Deus Padre...

Que força me dava a tua oração!

Santa Maria, mãe de Jesus,

procura pra mim, meu Creio em Deus Padre,

Santa Maria, mãe de Jesus!

Cantigas
As cantigas lavam a roupa das lavadeiras.

As cantigas são tão bonitas,

que as lavadeiras ficam tão tristes, tão pensativas!


As cantigas tangem os bois dos boiadeiros! —

Os bois são morosos, a carga é tão grande!

O caminho é tão comprido que não tem fim.

As cantigas são leves...

E as cantigas levam os bois,

batem a roupa

das lavadeiras.
As almas negras pesam tanto, são

tão sujas como a roupa, tão pesadas

como os bois...

As cantigas são tão boas...

Lavam as almas dos pecadores!

Levam as almas dos pecadores!

Salmo
Ó Deus,

está no Livro:

1º Louvai ao Senhor no seu santuário; louvai-o

no firmamento de sua virtude;

2º Louvai-o nas virtudes dele; louvai-o

segundo a multidão de sua grandeza;

3º Louvai-o ao som da trombeta; louvai-o

com saltério e citara;

4º Louvai-o com adufe e frauta;

louvai-o com cordas e órgão;

5º Louvai-o com címbalos sonoros, louvai-o

com címbalos de júbilo;

6º Todo espírito louve o Senhor. Aleluia!
Senhor,

Címbalos e cítaras não tenho não!

Mas vou fazer uma procissão pra você, Senhor.

Pra seu Menino, vou fazer uma novena!

Ladainhas pra sua Mamãe, Senhor!

Aceite, meu Deusinho!

É Abel, quem está lhe dando!

Meu país
O País mais novo deste mundo

eras tu, meu País!

Entretanto, Deus amado,

meus pés correram descalços,

pelo meu País.

E enfim

eu não sei se sou feliz



ou se sou infeliz.

Sei que estou olhando pra cima,

para o vosso País!
E o País mais novo deste mundo

eras tu, meu País!


Deus amado,

eu tenho a curiosidade

dos navegadores, pelo vosso País!

Os meus olhos-marujos dizem:

— É ali! É ali!

Contai aos marujos, Deus amado,

as histórias encantadas desse vosso País!
Deus amado, eu um dia,

prometo, irei ver esse vosso País!

Quero olhar, lá de cima, o meu velho País!

Poemas Escolhidos

(1925 a 1930)

Nordeste
Nordeste, terra de São Sol!

Irmã enchente, vamos dar graças a Nosso Senhor,

que a minha madrasta Seca torrou seus anjinhos

para os comer.

São Tomás passou por aqui?

Passou, sim senhor!

Pajeú! Pajeú!

Vamos lavar Pedra Bonita, meus irmãos,

com o sangue de mil meninos, amém!

D. Sebastião ressuscitou!

S. Tomé passou por aqui?

Passou, sim senhor.

Terra de Deus! Terra de minha bisavó

que dançou uma valsa com D. Pedro II.

São Tomé passou por aqui?

Tranca a porta, gente, Cabeleira aí vem!

Sertão! Pedra Bonita!

Tragam uma virgem para D. Lampião!

Enchente
— Por que as jandaias e os periquitos estão gritando como os

[meninos do Grupo, na hora de vadiar?

— É uma cabeça de enchente que veio ontem de tardei

E o rio deu pra falar grosso

e bancar Zé-pabulagem:

— “Não duvide que eu levo

a sua almofada de fazer renda, minha velha!”


E o rio cresceu. Entrou na camarinha

e lá se foi com a almofada da velha!

— “Deus te favoreça, meu filho,

você, ainda outro dia, era tão manso,

lavava até os pratos de minha cozinha!”
— “Não duvide, seu canoeiro

que eu emborco a sua canoa!”

E rodou com o canoeiro

e virou a canoa mesmo.

E entrou nos fundos das casas

e saiu nas portas da rua.

Subiu no olho da ingazeira,

tirou ingá e comeu.

Pulou das pedras embaixo,

espumando como um doido.

Fez até medo às piabas, que correram

pra os barreiros.


Só os meninos estão satisfeitos:

— “Deus permita que o rio encha mais!”

— “Deus permita que o rio encha mais!”

Quando o rio entrar na rua,

as salas de visita serão banheiros.

Eles deitarão barquinhos de cima das janelas,

e a professora fechará a escola!
— “Deus permita que o rio encha mais!”

— “Deus permita que o rio encha mais!”

Arranha-céu
O campeão mundial de misticismo,

que tinha batido o record de comunhões

do corpo do Senhor,

quis, naquela época avançada,

subir no elevador

para ver o céu.


O campeão foi pelos andares

parando...

parando...

sempre em linha vertical.


Viu, no centésimo,

o campeão da ondulação permanente;

viu outros ases,

outros heróis extraordinários.


No derradeiro parou:

Nem um anjo.

Então desceu,

desceu,


desceu

e atravessou o asfalto

com um medo danado

de morrer sem confissão

debaixo dos autos.

Cristo Redentor do Corcovado


O avô de minha avó

morreu também corcovado

carregando um Cristo de maçaranduba

que protegia os passos vagarosos da família.


Arranjei velocidade.

Virei homem de cimento armado.


Adoro esse Cristo turista

de braços abertos

que procura equilíbrio

na montanha brasileira.


Os homens de Fé têm esperança n’Ele,

porque Ele é ligeiro, porque Ele é ubíquo,

porque Ele é imutável.
Ele acompanha o homem de cimento armado

através de todas as substâncias,

através de todas as perspectivas,

através de todas as distâncias.

