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mas, sim, circunscrever as maneiras como se manifesta e opera. Pretende antes descobrir
como ele funciona, para que, desde os efeitos descritíveis se possam abrir vias, caminhos
rumo, em direção ao imaginário, algo que resultaria da conexão, de acordo com o que trabalha
em seu artigo, entre o fictício e o próprio imaginário (Cf. ISER, 1983, p. 413).
Haja vista que a argumentação de Iser se refere, frente ao texto literário, à não
determinação do imaginário como uma faculdade humana, parece-me razoável, em dialética
com os argumentos expostos pelo autor alemão, expor certa divergência que trago em relação
a suas colocações. A partir das observações que surgem do eixo de minhas investigações,
creio, sim, que se possa relacionar a questão dos imaginários como algo que de fato tem a ver
com o âmbito das faculdades humanas, em especial com a psicologia (o que nos faz voltar ao
significado quatro que o dicionário da RAE confere ao vocábulo ‘imaginário’) e com
processos mentais, químicos, cerebrais os quais, estes, sim, penso estejam envolvidos na
função de abrirem vias para o imaginário. Não obstante, será o próprio Iser quem, em
determinado momento de seu texto irá, quase à maneira de um discurso que se complementa,
porém que ao mesmo passo “trai” a si mesmo, destacar o caráter de produção psicológica na
relação do real e do fictício com o imaginário. Irei utilizar tal “ato de autotraição” algo mais
adiante, pois parece uma boa ilustração para o fechamento das questões que desenvolvo neste
breve diálogo com Iser.
No entanto, há ainda para explorar outras interessantes aclarações do teórico alemão
sobre o tema imaginários. Uma delas diz respeito a apontar que no ato de fingir “o imaginário
ganha uma determinação que não lhe é própria, e adquire, deste modo, um predicado de
realidade” (ISER, 1983, p. 386). Para Iser, o real tem a característica da determinação (a qual
se alcança através do ato de fingir) como sua definição mínima. Em consequência, ainda que
não se transforme em real por este efeito determinante logrado pela ação de fingir, o
imaginário pode, em verdade, adquirir aparência de real enquanto puder por esse ato penetrar
no mundo e só então nele agir (Cf. ISER, 1983, p. 386). Neste aspecto, o imaginário
desempenha um papel transgressor de limites ao sair de seu caráter de surgimento difuso para
uma configuração determinada, razão pela qual só assim se assemelharia, confundir-se-ia
mais com o real. De tal operação se depreende, ainda segundo Iser, que sucede ao imaginário
uma realização (ein Realwerden) na conversão deste mesmo imaginário (que perde seu rasgo
fluido em favor de uma determinação) em efeito da realidade vivencial, retomada pelo texto, à
qual este mesmo imaginário se refere e com a qual ao mesmo tempo se relaciona (Cf. ISER,
1983, p. 387).
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Ainda acerca da correlação que se estabelece entre realidade e imaginário, cabe
observar que inclusive a eterna discussão sobre a intenção autoral merece a atenção de Iser no
desenrolar de sua exposição. Para W. Iser, para além da intencionalidade do autor estaria a
intencionalidade do texto, pois ela se manifestaria na decomposição dos campos de referência
com que trabalha este mesmo texto literário. Dessa maneira, a intencionalidade textual passa a
apresentar-se como figura de transição (Übergangsgestalt) entre o real e o imaginário, sob o
preceito da atualidade que lhe é própria e inerente. Segundo sua linha de raciocínio, entenda-
se por atualidade a forma de expressão do acontecimento; tal atualidade se refere ao processo
pelo qual o imaginário age no espaço do real.
Estabelecidas essas bases, Wolfgang Iser segue além com sua proposta substitutiva do
binarismo que advém do lugar comum onde se costuma opor de maneira simplista ficção e
realidade. A esse simplismo Iser propõe a entrada de outra visão: a de que se trabalhe a
relação complementária entre real, fictício e imaginário. Nesse aspecto, há que destacar-se,
ademais, o papel do fictício, uma espécie de conjunto de ficções (em um sentido que não se
restringe apenas à arte ou à literatura, senão melhor como uma gama de entidades fictícias,
compreendidas tais objetos de existência fingida pela imaginação).
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Para W. Iser, o fictício se
qualifica como uma forma específica de passagem a mover-se entre o real e o imaginário,
com a finalidade de provocar a complementação que um confere ao outro (Cf. ISER, p. 387).
Com efeito, o papel principal do fictício seria o de garantir ao imaginário sua significação, por
intermédio tanto da determinação de sua configuração quanto de sua referência a algo real, o
que apenas poderia ocorrer através da língua. É pela língua que as ficções adquiririam
aparência de realidade, aparência esta que teria origem na configuração concreta que as
ficções, entidades fictícias, outorgam ao imaginário. Assim sendo, as ficções tomariam por
empréstimo o caráter de realidade da língua. Como consequência, pode-se assim dizer que o
imaginário sai de sua “irrealização” na imaginação para um caráter de “realização” na língua,
seja, como aqui se nos apresenta como eixo analítico, em sua forma cotidiana ou literária.
Isto exposto, é importante destacar que essa realização do imaginário por intermédio
da língua passa antes por todo um processo de procura de significado, ou seja, uma busca de
semantização da experiência do imaginário, necessidade sentida, vivida pelo receptor, para
que o advento do imaginário se torne ou, melhor dito, molde-se a tons de mais familiaridade,
tornando-se mais compreensível, menos expansivo e, portanto, mais controlável. Neste
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Aqui Iser trabalha a partir dos estudos do filósofo inglês Jeremy Bentham, materializados em Theory of
fictions, publicado em 1959, mais de um século após sua morte e passados dois anos da morte de C. K. Ogden,
responsável por cuidar da organização desta obra de Bentham.
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