Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 1

manifestação mais benevolente do ordenamento regulação/emancipação, 

traz consigo a lógica da apropriação/violência sempre que estejam envolvi‑

das relações muito desiguais de poder. Trata‑se de um direito cujo cumpri‑

mento é voluntário. Sem surpresa, tem vindo a ser usado, entre outros 

domínios sociais, no campo das relações capital/trabalho, e a sua versão 

mais conseguida são os códigos de conduta cuja adopção tem sido recomen‑

dada às multinacionais metropolitanas na subcontratação de serviços às 

“suas” sweatshops em todo o mundo.

40

 A plasticidade da soft law apresenta 



semelhanças intrigantes com o direito colonial, cuja aplicação dependia 

mais da vontade do colonizador do que de qualquer outra coisa.

4

 As rela‑



ções sociais que regula são, se não um novo estado de natureza, uma zona 

intermédia entre o estado de natureza e a sociedade civil, onde o fascismo 

social prolifera e floresce.

Em suma, o pensamento abissal moderno, que, deste lado da linha, tem 

vindo a ser chamado para regular as relações entre cidadãos e entre estes e 

o Estado, é agora chamado, nos domínios sociais sujeitos uma maior pressão 

por parte da lógica da apropriação/violência, a lidar com os cidadãos como 

se fossem não‑cidadãos, e com não‑cidadãos como se se tratasse de perigosos 

selvagens coloniais. Como o fascismo social coexiste com a democracia libe‑

ral, o Estado de excepção coexiste com a normalidade constitucional, a socie‑

dade civil coexiste com o estado de natureza, o governo indirecto coexiste 

com o primado do direito. Longe de constituir a perversão de alguma regra 

normal, fundadora, este estado de coisas é o projecto original da moderna 

epistemologia e legalidade, mesmo que a linha abissal que desde o primeiro 

momento distinguiu o metropolitano do colonial se tenha deslocado, trans‑

formando o colonial numa dimensão interna do metropolitano.



Cosmopolitismo subalterno 

À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a ideia de que, a menos 

que se defronte com uma resistência activa, o pensamento abissal continu‑

ará a auto‑reproduzir‑se, por mais excludentes que sejam as práticas que 

origina. Assim, a resistência política deve ter como postulado a resistência 

epistemológica. Como foi dito inicialmente, não existe justiça social global 

Trubek e Trubek, 005; Morth, 004), “experimentalismo democrático” (Dorf e Sabel 998; Unger 

998), “governação cooperativa” (Freeman, 997), “regulação outsourced” (O’Rourke, 00) ou 

simplesmente “governação” (Mac Neil, Sargent e Swan 000; Nye e Donahue, 000). Para uma 

crítica, ver Santos e Rodriguez‑Garavito 005: ‑6 e 9‑6; Rodriguez‑Garavito, 005: 64‑9. 

40

  Ver Rodriguez‑Garavito, 005, e a bibliografia aí citada.



4

  Este tipo de lei é eufemisticamente denominada soft por ser soft com aqueles cujo comportamento 

empreendedor era suposto regular (empregadores) e dura com aqueles que sofrem as consequên‑

cias do seu não‑cumprimento (trabalhadores).




0 | Boaventura de Sousa Santos 

sem justiça cognitiva global. Isto significa que a tarefa crítica que se avizinha 

não pode ficar limitada à geração de alternativas. Ela requer, de facto, um 

pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, 

um pensamento pós‑abissal. Será possível? Existirão as condições que, se 

devidamente aproveitadas, poderão dar‑lhe uma chance? A investigação 

sobre estas condições explica a minha especial atenção ao contra‑movimento 

que mencionei acima, resultante do abalo que as linhas abissais globais têm 

vindo a sofrer desde 970 e 980: movimento a que dei o nome de cosmo‑

politismo subalterno.

4

 

O cosmopolitismo subalterno contém uma promessa real apesar de o 



seu carácter ser de momento claramente embrionário. De facto, para 

 captá‑lo é necessário realizar o que chamo sociologia das emergências 

 (Santos, 004). Esta consiste numa amplificação simbólica de sinais, pistas 

e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, 

apontam para novas constelações de sentido tanto no que respeita à com‑

preensão como à transformação do mundo. O cosmopolitismo subalterno 

manifesta‑se através das iniciativas e movimentos que constituem a globa‑

lização contra‑hegemónica. Consiste num vasto conjunto de redes, inicia‑

tivas, organizações e movimentos que lutam contra a exclusão económica, 

social, política e cultural gerada pela mais recente incarnação do capitalismo 

4

  Não me ocupo aqui dos debates actuais sobre o cosmopolitismo. Na sua longa história, cosmo‑



politismo significou universalismo, tolerância, patriotismo, cidadania global, comunidade global 

de seres humanos, culturas globais, etc. O que ocorre mais frequentemente quando este conceito 

é aplicado – seja como instrumento específico para descrever uma realidade ou como instrumento 

em lutas políticas – é que a incondicional natureza inclusiva da sua formulação abstracta tem vindo 

a ser utilizada para prosseguir interesses excludentes de um grupo social específico. De certo modo, 

o cosmopolitismo tem sido privilégio daqueles que podem tê‑lo. A forma como revisito este conceito 

prevê a identificação dos grupos cujas aspirações são negadas ou tornadas invisíveis pelo uso 

hegemónico do conceito, mas que podem ser beneficiados pelo uso alternativo do mesmo. Para‑

fraseando Stuart Hall, que levantou uma questão semelhante em relação ao conceito de identidade 

(996), eu pergunto: quem precisa do cosmopolitismo? A resposta é simples: todo aquele que for 

vítima de intolerância e discriminação necessita de tolerância; todo aquele a quem seja negada a 

dignidade humana básica necessita de uma comunidade de seres humanos; todo aquele que seja 

não‑cidadão necessita da cidadania mundana numa dada comunidade ou nação. Em suma, os 

socialmente excluídos, vítimas da concepção hegemónica de cosmopolitismo, necessitam de um 

tipo diverso de cosmopolitismo. O cosmopolitismo subalterno constitui, deste modo, uma variante 

de oposição. Da mesma forma que a globalização neoliberal não reconhece quaisquer formas 

alternativas de globalização, também o cosmopolitismo sem adjectivos nega a sua própria especi‑

ficidade. O cosmopolitismo subalterno de oposição é uma forma cultural e política de globalização 

contra‑hegemónica. É o nome dos projectos emancipatórios cujas reivindicações e critérios de 

inclusão social vão além dos horizontes do capitalismo global. Outros, com preocupações similares, 

também adjectivaram o cosmopolitismo: cosmopolitismo enraizado (Cohen, 99), cosmopolitismo 

patriótico (Appiah, 998), cosmopolitismo vernáculo (Bhabha, 996; Diouf, 000), etnicidade 

cosmopolita (Werbner, 00), ou cosmopolitismo das classes trabalhadoras (Wrebner, 999). Sobre 

formas distintas de cosmopolitismo, ver Breckeridge et al. (org.), 00. 




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