Para além do Pensamento Abissal |
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selvagens das megacidades,
nos guetos, nas sweatshops, nas prisões, nas
novas formas de escravatura, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no tra‑
balho infantil e na exploração da prostituição.
Neste texto, começo por argumentar que a tensão entre regulação e
emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violên‑
cia, e de tal maneira que a universalidade da primeira tensão não é questio‑
nada pela existência da segunda. Em segundo lugar, argumento que as linhas
abissais continuam a estruturar o conhecimento e o direito modernos e que
são constitutivas das relações e interacções políticas e culturais que o Oci‑
dente protagoniza no interior do sistema mundial. Em suma, a minha tese
é que a cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia
literal das amity lines que separavam o Velho do Novo Mundo. A injustiça
social global está, desta forma, intimamente ligada à injustiça cognitiva glo‑
bal. A luta pela justiça social global deve, por isso, ser também uma luta
pela justiça cognitiva global. Para ser bem sucedida, esta luta exige um novo
pensamento, um pensamento pós‑abissal.
A divisão abissal entre regulação/emancipação e apropriação/violência
A permanência das linhas abissais globais ao longo de todo o período
moderno não significa que estas se tenham mantido fixas. Historicamente,
as linhas globais que dividem os dois lados têm vindo a deslocar‑se. Mas,
em cada momento histórico, elas são fixas e a sua posição é fortemente
vigiada e guardada, tal como sucedia com as linhas de amizade. Nos últimos
sessenta anos, as linhas globais sofreram dois abalos tectónicos. O primeiro
teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de independência das
antigas colónias.
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O outro lado da linha sublevou‑se contra a exclusão
radical à medida que os povos que haviam sido sujeitos ao paradigma da
apropriação/violência se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no
paradigma da regulação/emancipação (Fanon, 96, 967; Nkrumah, 965;
Cabral, 979; Gandhi, 95, 956). Durante algum tempo, o paradigma da
apropriação/violência parecia ter chegado ao fim, e do mesmo modo tam‑
bém a divisão abissal entre este lado da linha e o outro lado da linha. Cada
uma das duas linhas globais (a epistemológica e a jurídica) pareciam estar
a movimentar‑se de acordo com a sua própria lógica, mas ambas na mesma
direcção: os seus movimentos pareciam convergir na retracção e, finalmente,
na eliminação do outro lado da linha. Contudo, não foi isto que aconteceu,
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Em vésperas da Segunda Guerra Mundial, as colónias e ex‑colónias cobriam cerca de 85% da
superfície do globo.
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Boaventura de Sousa Santos
como mostram a teoria da dependência, a teoria do sistema do mundo
moderno, e os estudos pós‑coloniais.
Neste texto, faço incidir a minha atenção sobre o segundo abalo tectónico
das linhas abissais. Este tem vindo a decorrer desde os anos de 970 e 980
e segue na direcção oposta. Desta feita, as linhas globais estão de novo em
movimento, mas de uma forma tal que o outro lado da linha parece estar a
expandir‑se, enquanto este lado da linha parece estar a encolher. A lógica
da apropriação/violência tem vindo a ganhar força em detrimento da lógica
da regulação/emancipação. Numa extensão tal que o domínio da regula‑
ção/emancipação não só está a encolher, como também está a ficar conta‑
minado internamente pela lógica da apropriação/violência.
A complexidade deste movimento é difícil de destrinçar na medida em
que se desenrola ante os nossos olhos, que não conseguem abstrair‑se do
facto de estarem deste lado da linha e de olharem de dentro para fora.
Para captar a totalidade do que está a ocorrer é necessário um esforço
enorme de descentramento. Nenhum estudioso pode fazê‑lo sozinho,
como indivíduo. Baseado num esforço colectivo para desenvolver uma
epistemologia do Sul,
a minha proposta é que este movimento é composto
de um movimento principal e de um contra‑movimento subalterno. Deno‑
mino o movimento principal de regresso do colonial e do colonizador, e
o contra‑movimento, de cosmopolitismo subalterno.
Em primeiro lugar, o regresso do colonial e o regresso do colonizador.
Aqui, o colonial é uma metáfora daqueles que entendem as suas experiên‑
cias de vida como ocorrendo do outro lado da linha e se rebelam contra
isso. O regresso do colonial é a resposta abissal ao que é percebido como
uma intromissão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas.
Este regresso assume três formas principais: o terrorista,
o imigrante indo‑
As origens múltiplas e subsequentes variações destes debates podem encontrar‑se em Memmi,
965; Dos Santos, 97; Cardoso e Faletto, 969; Frank, 969; Rodney, 97; Wallerstein, 974,
004; Bambirra, 978; Dussell, 995; Escobar, 995; Chew e Denemark, 996; Spivak, 999; Césaire,
000; Mignolo, 000; Grosfoguel, 000; Afzal‑Khan e Sheshadri‑Crooks, 000; Mbembe, 00;
Dean e Levi, 00.
Entre 999 e 00, realizei um projecto internacional sobre ”A Reinvenção da Emancipação
Social” que envolveu 60 investigadores de 6 países (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçam‑
bique e Portugal). Os resultados principais da investigação estão publicados em sete volumes. Estão
publicados em português os cinco primeiros; em espanhol, Santos (org.), 004b; em inglês, Santos
(org.), 005a, 006 e 007; e em italiano, Santos (org.), 00c, 005b. Sobre as implicações epis‑
temológicas deste projecto ver Santos (org.), 00a e Santos, 004. Sobre as ligações entre este
projecto e o Fórum Social Mundial, ver Santos, 005 e 006c.
Entre outros, ver Harris, 00; Kanstroom, 00; Sekhon, 00; C. Graham, 005; N. Graham
005; Scheppele, 004a, 004b, 006; Guiora, 005.