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alma santa uma “semelhança” a sua própria imagem, sendo assim o vestígio, a imagem
propriamente dita e a similitude os graus das três representações imaginárias (ou seja, por
imagem) a conduzirem a alma criada de volta ao seu Criador (Cf. DURAND, [1994] 2011, p.
20).
Posteriormente, esse mesmo embate do imagético ocidental se materializa na resposta
da Reforma Protestante, um contraponto ao ápice da imaginária sacra de então
23
. Neste
aspecto, são interessantes as observações de Durand sobre mais algumas contradições no seio
do iconoclasmo cristão. Para o autor, embora a Reforma iniciada em Lutero combata (com a
consequente destruição de estátuas e quadros) o que poderíamos chamar de estética da
imagem na Igreja e sua agudeza sacrílega contida no culto aos santos, há, sim, uma
aproximação à imagem na resposta protestante ao “exagero” da imaginária sacra de Bizâncio
e Roma. E tal aproximação se dá tanto por imagens literárias (sem apoiar-se no icônico, mas
como via de recondução à santidade de seu Deus Único, tal é o caso da linguagem poética das
Escrituras em livros como o “Cântico dos Cânticos”, mantido na Bíblia protestante) como
pela linguagem musical (onde entra, por exemplo – ainda que livre das imagens visuais dos
quadros, estátuas e santos católicos –, todo o “imaginário” de incrível profundidade das
cantatas e “Paixões” daquele que talvez tenha sido o maior compositor protestante, Johann-
Sebastian Bach).
Fato é que, entremeadas e quem sabe até como soluções exteriores a tanta “disputa” da
questão da imagem pelo sagrado, a arte e a literatura pouco a pouco surgem como uma
espécie de possibilidade de independência da imagem diante das querelas religiosas que a
envolviam (e revolviam). A partir daí pode ser citado um nome como o de Shakespeare e sua
imaginária teatral. Mas também entram em cena respostas a novas tentativas de impor rigores
que estivessem mais próximos à Razão que ao “devaneio da arte, da imagem”. Assim, por
exemplo, ao rigor racionalista do Neoclassicismo opor-se-ão o pré-romantismo (na Alemanha,
Sturm und Drang) e o Romantismo e suas estéticas de clamor “da arte pela arte”, na busca de
reconhecimento de algo mais que os clássicos cinco sentidos para apoiar a percepção, um
“sexto sentido (...), uma terceira via de conhecimento, permitindo a entrada de uma nova
ordem de realidades” (DURAND, [1994] 2011, p. 27). Ainda um maldito, o poeta, e isso
estará em Hölderlin, Baudelaire, Rimbaud, passa então a reivindicar o status de “gênio,
“vidente”, “guia”, “mago”, “profeta”, ou seja, o de uma espécie de condutor de imagens.
23
Aproximação cristã a paganismos celtas (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 20-1).
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Tal apego ao lado imagético em detrimento do racionalista deixará heranças mesmo na
busca pela perfeição do parnasianismo; porém, será ainda mais contundente, agudo e ousado
na busca de uma independência da arte, da poesia, da imagem; será ainda mais evidente no
simbolismo (fim do século XIX)
24
. Depois dele, a obra de arte, e sua consequente ligação com
a imagem, pouco a pouco se libertam, afastam-se de seus serviços vinculados à religião e à
política. Há uma busca por independência, por explicar-se a partir da identificação de que
pode conter, criar realidades outras. Assim, para Gilbert Durand ([1994] 2011, p. 29-30, grifos
do autor), pode-se dizer que
O Surrealismo da primeira metade do século 20 será o resultado natural e
reconhecido do Simbolismo. Este “sexto sentido”, que no século das Luzes revelou
ingenuamente a estética, desabrochou na filosofia de um universo “completamente
diferente” do pensamento humano.
Isto opõe essa liberdade do imagético uma vez mais ao racionalismo aristotélico
herdado, com marcas também no empirismo positivista que ainda deixará seus lastros durante
todo o século vinte. A arte abstrata será o extremo, a aventura máxima da afirmação de
emancipação da pintura, da música em relação até mesmo ao imaginário. Porém, não me
aventuro nela eu, por ora; por entender que, no concernente à análise do corpus dessa
pesquisa, adentrar o universo abstrato da arte pouco dialogaria com a proposta de leitura
interpretativa aqui trabalhada. Retorno, então, a um dos pontos que abriram a argumentação
do presente tópico.
Da proposta de olhar lançado à questão da imagem a partir das observações do filósofo
francês Gilbert Durand, extrai-se seu posicionamento de que, da tríade base do que o autor
chama de Método da Verdade, o nome que mais influenciaria uma visão pejorativa lançada ao
imagético seria o de Aristóteles. É interessante notar que Durand aponta, ainda, estar no
predecessor de Aristóteles uma atenção menos radical para o papel da imagem na filosofia.
Dessa forma, é no primeiro seguidor do socratismo que a imagem encontra talvez
então o ponto de apoio para sua sobrevivência diante do racionalismo ocidental, o mesmo que
(ainda plantando suas sementes) encontraria nas Américas, quando do Choque e Violência
dos “descobrimentos” e das conseguintes colonizações, sociedades que através do
pictográfico exerciam sua expressividade, seu poder de expressão e comunicação baseados na
representação por imagens e que, de uma hora para outra, em determinado momento tiveram,
ou melhor, viram-se forçadas a perceber a necessidade de “organizar” também as coisas
24
Remeto o leitor para o tópico 1.1 do presente capítulo, quando toco na importância que tem esse movimento
estético nas argumentações que tecem os formalistas contra algo que poderia ser chamado de “ditadura da
imagem”, “imposta” pelo simbolismo russo.
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