Poema de Natal
O meu Jesus, quando você

ficar assim maiorzinho

venha para darmos um passeio

que eu também gosto das crianças.


Iremos ver as feras mansas

que há no jardim zoológico.

E em qualquer dia feriado

iremos, então, por exemplo,

ver Cristo Rei do Corcovado.
E quem passar

vendo o menino

há de dizer: ali vai o filho

de Nossa Senhora da Conceição!


— Aquele menino que vai ali

(diversos homens logo dirão)

sabe mais coisas que todos nós!

— Bom dia, Jesus! — dirá uma voz.


E outras vozes cochicharão:

— É o belo menino que está no livro

da minha primeira comunhão!
— Como está forte! — Nada mudou!

— Que boa saúde! Que boas cores!

(Dirão adiante outros senhores.)

Mas outra gente de aspecto vário

há de dizer ao ver você:

— É o menino do carpinteiro!


E vendo esses modos de operário

que sai aos domingos pra passear,

nos convidarão para irmos juntos

os camaradas visitar.


E quando voltarmos

pra casa, à noite,

e forem pra o vício dos pecadores,

eles sem dúvida me convidarão.


Eu hei de inventar pretextos sutis

pra você me deixar sozinho ir.

Menino Jesus, miserere nobis,

segure com força a minha mão.

Ave Maria
Boa tarde ó meu caminho estreito

por onde os últimos da vila vão!

Boa tarde, avozinhas,

Boa tarde, avozinhas,

me dai uma história do vosso surrão!
Me dai a Princesa Morgana-Vilão,

que eu sem história não durmo não!


Ai que há noites mais temporãs,

mais frias, mais tristes que as outras noites!


Boa tarde, avozinha, onde é que eu me acoito

da minha própria inquietação?


Boa tarde, avozinhas, boa tarde, avozinhas,

as últimas andorinhas lá vão!

As vossas mãos, avozinhas,

onde é que estão?


Adeus, adeus, caminho estreito!
Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós...

Blão!


Balada
Os camponeses tinham ceifado a floresta das chaminés

para ver seus irmãos operários,

para ver no meio deles

o de 7 anos: — Vladimir Ilitch — o irmão do enforcado,

para ver o Volga,

para ver Kazan,

para ver religiosamente Simbirsk,

para ver a irmã de Oulianov

costurando ao lado do irmão que lê,

que lê todas as vírgulas de Marx. —

Os camponeses tinham fome de paisagens humanas.

(Plekanov é uma sombra amorosa.)

A irmã de Oulianov costura ao lado do irmão

que lê todas as vírgulas de Marx. —


Oferta
Perdão Vladimir,

a tua irmã se feriu no dedo.

Para mim todas as dores têm tamanho.

Experimenta se as minhas mãos são leves

para fazer um penso.

Fim
Pararam as máquinas! Eita!

Gritos, choros, pragas! Eita!

— Foi o filho do operário, que uma roda matou.

— Não, não foi. Foi a máquina que matou o burguês e a

[família dele não há.

O filho pródigo
Nas engrenagens das fábricas

bolem como vermes — dedos decepados de operários.

Há intestinos rotos de crianças

nos vaivéns do correame das oficinas.

A cor e a alegria das moças empregadas

dissolvem-se na algazarra monótona dos teares.

O avião comeu a saudade das mães

que a distância separou dos filhos vagabundos.

Há máquinas que cegam os adolescentes

ansiosos de ver o progresso do mundo.


Um homem teve medo de enlouquecer

perseguido pela força e pelo orgulho

das máquinas assassinas.
Cadê a luz trêmula de vela

pra alumiar o meu poema antigo?

O lirismo perdeu a sua liturgia.
As lâmpadas Osram velam funebremente a poesia.

Ah! que existe uma tristeza na terra

que nem lágrimas produz

de sua esterilidade tão seca.


Eu sou um corpo distraído.
Bóiam os meus olhos pelas superfícies.

Mas os meus olhos correm mais perigo

do que se andassem em acrobacias contemplativas

pulando no céu alto, perto das estrelas.


Vovozinha, venho de longe,

ando há muitos séculos a pé.


Ensina-me de novo a ficar de joelhos,

que já é tarde e eu quero me deitar.

Poema relativo
Vem, ó bem-amada.

Junto à minha casa

tem um regato (até quieto o regato).
Não tem pássaros, que pena!

Mas os coqueiros fazem,

quando o vento passa,

um barulho que às vezes parece

bate-bate de asas.
Supõe, ó bem-amada,

se o vento não sopra,

podem vir borboletas

à procura das minhas jarras

onde há flores debruçadas,

tão debruçadas que parecem escutar.


Todos os homens têm seus crentes,

ó bem-amada:

— os que pregam o amor ao próximo

e os que pregam a morte dele.


Mas tudo é pequeno

e ligeiro no mundo, ó amada.

Só o clamor dos desgraçados

é cada vez mais imenso!


Vem, ó bem-amada.

Junto à minha casa

tem um regato até manso.

E os teus passos podem ir devagar

pelos caminhos:

aqui não há a inquietação

de se atravessar o asfalto.
Vem, ó bem-amada,

porque, como te disse,

se não há pássaros no meu parque,

pode ser, se o vento

não soprar forte,

que venham borboletas.

Tudo é relativo

e incerto no mundo.

Também tuas sobrancelhas

parecem asas abertas.

