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busquei dar relevo para o que Gilbert Durand chama de imaginária, não como um adjetivo,
mas, sim, como um substantivo poderoso para verdadeiras coleções de imagens que podem
fazer parte da historicidade de grandes dogmas religiosos que se apoiam em cultos a ídolos,
como é o caso da igreja católica, a quem Durand destina o termo de imaginária sacra cristã. A
mostra escolhida por mim para abordar tal assunto em ...y no se lo tragó la tierra foi o conto
“El retrato”, um apurado questionamento literário dos limites da mimese e da representação,
em uma inteligente imbricação de dúvidas de liame entre foto, retrato, pintura, escultura e a
repetição, em um ambiente até certo ponto hostil, de valores e costumes herdados.
Em La frontera de cristal, tal jogo contrastivo México-Estados Unidos ocorre de
maneira talvez menos contundente e questionadora. Ali, no conto “Las amigas”, sexto
capítulo do romance, propostas semelhantes são apresentadas, porém de um modo algo
diferente. Um retrato faz parte dos eventos que percorrem a história do capítulo. Nesse caso,
entretanto, o retrato pertence a uma senhora estadunidense, sendo a reprodução fotográfica do
rosto de seu falecido marido, cuja cicatriz na face gera um interessante diálogo que visa fazer
da marca no rosto do homem na foto uma metáfora para a linha que separatória que atravessa
passado e presente de México e EUA, conforme abordei no trecho a esse fragmento dedicado
por mim no terceiro capítulo do presente estudo.
À guisa de continuidade das questões levantadas há ainda um jogo de espelhismo
proposto pela narrativa no conto, fator que também ressaltei na abordagem à qual me referi
acima. No entanto, um terceiro momento da atenção dada a aspectos da representação
corresponde à fixação do imaginário preponderante no capítulo: o da adoração idolátrica
como traço distintivo supostamente de todas as mexicanas. No terceiro capítulo da presente
tese, apresentei como esse feito aproximativo de apreensão por imaginários se dá pela
orquestração de uso literário da proximidade entre metáfora e metonímia. O trecho abaixo
encerra o tópico atual com outra mostra da aproximação de uma ideia a um imaginário. Nele,
porém, ganha também relevo a chamada para as estampas católicas e certa relativização (mais
ao estilo coiote de convencimento uma vez mais poético do narrador fuentesiano) da
representação, embora ainda se destaque a adoração como valor de desejos improváveis,
como busca “impossível” de realização
Para Josefina, había una relación muy misteriosa pero creíble entre la vida de las
imágenes y la vida de las flores. (…) Pues las imágenes de Nuestro Señor en la
Cruz, del Sagrado Corazón, de la Virgen de Guadalupe, eran como las flores,
aunque no hablasen, vivían, respiraban, y a diferencia de las flores, no se
marchitaban. La vida de las flores, la vida de las imágenes. Para Josefina eran dos
cosas inseparables y en nombre de su fe le daba a las flores la vida táctil, perfumada,
sensual, que le hubiese gustado darle, también, a las estampas. (FUENTES, [1995]
2007, p. 163-4)
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4.3 Os imaginários de dois romances em contos
A relação de ...y no se lo tragó la tierra com imaginários se dá quase todo o tempo em
posição de questionamento, de posta em xeque de imaginários estabelecidos. Nesse aspecto,
conforme pude detalhar algo mais no capítulo voltado para a análise crítica desse romance, o
autor, através das situações criadas e das ações narradas relativiza a validade de imaginários
de costumes, imaginários sociais e imaginários nacionais. A maneira como ocorrem e a
posição que ocupam tais questionamentos diante desses referidos imaginários, de acordo com
o que expliquei, pode ser vista de mais detalhado no segundo capítulo da presente tese.
No entanto, cabe aqui breve retorno a um imaginário com o qual o romance de Tomás
Rivera se correlaciona de modo mais direto. Ele se inicia a partir do contato da obra riverana
em epígrafe com um imaginário precedente, aquele que busca, em parte, nas raízes de um
nacionalismo mexicano pós-revolucionário, as bases para definição, em caráter de resistência,
de traços distintivos chicanos, os quais podem se vir agregados a imaginários proto-nacionais
chicanos, por assim dizer a partir do momento em que nos permitamos pensar em
chicanidades assumidas como marca de uma proto-nação sem estado ou território (oficial)
definido pela classe, povo, estado ou cultura aos quais se opõe como alteridade ou sujeitada
está.
Sendo assim, ainda em tom de relativização, há na ficção de ...y no se lo tragó ecos de
toda uma construção de sentidos própria daqueles que assumiram a bandeira de uma
identidade chicana de resistência. Um dos marcos dessa construção de sentidos se atém ao
âmbito de instauração de afirmação linguística, de afirmação de identidades também pela
língua e pela linguagem. Conforme já pude descrever, a potencialização literária do caló de
sua gente pode, de acordo com fatores variáveis de alcance, sucesso editorial da obra e nas
relações estabelecidas com as instâncias de conhecimento que traz ou não consigo o
leitor/receptor, agregar-se ao imaginário que se assoma sobre uma marca supostamente
“nacional”: a de que todo chicano, fala pelo viés de bilinguismos do espanglês e do registro
popular presente nos pachuquismos adotados na linguagem literária elaborada por Rivera; ou,
minimamente, a ideia de que todo (me)chicano fala assim.
A orquestração da palavra levada às páginas da literatura cumpre assim em Rivera um
duplo papel. Por um lado, esse registro popular surge como estranhamento, desautomatização
não tanto pela sua simples inserção na narrativa, mas, principalmente, por sua aplicação
singular junto ao uso da categoria gramatical elipse. Por outro, há o feito de que, ao unir o
trabalho de elaboração literária de um registro linguístico também seu por ser-lhe tão próximo
a traços universais do humano, Rivera termina criando uma espécie de simbiose
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