Para além do Pensamento Abissal |
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cumentado
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e o refugiado.
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De formas distintas, cada um deles traz consigo
a linha abissal global que define a exclusão radical e inexistência jurídica.
Por exemplo, em muitas das suas disposições, a nova vaga de legislação
anti‑terrorista e de imigração segue a lógica reguladora do paradigma da
apropriação/violência.
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O regresso do colonial não significa necessaria‑
mente a sua presença física nas sociedades metropolitanas. Basta que possua
uma ligação relevante com elas. No caso do terrorista, esta ligação pode ser
estabelecida pelos serviços secretos. No caso do trabalhador imigrante indo‑
cumentado, basta que seja contratado por uma das muitas centenas de
sweatshops que operam no Sul global
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subcontratadas por corporações
metropolitanas multinacionais. No caso dos refugiados, a ligação relevante
é estabelecida pelo seu pedido de obtenção do estatuto de refugiado numa
dada sociedade metropolitana.
O colonial que regressa é, de facto, um novo colonial abissal. Desta feita,
o colonial retorna não só aos antigos territórios coloniais, mas também às
sociedades metropolitanas. Aqui reside a grande transgressão, pois o colo‑
nial do período colonial clássico em caso algum poderia entrar nas socie‑
dades metropolitanas a não ser por iniciativa do colonizador (como escravo,
por exemplo). Os espaços metropolitanos que se encontravam demarcados
desde o início da modernidade ocidental deste lado da linha estão a ser
invadidos ou trespassados pelo colonial. Mais ainda, o colonial demonstra
um nível de mobilidade imensamente superior à mobilidade dos escravos
em fuga (David, 94; Tushnet, 98: 69‑88). Nestas circunstâncias, o
abissal metropolitano vê‑se confinado a um espaço cada vez mais limitado
e reage remarcando a linha abissal. Na sua perspectiva, a nova intromissão
do colonial tem de ser confrontada com a lógica ordenadora da apropria‑
ção/violência. Chegou ao fim o tempo de uma divisão clara entre o Velho
e o Novo Mundo, entre o metropolitano e o colonial. A linha tem de ser
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Ver Sassen, 999; Miller, 00; De Genova, 00; Kanstroom, 004; Hansen e Stepputat, 004;
Wishnie, 004; Taylor, 004; Silverstein, 005; Passel, 005. Para uma visão mais radical sobre este
tema, ver Buchanan, 006.
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Baseado no Orientalismo analisado por Edward Said (978), Akram (000) identifica uma nova
forma de estereótipo, a que chama neo‑Orientalismo e que afecta a avaliação metropolitana dos
pedidos de asilo e refúgio por parte de pessoas provenientes do mundo árabe ou muçulmano. Ver
também Akram, 999; Menefee, 004; Bauer, 004; Cianciarulo, 005; Akram e Karmely, 005.
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Sobre as implicações da nova vaga anti‑terrorista e das novas leis de imigração, ver os artigos
citados nas notas , 4, e 5 e também Immigrant Rights Clinic, 00; Chang, 00; Whitehead
e Aden, 00; Zelman, 00; Lobel, 00; Roach, 00 (sobre o caso canadiano); Van de Linde et
al., 00 (sobre alguns países europeus); Miller, 00; Emerton, 004 (sobre a Austrália); Boyne,
004 (sobre a Alemanha); Krishnan, 004 (sobre a Índia); Barr, 004; N. Graham, 005.
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Refiro‑me aqui às regiões periféricas e semiperiféricas e aos países do sistema mundo moderno,
que foram denominados de Terceiro Mundo, após a Segunda Guerra Mundial (Santos, 995:
506‑59).
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Boaventura de Sousa Santos
desenhada a uma distância tão curta quanto o necessário para garantir a
segurança. O que costumava pertencer inequivocamente a este lado da
linha é agora um território confuso atravessado por uma linha abissal sinuosa.
O muro da segregação israelita na Palestina (Tribunal Internacional de
Justiça, 005) e a categoria de “combatente inimigo ilegal”
(
Dörmann, 00;
Harris, 00; Kanstroom, 00; Human Rights Watch, 004; Gill e Sliedregt,
005), criada pela administração dos EUA depois do de Setembro, cons‑
tituem possivelmente as metáforas mais adequadas da nova linha abissal e
da cartografia confusa a que conduz.
Uma cartografia confusa não pode deixar de conduzir a práticas confu‑
sas. A regulação/emancipação é cada vez mais desfigurada pela presença e
crescente pressão da apropriação/violência no seu interior. Contudo, nem
a pressão nem o desfiguramento podem ser completamente percebidos,
precisamente pelo facto de o outro lado da linha ter sido desde o início
incompreensível como um território sub‑humano.
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De formas distintas, o
terrrorista e o trabalhador imigrante indocumentado são ambos ilustrativos
da pressão da lógica da apropriação/violência e da inabilidade do pensa‑
mento abissal para se aperceber desta pressão como algo estranho à regu‑
lação/emancipação. Cada vez se torna mais evidente que a legislação anti‑
terrorista já mencionada e que se encontra em promulgação em muitos
países, seguindo a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas
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e sob forte pressão da diplomacia dos EUA, esvazia o conteúdo civil e
político dos direitos e garantias básicas das Constituições nacionais. Porque
tudo isto ocorre sem uma suspensão formal destes direitos e garantias,
estamos perante a emergência de uma nova forma de Estado, o Estado
de excepção, que, contrariamente às antigas formas de Estado de sítio ou
de Estado de emergência, restringe os direitos democráticos sob o pretexto
da sua salvaguarda ou mesmo expansão.
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Como exemplo, os profissionais do direito são solicitados a adaptar‑se à pressão proveniente da
reorganização da doutrina convencional, alterando regras de interpretação, redefinindo o objectivo
dos princípios e hierarquias entre eles. Um exemplo revelador é o debate sobre a constitucionalidade
da tortura entre Alan Dershowitz e os seus críticos. Ver Dershowitz, 00, 00a, 00b; Posner,
00; Kreimer, 00; Strauss, 004.
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Resolução 566 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Esta resolução antiterrorismo
foi aprovada a 8 de Outubro de 004, na sequência da resolução 7 que, por sua vez, foi aprovada
como resposta aos ataques terroristas de de Setembro nos EUA. Para uma análise detalhada do
processo de aprovação da resolução 566, ver Saul, 005.
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Utilizo o conceito de Estado de excepção para expressar a condição jurídico‑política na qual a
erosão dos direitos civis e políticos ocorre abaixo do radar da Constituição, isto é, sem a suspensão
desses direitos, como acontece quando é declarado o Estado de emergência. Ver Scheppele, 004b;
Agamben, 004.