Mulher proletária
Mulher proletária — única fábrica

que o operário tem, (fábrica de filhos)

tu

na tua superprodução de máquina humana



forneces anjos para o Senhor Jesus,

forneces braços para o senhor burguês.


Mulher proletária,

o operário, teu proprietário

há de ver, há de ver:

a tua produção,

a tua superprodução,

ao contrário das máquinas burguesas

salvar teu proprietário.

Felicidade


Tão bonita a Lagoa Mundaú!

Eu vi os meninos pobres que iam tirar sururu.

Um bando deles. Uns tinham doze ou treze anos e pareciam

[ter oito.

Amarelos. Perto da Satuba tem um massapê ótimo.

Eles amassam, amassam, fazem balas.

Cozidas são mais gostosas que sururu. E quem não sabe comer

[barro não sabe tirar sururu, com gosto.

Comer terra! Quando a bala vermelhinha cor de telha toca na

[língua a boca se enche d’água para a bala se embeber.

Os meninos amarelos têm água por demais na boca.

Gosto de terra não é gosto de comida, de sal, de açúcar, de

[carne. É gosto diferente. De terra! É um gosto doente

[como gosto de maleita.

Também quem não tem maleita não sabe tirar sururu com

[gosto.


O frio da maleita não se importa com sol nem com chuva nem

[com o frio que está por fora da gente, no ar.

É um frio que vem de dentro.

Dá-se a mão e a mão está com 40. Mas o frio é bom porque é

[diferente dos outros frios.

Os meninos que vão tirar sururu têm os olhos sumidos.

Mãe-maleita dorme com eles no jirau de pau-cundu. Mãe-

[maleita dá-lhes sonhos de febre.

Os meninos sonham coisas doidas. Que uma inglesinha que

[passou uma vez numa lancha-automóvel veio urinar

[no massapê.

Eles sentem o gosto da inglesinha, sonhando com o gosto do

[massapê mijado.

Têm outros sonhos, todos gostosos.

Os meninos tiram sururu com gosto. Ao meio dia o sol tine. A

[água está morna e suja.

Ali pertinho já é a lama do sururu. Que gosto pisar na lama!

É diferente de pisar nas praias, na neve, na grama.

Os pés dos meninos têm sensibilidades inéditas. A lama abarca

[o pé, entra entre os dedos, mais grossa do que baba de

[boi, gruda-se na pele, dá uma coceira boa nas frieiras.

Os meninos entram mais. A lama sobe. É uma carícia peganhenta

[pelo corpo.

As mãos descem na lama. As canoas afundam de sururu. O sol

[está tinindo, mas ninguém sente calor.

Tudo é bom. A miséria é boa. A lama é amorosa. Parece que a

[vida é uma feitiçaria de sonho de maleita.

Poema do nadador


A água é falsa, a água é boa.

Nada, nadador!

A água é mansa, a água é doida,

aqui é fria, ali é morna,

a água é fêmea.

Nada, nadador!

A água sobe, a água desce,

a água é mansa, a água é doida.

Nada, nadador!

A água te lambe, a água te abraça

a água te leva, a água te mata.

Nada, nadador!

Senão, que restará de ti, nadador?

Nada, nadador.

Poema à irmã
Ó irmã

agora, que as noites vêm cedo

e paira por tudo

uma tristeza enorme

e o silêncio é tão longo

que os cães enlouquecem nas ruas,

irmã, vem me relembrar

que crescemos juntos

quando os dias eram compridos e diferentes.

Irmã, se tu sabes signos

para mudar o tempo, vem.
Vem que eu quero fugir

para outras paragens

onde as gaivotas sejam menos inúteis

e haja um coração em cada porto;

e os pássaros do mar

tão lavados e tão alvos

e tão lentos e tão sabedores de viagens

venham esvoaçar

sobre o meu cachimbo

em que os cometas do céu se apagaram.

Irmã, nos meus ritmos

há colegas que gritam:

Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas,

vagabundos, crianças,

operários, leprosos e prostitutas que

se lembram ainda de suas orações familiares.

Há não sei onde outros ares e outras serras,

outros limites, adeus irmã.

Ó que noite longa,

Ó que noite tão longa!

Que é que chora lá fora?

— A humanidade ou qualquer fonte?

Poema à bem-amada
Amada, não penses,

escutemos a chuva que o inverno chegou.

Sejamos as árvores que Deus semeou

sem nunca O ouvir, sem nunca O olhar

serenos, morramos sem nos separar.
Renunciemos, amada, os vãos pensamentos,

cumpramos apenas a lei do Senhor

sem nunca O ouvir, sem nunca O tocar,

sem nunca duvidar, duvidar, duvidar.


Soframos, amada, sem nos lamentar.

Sejamos as árvores que Deus esqueceu,

que o vento abalou e o raio abateu.
Amada! Amada!

Bem-aventurado quem já morreu.

Escutemos a chuva,

que a chuva é de Deus!

Poema a Marcel Proust
Ó mon petit Proust,

hoje o teu rosto de lua

desse quadro bonito de Jacques Émile Blanche;

o teu rosto de flor noturna

se apagou, mon petit,

e

dentro de mim voltou,



o sertão, o sertão, o sertão,

pois,


mon petit, no meu país

as polícias passaram

e Lampião ficou;

os governadores passaram,

os congressos, os chefes políticos,

os exércitos,

as repúblicas,

as revoluções,

os grandes generais passaram

e Lampião ficou.

