11
INTRODUÇÃO
Na presente de tese de doutorado tomo como objeto de estudo os romances ... y no se
lo tragó la tierra (1971), do escritor chicano Tomás Rivera, e La frontera de cristal (1995),
do escritor mexicano Carlos Fuentes. Neste trabalho científico, busco dar continuidade aos
estudos de mestrado que levei a cabo. A saber: as conflituosas relações entre mexicanos,
chicanos e estadunidenses à luz do olhar literário. Se em minha pós-graduação strictu senso
(UFF, 2010) baseei meus estudos na supracitada obra de Fuentes, foi também durante esse
período que travei contato, sem a leitura, entretanto, com o referido romance de Tomás
Rivera.
La frontera de cristal, de Carlos Fuentes, é uma obra constituída por nove contos
1
que,
devido à grande força intrínseca a uni-los, acabam por compor um romance. Nesse livro,
contam-se as glórias e os infortúnios, a servidão e, ao mesmo passo, a grandeza das
personagens de uma família: os Barroso – especialmente de don Leonardo Barroso, uma
espécie de self-made man mexicano, rico, poderoso e influente. Para tanto, Fuentes utiliza
como pano de fundo os históricos laços de amor e ódio, de rancor e admiração entre dois
países de conturbadas relações fronteiriças: o México e os Estados Unidos.
Dessa forma, será utilizando esses vínculos históricos como base de sustentação para
seus contos tão intimamente interligados que outros personagens e enredos vão, pouco a
pouco, sendo apresentados ao leitor, inseridos, cada qual com seu devido destaque, no
mosaico de imagens de encontros e desencontros fronteiriços que o romance quer transmitir.
Em La frontera de cristal, destaco uma espécie de profusão da palavra literária, artifício
levado quase ao excesso em construções sintáticas repletas de sinonímias, repetições usadas
sem qualquer desejo de economia linguística na procura pela representação e transmissão das
imagens que se quer transferir ao leitor, imagens que encaminhem a imaginários sobre as
conflituosas relações fronteiriças entre mexicanos, chicanos e estadunidenses.
E isso ocorre com o leitor sendo atravessado para o outro lado de uma escrita ora
vibrante, pulsante e apaixonante, ora seca, crua e desalentadora; por vezes óbvia, mas
comovente; ora surpreendente, mas execrável; ora suave e poética, às vezes abjeta e
nauseante; uma verve léxica, adotada no uso de um traiçoeiro narrador (a que chamo de
narrador coiote), a qual chega a confundir-se com o próprio fluxo linguístico, profuso e
1
Importa ressaltar que tal proposta (conto=capítulo=ROMANCE) se vê explicitada já no subtítulo que
acompanha as primeiras edições da obra, tal qual no exemplar de 1997 da Editorial Alfaguarra, que faz parte da
bibliografia desta tese, onde se lê: La frontera de cristal – una novela en nueve cuentos.
12
sedutor de Fuentes em ensaios como os de seu El espejo enterrado (1992), cujos
antecedentes, não nos custa lembrar, advêm de uma homônima série televisiva (imagem)
escrita e narrada pelo escritor mexicano para a instituição acadêmica estadunidense
Smithsonian
2
.
Além disso, desenvolve-se o enredo de La frontera sob o trabalho de “criação” e o
contar das ações de personagens-tipo, ou, até mesmo, tipificados (entressacados de imagens
prévias, anteriores, quase-que engessadas no “real” em que se baseiam). Assim, como prismas
de um cristal aos cuidados de um narrador cambiante, tais personagens são o intento do autor
em representar na ficção o modo de vida do mexicano (repleto de tradições, contradições,
transculturações
3
e mesclas multiculturais
4
), atormentado de um lado pela corrupção de seus
governos e do outro pela discriminação no “eldorado” estadunidense.
Para tanto, o gosto pelo desenrolar da palavra na narrativa de Fuentes se apega ao e se
vale do processo de singularização do narrado que faz através do uso de duas figuras de
linguagem essenciais para a apresentação de imagens que a obra quer emitir: a metonímia (na
qual, a parte representada na inserção do personagem-tipo busca, finge, em verdade, abarcar a
representação de um todo, contendo, dando margem a equações bastante reducionistas,
simplistas, simplificadoras); e a metáfora, observada desde seu uso em sentenças mais curtas,
frases, períodos, até o processo ao qual chamo de metáfora ampla, quando capítulos-contos
quase por completo servem de grandes metáforas, agindo como extensas metaforizações das
situações de alteridade com as quais estabelecem relação.
2
À época de apresentação do projeto para a imprensa estadunidense, em 1989, a Smithsonian agrupava um todo
de catorze museus em Washington (EUA), sendo considerada já naquele tempo, e até hoje (contando agora com
dezenove museus entre Washington, D.C. e Nova Iorque), um dos principais centros de investigação acadêmica
do mundo (Cf.: G. BASTERDA para El País, 1989, p. 1 e M. HENSON, 2013, p.115).
3
No presente trabalho, o termo “transculturação” será utilizado como um dos abrangentes às mesclas
multiculturais formadoras do povo mexicano desde tempos pré-colombianos. Vale lembrar, entretanto, que tal
verbete foi usado pela primeira vez pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969), em seu ensaio “Del
fenómeno social de la ‘transculturación’ y de su importancia en Cuba” (1940). Cunhado para poder mais bem
explicar as diferentes fases do processo de transição de uma cultura a outra, o conceito, em Ortiz, implica em
potencial perda ou desarraigo de determinada cultura precedente, envolvidas estas nos entrechoques culturais a
que se viu forçada a viver a América Latina, a partir dos “descobrimentos”. Mais tarde, o termo é levado, ainda,
ao campo dos estudos literários pelo intelectual uruguaio Ángel Rama (1926-1983), em suas considerações sobre
a transculturação em autores da narrativa literária latino-americana. Não sendo esse meu enfoque aqui, remeto o
leitor ao artigo “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”, de Rama (1974 [2001]), e aos
capítulos 2 e 3 de minha dissertação de mestrado ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito mexicano em La
frontera de cristal, de Carlos Fuentes (UFF, 2010), onde o recorte ali adotado me permitiu desenvolver o tema.
4
Pelo termo “mesclas multiculturais”, aqui utilizado, entenda-se a pluralidade cultural que perpassa toda a
trajetória de formação do povo mexicano desde antes da chegada do invasor europeu. Nesse sentido, advirto que
meu uso dessa expressão (e de outras semelhantes) no presente trabalho não tem por finalidade maior
aproximação ao temário dos estudos multiculturais no campo da literatura. Para tanto, para aprofundamento do
assunto, remeto o leitor a, por exemplo, obras como Literatura e estudos culturais (FALE-UFMG), organizada
pelas intelectuais brasileiras Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenço de L. Reis (2000).
Dostları ilə paylaş: |