Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 

de conhecimento, as escolhas concretas das formas de conhecimento a pri‑

vilegiar devem ser informadas pelo princípio de precaução, que, no contexto 

da ecologia de saberes, deve formular‑se assim: deve dar‑se preferência às 

formas de conhecimento que garantam a maior participação dos grupos 

sociais envolvidos na concepção, na execução, no controlo e na fruição      

da intervenção.

O exemplo seguinte ilustra bem os perigos de substituir um tipo de 

conhecimento por outro com base em hierarquias abstractas. Nos anos      

de 960, os sistemas milenares de irrigação dos campos de arroz da ilha de 

Bali, na Indonésia, foram substituídos por sistemas científicos de irrigação, 

promovidos pelos prosélitos da revolução verde. Os sistemas tradicionais 

de irrigação assentavam em conhecimentos hidrológicos, agrícolas e reli‑

giosos ancestrais, e eram administrados por sacerdotes de um templo hindu‑

‑budista dedicado a Dewi‑Danu, a deusa do lago. Foram substituídos pre‑

cisamente por serem considerados produtos da magia e da superstição, 

derivados do que foi depreciativamente designado como “culto do arroz”. 

Acontece que a substituição teve resultados desastrosos para a cultura do 

arroz com decréscimos nas colheitas para mais de metade. Os maus resul‑

tados repetiram‑se nas colheitas seguintes e foram tão desastrosos que os 

sistemas científicos tiveram de ser abandonados e os sistemas tradicionais 

repostos (Lansing, 987, 99; Lansing e Kremer, 99). Este caso ilustra 

a importância do princípio da precaução quando lidamos com uma possível 

complementaridade ou contradição entre diferentes tipos de conhecimento. 

É que, além do mais, a suposta incompatibilidade entre dois sistemas de 

conhecimento (o religioso e o científico) para a realização da mesma inter‑

venção (a irrigação dos campos de arroz) foi o resultado de uma má avalia‑

ção (má ciência) provocada precisamente por juízos abstractos baseados na 

superioridade abstracta do conhecimento científico. Trinta anos depois da 

desastrosa intervenção técnico‑científica, a modelação computacional – uma 

área das novas ciências ou ciências da complexidade – veio demonstrar que 

as sequências da água geridas pelos sacerdotes da deusa Dewi‑Danu eram 

os mais eficientes possíveis, mais eficientes, portanto, do que as do sistema 

científico de irrigação ou qualquer outro (Lansing e Kremer, 99).



Ecologia de saberes, incomensurabilidade e tradução

Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global, o policiamento 

das fronteiras do conhecimento relevante é de longe mais decisivo do que 

as discussões sobre diferenças internas. Como consequência, um epistemi‑

cídio maciço tem vindo a decorrer nos últimos cinco séculos, e uma riqueza 

imensa de experiências cognitivas tem vindo a ser desperdiçada. Para recu‑




30 | Boaventura de Sousa Santos 

perar algumas destas experiências, a ecologia de saberes recorre ao seu 

atributo pós‑abissal mais característico, a tradução intercultural. Embebidas 

em diferentes culturas ocidentais e não‑ocidentais, estas experiências não 

só usam linguagens diferentes, mas também distintas categorias, diferentes 

universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor. 

As profundas diferenças entre saberes levantam a questão da incomen‑

surabilidade, uma questão utilizada pela epistemologia abissal para desa‑

creditar a mera possibilidade de um ecologia de saberes. Um exemplo ajuda 

a ilustrar esta questão. Será possível estabelecer um diálogo entre a filoso‑

fia ocidental e a filosofia africana? Formulada assim, a pergunta parece só 

permitir uma resposta positiva, uma vez que elas partilham algo em comum: 

são ambas filosofia.

5

 No entanto, para muitos filósofos ocidentais e afri‑



canos, não é possível referirmo‑nos a uma filosofia africana porque existe 

apenas uma filosofia, cuja universalidade não é posta em causa pelo facto 

de até ao momento se ter desenvolvido sobretudo no Ocidente. Em África, 

esta é a posição dos chamados filósofos modernistas. Para outros filósofos 

africanos, os filósofos tradicionalistas, há filosofia africana mas, como ela 

está embebida na cultura africana, é incomensurável com a filosofia oci‑

dental e deve seguir o seu desenvolvimento autónomo.

5

 Entre estas duas 



posições, há aquelas que defendem que existem muitas filosofias e que é 

possível o diálogo entre elas e o enriquecimento mútuo. Estas posições 

vêem‑se frequentemente confrontadas com os problemas da incomensu‑

rabilidade, incompatibilidade e ininteligibilidade recíprocas que procuram 

resolver, explorando formas, por vezes insuspeitadas, de complementari‑

dade. Tudo depende do uso de procedimentos adequados de tradução 

intercultural. Através da tradução, torna‑se possível identificar preocupa‑

ções comuns, aproximações complementares e, claro, também contradi‑

ções inultrapassáveis.

54

Um exemplo ilustra o que está em jogo. O filósofo ganiano Kwasi Wiredu 



afirma que na cultura e língua Akan, do Gana (grupo étnico a que pertence) 

não é possível traduzir o preceito cartesiano “cogito ergo sum” (990, 996). 

A razão é que não há palavras para exprimir tal ideia. “Pensar”, em Akan, 

significa “medir algo”, o que não faz sentido quando acoplado à ideia de 

5

  O mesmo argumento pode ser usado em relação a um diálogo entre religiões. 



5

  Sobre este assunto, ver Eze, 997; Karp e Masolo, 000; Hountondji, 00; Coetzee and Roux, 

00; Brown, 004.

54

  Nesta área, os problemas estão frequentemente associados com a linguagem, e esta é, de facto, 



um instrumento chave para o desenvolvimento de uma ecologia dos saberes. Como resultado, a 

tradução deve operar a dois níveis, o linguístico e o cultural. A tradução cultural será uma das 

tarefas mais desafiantes que se apresenta a filósofos, cientistas sociais e activistas no século XXI. 

Trato deste assunto com maior detalhe em Santos, 004 e 006b.




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