A nova poesia brasileira passou

e Lampião ficou

iluminando tudo

mais que teu rosto de lua

que Jacques Émile Blanche compôs.
É preciso ver:

Lampião é eterno

e é preciso crer na

opinião da Europa: Lampião

tira dos ricos para dar aos pobres.

É preciso crer nas orações fortes,

é preciso crer em Lampião.
Mon petit Proust,

sai do teu salão,

vem ver o meu luar:

não há no mundo

luar como este do sertão.

Volta à casa paterna


É tarde e eu quero entrar em casa,

que a noite vem aí, cheia dos seus espantos.

A luz foi intensa, o dia foi cálido,

o ritmo das horas é monótono e irreal.

As danças do pátio, as paisagens de fora,

os caminhantes são falsos.

Os caminhos são errados.

Os ritmos são errados.

Os poemas são outros.

A noite aí vem cheia dos seus espantos.

Há uma rede aqui dentro que me embalou.

Há na parede da sala uma estampa sagrada

que por mim chorou.

Há um raio de lua no corredor.

Será a alma de meu pai que Deus mandou?
Casa, doce casa sem elevador,

cadê o Ford que me levou?


Há sombras que passam, fantasmas que vão,

que vêm, que choram, que riem, que me beijam...

Há um livro aberto

na minha mesa:


Padre Nosso que estás no céu, santificado,

vem a nós... assim na terra...

Poema à pátria
Ó grande país,

tu aderiste também.

Teus urubus são inquietados

nos teus ares altíssimos pelos aviões.

Nos teus céus os anjos já não podem solfejar,

sufocados de fumaça, importunados pelo pessoal

do Limbo.
Tu vais ficar irremediavelmente

toda América,

irremediavelmente gêmeo,

irremediavelmente comum.

Poemas Negros

Bicho encantado


Este bicho é encantado:

não tem barriga,

não tem tripas,

não tem bofes,

não é maribondo,

não é mangangá,

não é caranguejeira.

Que é que é Janjão?


É a Estrela-do-mar que quer me levar.
Só tem olhos,

só tem sombra.

Babau!

Não é jimbo,



não é muçum,

não é sariema.

Que é que é Janjão?

É a Estrela-do-mar que quer me afogar.


Esse bicho é encantado:

não quer de-comer,

não quer munguzá,

não quer caruru,

não quer quigombô.

Só quer te comer.

Que é que é Janjão?

É a Estrela-do-mar que quer me esconder.

Babau!

Bangüê
Cadê você meu país do Nordeste



que eu não vi nessa Usina Central Leão de minha terra?

Ah! Usina, você engoliu os bangüezinhos do país das Alagoas!

Você é grande, Usina Leão!

Você é forte, Usina Leão!

As suas turbinas têm o diabo no corpo!

Você uiva!

Você geme!

Você grita!

Você está dizendo que U.S.A é grande!

Você está dizendo que U.S.A. é forte!

Você está dizendo que U.S.A. é única!

Mas eu estou dizendo que V. é triste

como uma igreja sem sino,

que você é mesmo como um templo evangélico!

Onde é que está a alegria das bagaceiras?

O cheiro bom do mel borbulhando nas tachas?

A tropa dos pães de açúcar atraindo arapuás?

Onde é que mugem os meus bois trabalhadores?

Onde é que cantam meus caboclos lambanceiros?

Onde é que dormem de papos para o ar os bebedores de resto

[de alambique?

E os senhores de espora?

E as sinhás-donas de cocó?

E os cambiteiros, purgadores, negros queimados na fornalha?

O seu cozinhador, Usina Leão, é esse tal Mister Cox que tira

[da cana o que a cana não pode dar

e que não deixa nem bagaço

com um tiquinho de caldo

para as abelhas chupar!

O meu bangüezinho era tão diferente,

vestidinho de branco, o chapeuzinho do telhado sobre os olhos,

fumando o cigarro do boeiro pra namorar a mata virgem.

Nos domingos tinha missa na capela

e depois da missa uma feira danada:

a zabumba tirando esmola para as almas;

e os cabras de faca de ponta na cintura,

a camisa por fora das calças:

“Mão de milho a pataca!”

“Carretel marca Alexandre a doistões!”

Cadê você meu país de bangüês

com as cantigas da boca da moenda:

“Tomba-cana João que eu já tombei!”

E o eixo de maçaranduba chorando

talvez os estragos que a cachaça ia fazer!

E a casa dos cobres com o seu mestre de açúcar potoqueiro,

com seu banqueiro avinhado

e as tachas de mel escumando,

escumando como cachorro danado.

E o bangüê que só sabia trabalhar cantando,

cantava em cima das tachas:

“Tempera o caldo mulher que a escuma assobe...”

Cadê a sua casa-grande, bangüê,

com as suas Dondons,

com as suas Tetês,

com as suas Benbens,

com as suas Donanas alcoviteiras?

Com seus Totôs e seus Pipius corredores de cavalhada?

E as suas molecas catadoras de piolho,

e as suas negras Calus, que sabiam fazer munguzás,

manuês,


cuscuz,

e suas sinhás dengosas amantes dos banhos de rio

e de redes de franja larga!

Cadê os nomes de você, bangüê?

Maravalha,

Corredor,

Cipó branco,

Fazendinha,

Burrego-dágua,

Menino Deus!

Ah! Usina Leão, você engoliu

os bangüezinhos do país das Alagoas!

Cadê seus quilombos com seus índios armados de flecha,

com seus negros mucufas que sempre acabavam vendidos,

tirando esmola para enterrar o rei do Congo?

