Para além do Pensamento Abissal |
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manifestação mais benevolente do ordenamento regulação/emancipação,
traz consigo a lógica da apropriação/violência sempre que estejam envolvi‑
das relações muito desiguais de poder. Trata‑se de um direito cujo cumpri‑
mento é voluntário. Sem surpresa, tem vindo a ser usado, entre outros
domínios sociais, no campo das relações capital/trabalho, e a sua versão
mais conseguida são os códigos de conduta cuja adopção tem sido recomen‑
dada às multinacionais metropolitanas na subcontratação de serviços às
“suas” sweatshops em todo o mundo.
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A plasticidade da soft law apresenta
semelhanças intrigantes com o direito colonial, cuja aplicação dependia
mais da vontade do colonizador do que de qualquer outra coisa.
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As rela‑
ções sociais que regula são, se não um novo estado de natureza, uma zona
intermédia entre o estado de natureza e a sociedade civil, onde o fascismo
social prolifera e floresce.
Em suma, o pensamento abissal moderno, que, deste lado da linha, tem
vindo a ser chamado para regular as relações entre cidadãos e entre estes e
o Estado, é agora chamado, nos domínios sociais sujeitos uma maior pressão
por parte da lógica da apropriação/violência, a lidar com os cidadãos como
se fossem não‑cidadãos, e com não‑cidadãos como se se tratasse de perigosos
selvagens coloniais. Como o fascismo social coexiste com a democracia libe‑
ral, o Estado de excepção coexiste com a normalidade constitucional, a socie‑
dade civil coexiste com o estado de natureza, o governo indirecto coexiste
com o primado do direito. Longe de constituir a perversão de alguma regra
normal, fundadora, este estado de coisas é o projecto original da moderna
epistemologia e legalidade, mesmo que a linha abissal que desde o primeiro
momento distinguiu o metropolitano do colonial se tenha deslocado, trans‑
formando o colonial numa dimensão interna do metropolitano.
Cosmopolitismo subalterno
À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a ideia de que, a menos
que se defronte com uma resistência activa, o pensamento abissal continu‑
ará a auto‑reproduzir‑se, por mais excludentes que sejam as práticas que
origina. Assim, a resistência política deve ter como postulado a resistência
epistemológica. Como foi dito inicialmente, não existe justiça social global
Trubek e Trubek, 005; Morth, 004), “experimentalismo democrático” (Dorf e Sabel 998; Unger
998), “governação cooperativa” (Freeman, 997), “regulação outsourced” (O’Rourke, 00) ou
simplesmente “governação” (Mac Neil, Sargent e Swan 000; Nye e Donahue, 000). Para uma
crítica, ver Santos e Rodriguez‑Garavito 005: ‑6 e 9‑6; Rodriguez‑Garavito, 005: 64‑9.
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Ver Rodriguez‑Garavito, 005, e a bibliografia aí citada.
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Este tipo de lei é eufemisticamente denominada soft por ser soft com aqueles cujo comportamento
empreendedor era suposto regular (empregadores) e dura com aqueles que sofrem as consequên‑
cias do seu não‑cumprimento (trabalhadores).
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Boaventura de Sousa Santos
sem justiça cognitiva global. Isto significa que a tarefa crítica que se avizinha
não pode ficar limitada à geração de alternativas. Ela requer, de facto, um
pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento,
um pensamento pós‑abissal. Será possível? Existirão as condições que, se
devidamente aproveitadas, poderão dar‑lhe uma chance? A investigação
sobre estas condições explica a minha especial atenção ao contra‑movimento
que mencionei acima, resultante do abalo que as linhas abissais globais têm
vindo a sofrer desde 970 e 980: movimento a que dei o nome de cosmo‑
politismo subalterno.
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O cosmopolitismo subalterno contém uma promessa real apesar de o
seu carácter ser de momento claramente embrionário. De facto, para
captá‑lo é necessário realizar o que chamo sociologia das emergências
(Santos, 004). Esta consiste numa amplificação simbólica de sinais, pistas
e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas,
apontam para novas constelações de sentido tanto no que respeita à com‑
preensão como à transformação do mundo. O cosmopolitismo subalterno
manifesta‑se através das iniciativas e movimentos que constituem a globa‑
lização contra‑hegemónica. Consiste num vasto conjunto de redes, inicia‑
tivas, organizações e movimentos que lutam contra a exclusão económica,
social, política e cultural gerada pela mais recente incarnação do capitalismo
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Não me ocupo aqui dos debates actuais sobre o cosmopolitismo. Na sua longa história, cosmo‑
politismo significou universalismo, tolerância, patriotismo, cidadania global, comunidade global
de seres humanos, culturas globais, etc. O que ocorre mais frequentemente quando este conceito
é aplicado – seja como instrumento específico para descrever uma realidade ou como instrumento
em lutas políticas – é que a incondicional natureza inclusiva da sua formulação abstracta tem vindo
a ser utilizada para prosseguir interesses excludentes de um grupo social específico. De certo modo,
o cosmopolitismo tem sido privilégio daqueles que podem tê‑lo. A forma como revisito este conceito
prevê a identificação dos grupos cujas aspirações são negadas ou tornadas invisíveis pelo uso
hegemónico do conceito, mas que podem ser beneficiados pelo uso alternativo do mesmo. Para‑
fraseando Stuart Hall, que levantou uma questão semelhante em relação ao conceito de identidade
(996), eu pergunto: quem precisa do cosmopolitismo? A resposta é simples: todo aquele que for
vítima de intolerância e discriminação necessita de tolerância; todo aquele a quem seja negada a
dignidade humana básica necessita de uma comunidade de seres humanos; todo aquele que seja
não‑cidadão necessita da cidadania mundana numa dada comunidade ou nação. Em suma, os
socialmente excluídos, vítimas da concepção hegemónica de cosmopolitismo, necessitam de um
tipo diverso de cosmopolitismo. O cosmopolitismo subalterno constitui, deste modo, uma variante
de oposição. Da mesma forma que a globalização neoliberal não reconhece quaisquer formas
alternativas de globalização, também o cosmopolitismo sem adjectivos nega a sua própria especi‑
ficidade. O cosmopolitismo subalterno de oposição é uma forma cultural e política de globalização
contra‑hegemónica. É o nome dos projectos emancipatórios cujas reivindicações e critérios de
inclusão social vão além dos horizontes do capitalismo global. Outros, com preocupações similares,
também adjectivaram o cosmopolitismo: cosmopolitismo enraizado (Cohen, 99), cosmopolitismo
patriótico (Appiah, 998), cosmopolitismo vernáculo (Bhabha, 996; Diouf, 000), etnicidade
cosmopolita (Werbner, 00), ou cosmopolitismo das classes trabalhadoras (Wrebner, 999). Sobre
formas distintas de cosmopolitismo, ver Breckeridge et al. (org.), 00.