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É nesse e(ntre), lugar onde as forças adquirem velocidade(16), que se dão
as ressonâncias entre a música e o design, onde é possível buscar traços
de um no outro e as forças que ecoam entre si.
O e(ntre) a música e o design não se configuraria, a princípio, como um
“espaço” facilmente identificável e ordenável por meio da linguagem por
exemplo, pois como potência ele estaria no âmbito da sensação mesma
do som e da imagem como pura possibilidade (uma possibilidade que
todavia tem um “desenho”, um design, portanto) mesmo que não tenha
ainda se realizado nas matérias ou nos corpos. “Não é o corpo que realiza,
mas é no corpo que algo se realiza, com o que o próprio corpo se torna
real ou substancial.”(17). O soundesign seria um virtual que se atualiza
como música ou como design, mas seria também uma possibilidade que
pode ou não se realizar nas matérias ou nos corpos, “um atual que
permanece possível e que não é forçosamente real”(18), “(...) é sensação
em si. Como se as flores sentissem a si mesmas sentindo o que as
compõe, tentativas de visão ou de olfato primeiros, antes de serem
percebidas ou mesmo sentidas por um agente nervoso e cerebrado”(19).
A sensação, no sentido que tratam Deleuze e Guattari em “O que é a
Filosofia?”, não se confunde, todavia, com “emoção”, pois enquanto
“vibração contraída, tornada qualidade, variedade”, ela vai além de
qualquer tentativa de racionalização e conserva-se a si mesma antes que
o pensamento a transforme em algo lógico ou que se tenha chance de
reagir. É contemplação pura “que conserva o precedente no seguinte”,
segundo Deleuze e Guattari, e como tal, efetua-se sobre um plano de
composição em que “se forma contraindo o que a compõe, e compondo-
se com outras sensações que ela contrai por sua vez”(20). Para Deleuze e
Guattari todas as coisas tanto orgânicas quanto inorgânicas supõem uma
faculdade de “sentir” como um “cérebro coletivo”, global, capaz de
contrair e conservar os elementos fazendo-os ressoar (21). Esse
pensamento conduz a um viés “não unificado” das coisas que não mais se
configuram segundo uma ordem “começo-meio-fim”, num sentido linear,
mas convergem ou “divergem” em vários sentidos mesmo que ocorram
ao mesmo tempo.
Pensando o soundesign como sensação em si e a sensação como vibração
que conserva-se a si mesma e os dois fazendo parte de uma “realidade”,
esta noção implica que a realidade não estaria necessariamente
subordinada ao que vemos com os olhos, ao que ouvimos com os
ouvidos, ao que tocamos com as mãos. Nós vemos em parte com os
olhos, mas não exclusivamente, “felizmente a maioria de nós é capaz de
ver com os ouvidos, de ouvir e ver com o cérebro, com o estômago e com
a alma”(22). A realidade estaria “organizada” no domínio das frequências
“sem espaço nem tempo, apenas com eventos”(23) (ou acontecimentos).
Estes, uma vez emergidos das frequências, não precisam ser transmitidos
pois são “potencialmente simultâneos e onipresentes”(24).
Esse novo paradigma reflete uma “ordem dobrada” como uma nova
possibilidade para (descre)ver a realidade o que implica, em
contrapartida, “o aspecto desdobrado das coisas”(25). A dobra e a
desdobra, sendo esta não o contrário da outra “mas segue a dobra até
outra dobra”(26), pois as relações não seriam feitas de opostos nem de
semelhantes mas de ressonantes. A realidade se encontraria, segundo o
físico David Bohm(27), “dobrada” sob as aparências, no “andar de baixo”,
para citar Deleuze(28), “perfurada de janelas” que desencadeiam
vibrações e ressonâncias entre os dois “andares” e traduzem em “sons os
movimentos visíveis de baixo”(29).
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Se adotarmos como noção de realidade a ótica dobrada das coisas - na
qual o olho não seria uma lente passiva, um receptáculo de imagens, mas
algo ativo capaz de ouvir e de tocar, um “lugar” (ou um “não-lugar”) de
onde as coisas saem transformadas pela imaginação, pelo conhecimento,
pelo pensamento, pelos desejos – o próprio design do cérebro, labirinto
que dobra-se e desdobra-se, não comportaria uma estrutura
departamentalizada e “arborescente” pois, segundo Deleuze, ele “não é
uma matéria enraizada nem ramificada”(30). É uma multiplicidade na qual
as informações se distribuem como num holograma. O que faz do cérebro
uma multiplicidade é “a descontinuidade das células, o papel dos axônios,
o funcionamento das sinapses, a existência de microfendas sinápticas, o
salto de cada mensagem por cima destas fendas (...)”(31). Para o cientista
Karl Pribram, notável pesquisador do cérebro,
“uma misteriosa propriedade, tanto do holograma, como do cérebro,
consiste na distribuição das informações por todo o sistema, com cada
fragmento codificado para produzir as informações do todo. (...) Um
padrão de distribuição semelhante ao de um holograma também
explicaria como uma memória específica não possui uma localização bem-
definida mas se encontra espalhada por todo o cérebro.”(32)
Uma vez que o design do cérebro passa a ser visto sob uma ótica aberta e
ressonante, a música e o design, assim como a filosofia e a ciência,
“entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca”(33).
Essas trocas aconteceriam nos intervalos (assim como as trocas de
informações cerebrais), por “dom ou captura”, onde a música e o design
seriam “espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que
não cessam de interferir entre si”(34). Não haveria, portanto, dois
“mundos” já que, segundo Deleuze, “não se pode saber onde acaba o
sensível e onde começa o inteligível”, mas singularidades que se
estendem até as vizinhanças de outras singularidades numa ordem
espaço-temporal que vai ao infinito(35). No mesmo sentido, o “intervalo”,
o “corte” ou a “fenda”, que “separa” uma coisa e outra, não constituiria
uma lacuna ou “ruptura” mas uma continuidade (36).
Trata-se portanto de uma música e um design diagramáticos, moventes,
informais que se encontram no “espaço do olho que escuta”(37), um
espaço direcional e aberto que toma “todas as direções, prolongável em
todos os sentidos, ainda que esse espaço tenha um centro”(38): um
espaço liso. Segundo Deleuze,
“o espaço liso é ocupado por acontecimentos e hecceidades, muito mais
do que por coisas formadas e percebidas (...). Enquanto no espaço
estriado as formas organizam uma matéria, no liso materiais assinalam
forças ou lhes servem de sintomas. É um espaço intensivo, mais do que
extensivo, de distâncias e não de medidas”(39)
Um espaço onde os pontos de “encontro” ou de “fusão” são sempre
nômades, e como tal, permanentemente móveis, nunca permanecendo
no mesmo lugar em relação aos outros. Estão inteiramente na multidão e
ao mesmo tempo completamente fora (40).
Diagrama é o nome dado por Foucault a uma nova dimensão informal da
sociedade de disciplina moderna (41), e diz respeito a “matérias não-
formadas, não-organizadas e funções não-formalizadas, não-
finalizadas”(42). Ele é um mapa, mapa dos relacionamentos de forças, da
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