“Folga negro

Branco não vem cá!

Si vinhé,

Pau há de levá!”

Você vai morrer, bangüê!

Ainda ontem sêo Major Totonho do Sanharó

esticou a canela.

De noite se tomou uma caninha

pra se ter força de chorar.

E se fez sentinela.

E você, bangüezinho que faz tudo cantando

foi cantar nos ouvidos do defunto:

“Totonho! Totonho!

Ouve a voz de quem te chama

vem buscar aquela alma

que há treis dias te reclama!”

Bangüê! E eu pensei que estavam

cantando nos ouvidos de você:

Bangüê! Bangüê!

Ouve a voz de quem te chama!”

História
Era princesa.

Um libata a adquiriu por um caco de espelho.

Veio encangada para o litoral,

arrastada pelos comboieiros.

Peça muito boa: não faltava um dente

e era mais bonita que qualquer inglesa.

No tombadilho o capitão deflorou-a.

Em nagô elevou a voz para Oxalá.

Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.

Navio guerreiro? não, navio tumbeiro.

Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,

depois foi possuída pelos marinheiros,

depois passou pela alfândega,

depois saiu do Valongo,

entrou no amor do feitor,

apaixonou o Sinhô,

enciumou a Sinhá,

apanhou, apanhou, apanhou,

Fugiu para o mato.

Capitão do campo a levou.

Pegou-se com os orixás:

fez bobó de inhame

para Sinhô comer,

fez aluá para ele beber,

fez mandinga para o Sinhô a amar.

A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:

Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga.

avança na branca e me vinga.

Exu escangalha ela, amofina ela,

amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,

sou só uma mulher perdida neste mundão.

Neste mundão.

Louvado seja Oxalá.

Para sempre seja louvado.

Democracia


Punhos de redes embalaram o meu canto

para adoçar o meu país, ó Whitman.

Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-olhados,

catecismo me ensinou a abraçar os hóspedes,

carumã me alimentou quando eu era criança,

Mãe-negra me contou histórias de bicho,

moleque me ensinou safadezas,

massoca, tapioca, pipoca, tudo comi,

bebi cachaça com caju para limpar-me,

tive maleita, catapora e ínguas,

bicho-de-pé, saudade, poesia;

fiquei aluado, mal-assombrado, tocando maracá,

dizendo coisas, brincando com as crioulas,

vendo espíritos, abusões, mães-d’água,

conversando com os malucos, conversando sozinho,

emprenhando tudo que encontrava,

abraçando as cobras pelos matos,

me misturando, me sumindo, me acabando,

para salvar a minha alma benzida

e meu corpo pintado de urucu,

tatuado de cruzes, de corações, de mãos-ligadas,

de nomes de amor em todas as línguas de branco, de mouro ou

[de pagão.

Retreta do vinte


O cabo mulato balança a batuta,

meneia a cabeça, acorda com a vista

os bombos, as caixas, os baixos e as trompas.
(No centro da Praça o busto de D. Pedro escuta.) —

Batuta pra esquerda: relincham clarins,

requintas, tintins e as vozes meninas da banda do 20.
Batuta à direita: de novo os trombones

e as trompas soluçam. E os bombos e as caixas: ban-ban!

Vêm logo operários, meninas, cafuzas,

mulatos, portugas, vem tudo pra ali.

Vem tudo, parecem formigas de asas

rodando, rodando em torno da luz.


Nos bancos da Praça conversas acesas,

apertos, beijocas, talvezes.


D. Pedro II espia do alto.

(As barbas tão alvas

tão alvas nem sei!)
E os pares passeiam,

parece que dançam,

que dançam ciranda,

em torno do Rei.

Quichimbi sereira negra
Quichimbi sereia negra

bonita como os amores

que tem partes de chigonga

não tem cabelos no corpo,

é lisa que nem muçum,

é ligeira que nem buru

não tem matungo e é donzela,

ao mesmo tempo pariu

jurará sem urucaia.

Quichimbi vive nas ondas

coberta de espuma branca,

dormindo com o boto azul,

conservando a virgindade

tão difícil de sofrer.

Quichimbi segue nas ondas

dez mil anos caminhando,

dez mil anos assistindo

as terras mudar de dono,

o mar servindo de escravo

ao homem branco das terras.

Quichimbi sereia negra

bonita como os amores

dormindo com o boto azul,

não sabe de nada, não.

Zefa lavadeira

(Trecho de A mulher obscura)
Uma trouxa de roupa é um mundo animado de anáguas, de corpinhos, de fronhas, de lençóis e toalhas servis; em resumo: dos homens e suas preocupações.

E qual é a maior força desse mundo? Onde o segredo das suas atividades?

— Olha o amor, Zefa, — olha os lençóis — torna-nos se­melhantes aos deuses, faz vibrar em nós o poema dos plasmas que neles se geraram. Por eles, retrocedendo pelo caminho de certas memórias obscuras, voltamos às Formas primeiras, às Energias inteligentes.

E desfazendo aquela trouxa de roupa com o desembaraço de Jeová, compondo e recompondo um caos, mostra-me peça por peça, todas aquelas forças mencionadas, lodos genésicos, ou salivas do Espírito que adejou sobre as águas.

Mas Zefa deu um muxoxo, arrepanhando as fraldas, arras­tando os pés. Zefa não tinha antenas para a torrente declama­tória interior de minha juventude em dias de convalescença.

