Para além do Pensamento Abissal |
entanto, outras formas de intervenção no real que hoje nos são valiosas e
para as quais a ciência moderna nada contribuiu. É o caso, por exemplo,
da preservação da biodiversidade tornada possível por formas de conheci‑
mento camponesas e indígenas e que, paradoxalmente, se encontram hoje
ameaçadas pela intervenção crescente da ciência moderna (Santos, Meneses
e Nunes, 004). E não deverá espantar‑nos a riqueza dos conhecimentos
que conseguiram preservar modos de vida, universos simbólicos e informa‑
ções vitais para a sobrevivência em ambientes hostis com base exclusiva‑
mente na tradição oral? Dirá algo sobre a ciência o facto de que através dela
tal nunca teria sido possível?
Aqui reside o impulso para a co‑presença igualitária (como simultanei‑
dade e contemporaneidade), e para a incompletude. Uma vez que nenhuma
forma singular de conhecimento pode responder por todas as intervenções
possíveis no mundo, todas elas são, de diferentes maneiras, incompletas.
A incompletude não pode ser erradicada porque qualquer descrição com‑
pleta das variedades de saber não incluiria a forma de saber responsável
pela própria descrição. Não há conhecimento que não seja conhecido por
alguém para alguns objectivos. Todos os conhecimentos sustentam práticas
e constituem sujeitos. Todos os conhecimentos são testemunhais porque
o que conhecem sobre o real (a sua dimensão activa) se reflecte sempre
no que dão a conhecer sobre o sujeito do conhecimento (a sua dimensão
subjectiva). Ao questionarem a distinção sujeito/objecto, as ciências da
complexidade dão conta deste fenómeno, mas confinam‑no às práticas cien‑
tíficas. A ecologia de saberes expande o carácter testemunhal dos conheci‑
mentos de forma a abarcar igualmente as relações entre o conhecimento
científico e não‑científico, alargando deste modo o alcance da inter‑subjec‑
tividade como interconhecimento e vice‑versa.
Num regime de ecologia de saberes, a busca de inter‑subjectividade é tão
importante quanto complexa. Dado que diferentes práticas de conhecimento
têm lugar em diferentes escalas espaciais e de acordo com diferentes dura‑
ções e ritmos, a inter‑subjectividade requer também a disposição para conhe‑
cer e agir em escalas diferentes (inter‑escalaridade) e articulando diferentes
durações (inter‑temporalidade). Muitas das experiências subalternas de
resistência são locais ou foram localizadas e assim tornadas irrelevantes ou
inexistentes pelo conhecimento abissal moderno, o único capaz de gerar
experiências globais. Contudo, uma vez que a resistência contra as linhas
abissais tem de ter lugar a uma escala global, é imperativo desenvolver algum
tipo de articulação entre as experiências subalternas através de ligações
locais‑globais. Para ser bem sucedida, a ecologia de saberes tem de ser
trans‑escalar (Santos, 000: 09‑5).
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Boaventura de Sousa Santos
Além disso, a coexistência de diferentes temporalidades ou durações em
diferentes práticas de conhecimento requer uma expansão da moldura tem‑
poral. Enquanto as modernas tecnologias tendem a favorecer a moldura
temporal e a duração da acção estatal, tanto na administração pública como
na política (o ciclo eleitoral, por exemplo), as experiências subalternas do
Sul global têm sido forçadas a responder tanto à curta duração das neces‑
sidades imediatas de sobrevivência como à longa duração do capitalismo e
do colonialismo. Mesmo nas lutas subalternas podem estar presentes dife‑
rentes durações. Como exemplo, a luta pela terra dos camponeses empobre‑
cidos da América Latina pode incluir a duração do Estado moderno, quando,
por exemplo, no Brasil, o Movimento dos Sem Terra (MST) luta pela reforma
agrária, a duração da escravatura, quando os povos afro‑descendentes lutam
pela recuperação dos Quilombos, a terra dos escravos fugitivos, seus ante‑
passados, ou ainda a duração ainda mais longa, do colonialismo, quando
os povos indígenas lutam para reaver os seus territórios históricos de que
foram esbulhados pelos conquistadores.
Ecologia de saberes, hierarquia e pragmática
A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstracto, mas
antes como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem certas
intervenções no mundo real. Um pragmatismo epistemológico é, acima de
tudo, justificado pelo facto de as experiências de vida dos oprimidos lhes
serem inteligíveis por via de uma epistemologia das consequências. No
mundo em que vivem, as consequências vêm sempre primeiro que as causas.
A ecologia de saberes assenta na ideia pragmática de que é necessária
uma reavaliação das intervenções e relações concretas na sociedade e na
natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam. Centra‑se, pois,
nas relações entre saberes, nas hierarquias que se geram entre eles, uma vez
que nenhuma prática concreta seria possível sem estas hierarquias. Contudo,
em lugar de subscrever uma hierarquia única, universal e abstracta entre os
saberes, a ecologia de saberes favorece hierarquias dependentes do contexto,
à luz dos resultados concretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes
formas de saber. Hierarquias concretas emergem do valor relativo de inter‑
venções alternativas no mundo real. Entre os diferentes tipos de intervenção
pode existir complementaridade ou contradição.
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Sempre que há interven‑
ções no real que podem, em teoria, ser levadas a cabo por diferentes sistemas
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A prevalência dos juízos cognitivos ao levar a cabo uma determinada prática de conhecimento
não choca com a prevalência dos juízos ético‑políticos na decisão a favor de um determinado tipo
de intervenção real que esse conhecimento específico possibilita em detrimento de intervenções
alternativas possibilitadas por conhecimentos alternativos.