Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 11

selvagens das megacidades,

 

nos guetos, nas sweatshops, nas prisões, nas 



novas formas de escravatura, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no tra‑

balho infantil e na exploração da prostituição.

Neste texto, começo por argumentar que a tensão entre regulação e 

emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violên‑

cia, e de tal maneira que a universalidade da primeira tensão não é questio‑

nada pela existência da segunda. Em segundo lugar, argumento que as linhas 

abissais continuam a estruturar o conhecimento e o direito modernos e que 

são constitutivas das relações e interacções políticas e culturais que o Oci‑

dente protagoniza no interior do sistema mundial. Em suma, a minha tese 

é que a cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia 

literal das amity lines que separavam o Velho do Novo Mundo. A injustiça 

social global está, desta forma, intimamente ligada à injustiça cognitiva glo‑

bal. A luta pela justiça social global deve, por isso, ser também uma luta 

pela justiça cognitiva global. Para ser bem sucedida, esta luta exige um novo 

pensamento, um pensamento pós‑abissal.

A divisão abissal entre regulação/emancipação e apropriação/violência 

A permanência das linhas abissais globais ao longo de todo o período 

moderno não significa que estas se tenham mantido fixas. Historicamente, 

as linhas globais que dividem os dois lados têm vindo a deslocar‑se. Mas, 

em cada momento histórico, elas são fixas e a sua posição é fortemente 

vigiada e guardada, tal como sucedia com as linhas de amizade. Nos últimos 

sessenta anos, as linhas globais sofreram dois abalos tectónicos. O primeiro 

teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de independência das 

antigas colónias.

0

 O outro lado da linha sublevou‑se contra a exclusão 



radical à medida que os povos que haviam sido sujeitos ao paradigma da 

apropriação/violência se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no 

paradigma da regulação/emancipação (Fanon, 96, 967; Nkrumah, 965; 

Cabral, 979; Gandhi, 95, 956). Durante algum tempo, o paradigma da 

apropriação/violência parecia ter chegado ao fim, e do mesmo modo tam‑

bém a divisão abissal entre este lado da linha e o outro lado da linha. Cada 

uma das duas linhas globais (a epistemológica e a jurídica) pareciam estar 

a movimentar‑se de acordo com a sua própria lógica, mas ambas na mesma 

direcção: os seus movimentos pareciam convergir na retracção e, finalmente, 

na eliminação do outro lado da linha. Contudo, não foi isto que aconteceu, 

0

  Em vésperas da Segunda Guerra Mundial, as colónias e ex‑colónias cobriam cerca de 85% da 



superfície do globo.


1 | Boaventura de Sousa Santos 

como mostram a teoria da dependência, a teoria do sistema do mundo 

moderno, e os estudos pós‑coloniais.



Neste texto, faço incidir a minha atenção sobre o segundo abalo tectónico 



das linhas abissais. Este tem vindo a decorrer desde os anos de 970 e 980 

e segue na direcção oposta. Desta feita, as linhas globais estão de novo em 

movimento, mas de uma forma tal que o outro lado da linha parece estar a 

expandir‑se, enquanto este lado da linha parece estar a encolher. A lógica 

da apropriação/violência tem vindo a ganhar força em detrimento da lógica 

da regulação/emancipação. Numa extensão tal que o domínio da regula‑

ção/emancipação não só está a encolher, como também está a ficar conta‑

minado internamente pela lógica da apropriação/violência.

A complexidade deste movimento é difícil de destrinçar na medida em 

que se desenrola ante os nossos olhos, que não conseguem abstrair‑se do 

facto de estarem deste lado da linha e de olharem de dentro para fora. 

Para captar a totalidade do que está a ocorrer é necessário um esforço 

enorme de descentramento. Nenhum estudioso pode fazê‑lo sozinho, 

como indivíduo. Baseado num esforço colectivo para desenvolver uma 

epistemologia do Sul,



 a minha proposta é que este movimento é composto 



de um movimento principal e de um contra‑movimento subalterno. Deno‑

mino o movimento principal de regresso do colonial e do colonizador, e 

o contra‑movimento, de cosmopolitismo subalterno.

 Em primeiro lugar, o regresso do colonial o regresso do colonizador

Aqui, o colonial é uma metáfora daqueles que entendem as suas experiên‑

cias de vida como ocorrendo do outro lado da linha e se rebelam contra 

isso. O regresso do colonial é a resposta abissal ao que é percebido como 

uma intromissão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas. 

Este regresso assume três formas principais: o terrorista,



 o imigrante indo‑





  As origens múltiplas e subsequentes variações destes debates podem encontrar‑se em Memmi, 

965; Dos Santos, 97; Cardoso e Faletto, 969; Frank, 969; Rodney, 97; Wallerstein, 974, 

004; Bambirra, 978; Dussell, 995; Escobar, 995; Chew e Denemark, 996; Spivak, 999; Césaire, 

000; Mignolo, 000; Grosfoguel, 000; Afzal‑Khan e Sheshadri‑Crooks, 000; Mbembe, 00; 

Dean e Levi, 00.



  Entre 999 e 00, realizei um projecto internacional sobre ”A Reinvenção da Emancipação 



Social” que envolveu 60 investigadores de 6 países (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçam‑

bique e Portugal). Os resultados principais da investigação estão publicados em sete volumes. Estão 

publicados em português os cinco primeiros; em espanhol, Santos (org.), 004b; em inglês, Santos 

(org.), 005a, 006 e 007; e em italiano, Santos (org.), 00c, 005b. Sobre as implicações epis‑

temológicas deste projecto ver Santos (org.), 00a e Santos, 004. Sobre as ligações entre este 

projecto e o Fórum Social Mundial, ver Santos, 005 e 006c.



  Entre outros, ver Harris, 00; Kanstroom, 00; Sekhon, 00; C. Graham, 005; N. Graham 



005; Scheppele, 004a, 004b, 006; Guiora, 005.


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