Pela vereda que vinha do rio, surgiu cantarolando uma cafuza nova, com o pote à cabeça, o braço direito erguido, segu­rando a rodilha.

E senti-a em tudo, — na algazarra dos ramos, na toada das águas despenhadas, nos vegetais variegados como arraiais, no tumulto dos seres que sofrem, amam e se perpetuam corren­do a vida.

Josefa — lavadeira, porque se julga a sós, vai despindo as belezas selvagens de ninfa cafuza.

No remanso em que bate a roupa, há bambus e ingazeiros pelas margens. Josefa entra o caudal até as coxas morenas, a camisa arregaçada, o cabeção de crochê impelido pelos seios duros, tostados de soalheiras.

O braço valente arroja o pano contra a pedra de bater, e a axila cobre-se e descobre-se, piscando a tentação de arrochos e rendições cheias de saciedades. Aqui, toda lavadeira de rou­pa é boa cantaderia. A cantiga é uma corruptela de velhas toa­das num tom languoroso, alimentado de sofreguidões, de de­sejos incontidos, e de lamentações incorrespondidas.

Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a roupa que a cobre no momento. Depois, deixa-se corando sobre o capim. Então Zefa lavadeira ensaboa o seu próprio corpo, vestido do manto de pele negra com que nasceu. Outras Zefas, outras negras vêm lavar-se no rio. Eu estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a minha infância. A água, levada nas cuias, começa o ensaboamento; desce em re­gatos de espuma pelo dorso, e some-se entre as nádegas rijas. As negras aparam a espuma grossa, com as mãos em concha, esmagam-na contra os seios pontudos, transportam-na com agilidade de símios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta branca de sabão se despenha pelas coxas, as mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-la aos sexos em que a África parece dormir o sono temeroso de Cam.

Benedito Calunga


Benedito Calunga

calunga-ê

não pertence ao papa-fumo,

nem ao quibungo,

nem ao pé de garrafa,

nem ao minhocão.


Benedito Calunga

calunga-ê

não pertence a nenhuma ocaia nem a nenhum tati, nem mesmo a Iemanjá,

nem mesmo a Iemanjá.


Benedito Calunga

calunga-ê

não pertence ao Senhor

que o lanhou de surra

e o marcou com ferro de gado

e o prendeu com lubambo nos pés.


Benedito Calunga

pertence ao banzo

que o libertou,

pertence ao banzo

que o amuxilou,

que o alforriou

para sempre

em Xangô.

Hum-Hum.

Ladeira da Gamboa


Há uma rua que eu conheço

Rua Barão da Gamboa

tem uma ladeira de lado

com o mesmo nome da rua

nenhum barão mora lá

mas porém gente que sua

gente que sobe gente que desce

gente que vai para a vida

gente que dela vem

não há meio de dizer-se

na ladeira ninguém vem

você mesmo não se agüenta

pois a ladeira é um vaivém

parece mesmo com a vida

tem subida tem descida

Barão não

Poesia mesmo à toa

tem lama poeira buracos

tudo o que a vida possui

mas polícia não tem não

polícia lá não influi

que a vida não tem polícia

a vida é mesmo um vaivém

igualmente esta ladeira

dá na gente uma canseira

tem subida tem descida

tem mais que tudo canseira

igualmente esta ladeira

da Rua Barão da Gamboa.

Que boa.

Ladeira. Vida. Canseira. Gamboa.

Passarinho cantando


Congos, cabindas, angolas,

também de Cacheo e de Bissao,

Maranhão, Pernambuco, Pará,

Fernando Pó, São Tomé, Ano Bom,

Serra Leoa, Serra Leoa, Serra Leoa!

Cabo Verde, Moçambique,

duas cozinheiras, três belas mucamas, óleo de coco,

(o boto também gosta de teu sangue Sudão).

Senhor Manuel Teixeira dos Santos

vem de redingote, suíças e procuração.

Ana Maria doceira de meu pai

amancebou-se com o alferes;

na segunda geração:

nem culatronas, nem pés apalhetados,

nem panos-da-costa, nem figas, nem aluá.

Na terceira nasceu Maricota, filha-de-santo,

checheré, rainha suicidou-se com fogo.

Deixou uma filha sagrada com água benta,

fechada com mandinga, branca, casada, com chácara.

Há na sua pele três estrelas marinhas, duas estrelas-d'alva,

a Lua, a Água-viva, a Fome de abraços.

Há no seu sangue:

trê moças fugidas, dois cangaceiros,

um pai-de-terreiro, dois malandros, um maquinista,

dois estourados.

Nasceu uma índia,

uma brasileira,

uma de olhos azuis,

uma primeira comunhão,

uma que deu seus cachos ao Senhor da Paixão,

uma que tinha ataques,

uma que foi ser freira,

uma que nasceu em Londres e é parenta do Rei.

O passarinho ficou órfão

cantando, catando penas só.

Exu comeu tarubá


O ar estava duro, gordo, oleoso:

a negra dentro da madorna;

e dentro da madorna — bruxas desenterradas.

No chão uma urupema com os cabelos da moça.

Foi então que Exu comeu tarubá

e meteu a figa na mixira de peixe-boi.

Aí na distância sem fim, moças foram roubadas,

e sóror Adelaide veio viajando de rede,

era alva ficou negra, era santa ficou lesa:

caiu na madorna, o ar duro, gordo, oleoso.

Exu começou a babar a mixira de peixe-boi,

o professor tirou o pincenê; estava traído pelo donatário,

sem barregãs, sem ginetes, sem escravos.

