Para além do Pensamento Abissal |
O conhecimento e o direito modernos representam as manifestações
mais bem conseguidas do pensamento abissal. Dão‑nos conta das duas
principais linhas abissais globais dos tempos modernos, as quais, embora
distintas e operando de forma diferenciada, são mutuamente interdepen‑
dentes. Cada uma cria um subsistema de distinções visíveis e invisíveis de
tal forma que as invisíveis se tornam o fundamento das visíveis. No campo
do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão à ciência
moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso,
em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia.
O carácter exclusivo deste monopólio está no cerne da disputa epistemo‑
lógica moderna entre as formas científicas e não‑científicas de verdade.
Sendo certo que a validade universal da verdade científica é, reconheci‑
damente, sempre muito relativa, dado o facto de poder ser estabelecida
apenas em relação a certos tipos de objectos em determinadas circuns‑
tâncias e segundo determinados métodos, como é que ela se relaciona
com outras verdades possíveis que podem inclusivamente reclamar um
estatuto superior, mas não podem ser estabelecidas de acordo com o
método científico, como é o caso da razão como verdade filosófica e da
fé como verdade religiosa?
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Estas tensões entre a ciência, a filosofia e a
teologia têm sido sempre altamente visíveis, mas como defendo, todas
elas têm lugar deste lado da linha. A sua visibilidade assenta na invisibi‑
lidade de formas de conhecimento que não encaixam em nenhuma destas
formas de conhecer. Refiro‑me aos conhecimentos populares, leigos, ple‑
beus, camponeses, ou indígenas do outro lado da linha. Eles desaparecem
como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem
para além do universo do verdadeiro e do falso. É inimaginável aplicar‑
‑lhes não só a distinção científica entre verdadeiro e falso, mas também
as verdades inverificáveis da filosofia e da teologia que constituem o outro
conhecimento aceitável deste lado da linha.
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Do outro lado da linha, não
há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, enten‑
dimentos intuitivos ou subjectivos, que, na melhor das hipóteses, podem
tornar‑se objectos ou matéria‑prima para a inquirição científica. Assim,
a linha visível que separa a ciência dos seus “outros” modernos está assente
na linha abissal invisível que separa, de um lado, ciência, filosofia e teolo‑
gia e, do outro, conhecimentos tornados incomensuráveis e incompreen‑
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Embora de formas muito distintas, Pascal, Kierkegaard e Nietzsche foram os filósofos que mais
aprofundadamente analisaram, e viveram, as antinomias contidas nesta questão. Mais recentemente,
merecem menção Karl Jaspers (95, 986, 995) e Stephen Toulmin (00).
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Para uma visão geral dos debates recentes sobre as relações entre a ciência e outros conhecimentos,
veja‑se Santos, Meneses e Nunes, 004. Ver também Santos 995: 7‑55.
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Boaventura de Sousa Santos
síveis por não obedecerem, nem aos critérios científicos de verdade, nem
aos dos conhecimentos, reconhecidos como alternativos, da filosofia e
da teologia.
No campo do direito moderno, este lado da linha é determinado por
aquilo que conta como legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do
Estado ou com o direito internacional. O legal e o ilegal são as duas únicas
formas relevantes de existência perante a lei, e, por esta razão, a distinção
entre ambos é uma distinção universal. Esta dicotomia central deixa de fora
todo um território social onde ela seria impensável como princípio organi‑
zador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a‑legal, ou mesmo
do legal e ilegal de acordo com direitos não oficialmente reconhecidos.
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Assim, a linha abissal invisível que separa o domínio do direito do domínio
do não‑direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que
deste lado da linha organiza o domínio do direito.
Em cada um dos dois grandes domínios – a ciência e o direito – as divi‑
sões levadas a cabo pelas linhas globais são abissais no sentido em que eli‑
minam definitivamente quaisquer realidades que se encontrem do outro
lado da linha. Esta negação radical de co‑presença fundamenta a afirmação
da diferença radical que, deste lado da linha, separa o verdadeiro do falso,
o legal do ilegal. O outro lado da linha compreende uma vasta gama de
experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, tal como os seus autores, e
sem uma localização territorial fixa. Em verdade, como anteriormente referi,
originalmente existiu uma localização territorial e esta coincidiu historica‑
mente com um território social específico: a zona colonial.
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Tudo o que não
pudesse ser pensado em termos de verdadeiro ou falso, de legal ou ilegal,
ocorria na zona colonial. A este respeito, o direito moderno parece ter
alguma precedência histórica sobre a ciência na criação do pensamento
abissal. De facto, contrariamente ao pensamento jurídico convencional, foi
a linha global que separava o Velho Mundo do Novo Mundo que tornou
possível a emergência, deste lado da linha, do direito moderno e, em par‑
ticular, do direito internacional moderno.
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Em Santos, 00, analiso em detalhe a natureza do direito moderno e o tópico do pluralismo
jurídico (a coexistência de mais de um sistema jurídico no mesmo espaço geopolítico).
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Neste trabalho, tomo por assente a ligação íntima entre capitalismo e colonialismo. Veja‑se, entre
outros, Williams, 994 (publicado originalmente em 944); Arendt, 95; Fanon, 967; Horkheimer
e Adorno, 97; Wallerstein, 974; Dussel, 99; Mignolo, 995; Quijano, 000.
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Assim, o imperialismo é constitutivo do Estado moderno. Ao contrário do que afirmam as teorias
convencionais do direito internacional, este não é produto de um Estado moderno pré‑existente.
O Estado moderno, o direito internacional e o constitucionalismo nacional e global são produtos
do mesmo processo histórico imperial. Ver Koskenniemi, 00; Anghie, 005; e Tully, 007.