Aí na distância sem-fim, viajando de rede

D. Diogo de Holanda veio parar na madorna, o ar duro, gordo

[do, oleoso.

Exu começou a lamber a mixira de peixe-boi:

Isabel Lopo de Sampaio desvirginou o moleque,

jogou-se no rio, virou ingazeira, pariu três macacos.

Viajando de rede vieram três macacos parar na madorna, o ar

[duro, gordo, oleoso.

Eis aí três cirurgiões cosendo retrós,

a bela adormecida no século vindouro

que esquecerá por certo a magia

contra tudo que não for loucura

ou poesia.

Ancila negra
Há ainda muita coisa a recalcar,

Celidônia, ó linda moleca ioruba

que embalou minha rede,

me acompanhou para a escola,

me contou histórias de bichos

quando eu era pequeno,

muito pequeno mesmo.
Há mais coisa ainda a recalcar:

As tuas mãos negras me alisando,

os teus lábios roxos me bubuiando,

quando eu era pequeno,

muito pequeno mesmo.
Há muita coisa ainda a recalcar

ó linda mucama negra,

carne perdida,

noite estancada,

rosa trigueira,

maga primeira.


Há muita coisa a recalcar e esquecer:

o dia em que te afogaste,

sem me avisar que ias morrer,

negra fugida na morte,

contadeira de histórias do teu reino,

anjo negro degradado para sempre

Celidônia, Celidônia, Celidônia!

Depois: nunca mais os signos do regresso.

Para sempre: tudo ficou como um sino ressoando.

E eu parado em pequeno,

mandingando e dormindo,

muito dormindo mesmo.

O banho das negras

(Início de A mulher obscura,)
Em casa de Laécio não havia álbuns. A família de meu companheiro de infância parecia não ter tradição nem história. Lem­bro-me que um dia, perguntando-lhe como se chamava seu avô, ele me disse:

— Morreu há muito tempo. Não me lembro como era, mas papai deve saber. Um dia pergunto.

Recordo, porém, que era, de todos os meus amigos, o que mais me atraía.

Talvez não fosse o companheiro em si, em quem, já por aquele tempo, percebia uma capacidade de mentir maior que a de todos os meus outros camaradas, e uma grande habilidade de surripiar nossos objetos escolares, selos, estampas e brin­quedos. Talvez o que me atraía para Laécio fosse a sua chácara, a sua grande chácara onde devia existir a Arvore do Bem e do Mal, chácara tão tentadora para mim.

Os fundos davam para o rio. Um dia, Laécio me chamou para assistir o banho de umas negras. O espetáculo que se me oferecia não me deixou nenhuma impressão menos pura.

As negras estavam ali tomando banho, negras novas do Caípe que se lavavam debaixo dos ramos das ingazeiras arriadas sobre as águas. Abriam bandós com os cacos de pente de chifre, e como não dispunham de espelhos, ajudavam-se na tualete.

As molecas eram bonitas, ágeis e puras. Eu estava, apenas, encantado de ver corpos negros, tão diferentes dos brancos, embelezando-se ligeiros, antes de entrar nágua. Reparava que aquele banho era diferente do banho de umas parentas, que me deixaram uma vez esperando por elas, na beira do rio. As brancarronas se penteavam depois do banho, cuidadosas, com a toalha sobre os ombros, debaixo dos cabelos soltos. Mas as molecas podiam, com uma ligeireza espantosa, se coçar, espenujar, separar com os cacos de pente o cabelo lanzudo, mergulhar na água transparente e sair outra vez sem que o cabelo se desmanchasse; a água não lhes alterava a beleza. O contraste daqueles corpos pretos e luzidios sobre a areia das margens ou sob a espuma do sabão me impressionou bastante. Nunca tinha visto espuma sobressair tanto, correndo ligeira nas costas es­curas ou descendo entre os seios espigados pelo ventre abaixo. Mais ligeiros que a espuma, eram os seus braços harmoniosos. Algumas com a cara ensaboada, sem abrir os olhos para evitar a espuma, aparavam-na antes que ela se perdesse no chão. A espuma grossa voltava outra vez para debaixo das axilas ou dos ombros, esmagada de novo pelas esguias mãos. Outras se ajudavam no ensaboamento esfregando as costas das companheiras ou os lugares que os braços não atingiam. Achei lindas as negras. Achei-as ágeis, diferentes. Mas Laécio me advertira que era proibido vê-las assim nuas; e se elas soubessem que nós as espreitávamos no banho, contariam a nossos pais e estes ralhariam conosco e seríamos castigados.

Cachimbo do sertão


Aqui é assim mesmo.

Não se empresta mulher,

não se empresta quartau

mas se empresta cachimbo

para se maginar.

Cachimbo de barro

massado com as mãos,

canudo comprido, que bom!

— Me dá uma fumaçada!
— Que coisa gostosa só é maginar!

Sertão vira brejo,

a seca é fartura,

desgraça nem há!

Que coisa gostosa só é cachimbar.

De dia e de noite, tem lua, tem viola.

As coisas de longe vêm logo pra perto.

O rio da gente vai, corre outra vez.

Se ouvem de novo histórias bonitas.

E a vida da gente menina outra vez

ciranda, ciranda debaixo do luar.

Se quer cachimbar, cachimbe sêo moço,

mas tenha cuidado! — O cachimbo de barro

se pode quebrar.

Obambá é batizado
Pela fé de Zambi te digo:

Obambá é batizado, confirmado, cruzado e coroado.

Dá licença meu pai?

Licença venha

para os alufás de babalau.

Licença tem

o Babé de Olubá.

Licença tem.


Licença têm

cacuriqués, cacuricás.

Licença têm.
Licença tem

babalaô, babalaô.

Licença tem.

Na fé de Zambi te digo:

Obambá é batizado, confirmado e coroado.

Oxóssi está reinando: dá pra ele.

Dá pra o pai-de-sala, dá pra ele.

Ó ocaia dá pra ele.


Na fé de Zambi te digo:

Te vira em meu sangue.

Obambá é batizado, confirmado e coroado.

Dá licença meu pai?

Licença venha para outros bacuros.

Ó ocaia dá pra ele.

Dá licença meu pai?

Ó ocaia, me deixa só com meu santo,

me deixa só,

me deixa só,

dá pra ele

que Obambá é batizado, confirmado, cruzado e coroado.

Oxóssi está reinando: dá pra ele.

Poema de encantação


Arraial d’Angola de Paracatu,

Arraial de Mossâmedes de Goiás,

Arraial de Santo Antônio do Bambe,

vos ofereço quibebê, quiabo, quitanda, quitute, quingombô.

Tirai-me essa murrinha, esse gôgo, esse urufá,

que eu quero viver molecando, farreando, tocando meus ganzás!


Arroio dos Quilombos de Palmares,

Arroio do Desemboque do Quizongo,

Arroio do Exu do Bodocô,

vos ofereço maconha de pito, quitunde, quibembe, quingombô.

Assim, sim!

Arraial d’Angola de Paracatu,

Arraial do Campo de Goiás,

Arraial do Exu do Aussá,

vos ofereço quisama, quinanga, quilengue, quingombô.

Tomai acaçá, abará, aberém, abaú!

Assim, sim!

Tirai-me essa murrinha, esse gôgo, esse urufá!

Vos ofereço quitunde, quitumba, quelembe, quingombô.

Rei é Oxalá, rainha é Iemanjá


Rei é Oxalá que nasceu sem se criar.

Rainha é Iemanjá que pariu Oxalá sem se manchar.

Grande santo é Ogum em seu cavalo encantado.

Eu cumba vos dou curau. Dai-me licença angana.

Porque a vós respeito,

e a vós peço vingança

contra os demais aleguás e capiangos brancos.

Agô!


que nos escravizam, que nos exploram,

a nós operários africanos,

servos do mundo,

servos dos outros servos.

Oxalá! Iemanjá! Ogum!

Há mais de dois mil anos o meu grito nasceu!

Foi mudando, mudando
Tempos e tempos passaram

por sobre teu ser.

Da era cristã de 1500

até estes tempos severos de hoje,

quem foi que formou de novo teu ventre,

teus olhos, tua alma?

Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?
Os modos de rir, o jeito de andar,

pele,


gozo,

coração...

Negro, índio ou cristão?

Quem foi que te deu esta sabedoria,

mais dengo e alvura,

cabelo escorrido, tristeza do mundo,

desgosto da vida, orgulho de branco, algemas, resgates, al­forrias?

Foi negro, foi índio ou foi cristão?

Quem foi que mudou teu leite,

teu sangue, teus pés,

teu modo de amar,

teus santos, teus ódios,

teu fogo,

teu suor,

tua espuma,

tua saliva,

teus abraços, teus suspiros, tuas comidas,

tua língua?

Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?

Janaína
Janaína vive no rio,

vive no açude,

vive no mar.

Lembrou-se de vir passear:

nas ôndias passou dendê.

As ôndias se acomodaram.

Cavalo-marinho veio

para ela se amontar.

No cavalo se amontou

galopando descuidada,

acordando os afogados,

dando adeus à maré grande.

Botando nome nos peixes,

ouvindo a fala dos búzios.

No ventre de Janaína

as escamas estão brilhando.

Nos olhos de Janaína,

na cauda de Janaína

tem cem doninhas pulando.

Nos peitos de Janaína

tem dois langanhos babando.

Se Janaína sorri

as ôndias ficam banzeiras.

Se Janaína está triste.

o mar começa a espumar,

a pegar gente na praia

pra Janaína afundar.

— Janaína dá licença

que eu me afogue no seu mar?

Quando ele vem
Quando ele vem,

vem zunindo como o vento,

como mangangá, como capeta,

como bango-balango, como marimbondo.

Donde que é que ele vem?

Vem de Oxalá, vem de Oxalá,

vem do oco do mundo,

vem do assopro de Oxalá,

vem do oco do mundo.

Quer é comer.

Quer é caruru de peixe,

quer é efó de inhame,

quer é oguedé de banana,

quer é olubó de macaxeira,

quer é pimenta malagueta.

Quando ele chega, tudo fica banzando à toa,

esbodegado, enquizilado, enguiçado, enfezado.

Quando ele entra,

dá vontade na gente de embrenhar-se no mato,

de esparramar-se no chão,

de encalombar o rosto com as mãos,

de amunhecar no cansanção,

de esbanguelar os dentes nas pedras,

virar pé-de-vento,

sumir no assopro de Oxalá.

E dentro do assopro de Oxalá

virar cochicho nos ouvidos dela,

xodozar todo o santo dia,

catar cafunés invisíveis,

rolar dentro das suas anáguas,

bambeando o corpo dela,

babatando sem rumo,

amuxilado,

acuado diante das suas mungangas,

engambelado, tatambeado, fumado.

Xangô*


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