Para além do Pensamento Abissal |
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e em interacções sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a
sua autonomia. A ecologia de saberes baseia‑se na ideia de que o conheci‑
mento é interconhecimento.
Pensamento pós‑abissal e co‑presença
A primeira condição para um pensamento pós‑abissal é a co‑presença radical.
A co‑presença radical significa que práticas e agentes de ambos os lados da
linha são contemporâneos em termos igualitários. A co‑presença radical implica
conceber simultaneidade como contemporaneidade, o que só pode ser con‑
seguido abandonando a concepção linear de tempo.
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Só assim será possível
ir além de Hegel (970), para quem ser membro da humanidade histórica – isto
é, estar deste lado da linha – significava ser um grego e não um bárbaro no
século V a.C., um cidadão romano e não um grego nos primeiros séculos da
nossa era, um cristão e não um judeu na Idade Média, um europeu e não um
selvagem do Novo Mundo no século XVI, e, no século XIX, um europeu
(incluindo os europeus deslocados da América do Norte) e não um asiático,
parado na história, ou um africano que nem sequer faz parte dela. Além disso,
a co‑presença radical pressupõe ainda a abolição da guerra, que, juntamente
com a intolerância, constitui a negação mais radical da co‑presença.
A ecologia de saberes e a inesgotável diversidade da experiência do mundo
Como ecologia de saberes, o pensamento pós‑abissal tem como premissa
a ideia da diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da
existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhe‑
cimento científico.
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Isto implica renunciar a qualquer epistemologia geral.
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Se, hipoteticamente, um camponês africano e um funcionário do Banco Mundial no decurso de
uma rápida incursão rural se encontrassem num campo africano, de acordo com o pensamento
abissal, o encontro seria simultâneo (o pleonasmo é intencional), mas eles seriam não‑contem‑
porâneos; pelo contrário, de acordo com o pensamento pós‑abissal, o encontro é simultâneo e tem
lugar entre dois indivíduos contemporâneos.
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Este reconhecimento da diversidade e diferenciação é um dos componentes fundamentais da
Weltanschauung através da qual podemos imaginar o século XXI. Esta
Weltanschauung é radical‑
mente diferente da adoptada pelos países centrais no início do século passado. A imaginação
epistemológica no princípio do século XX estava dominada pela ideia de unidade. Este foi o
contexto cultural que influenciou as opções teóricas de A. Einstein (Holton, 998). A premissa da
unidade do mundo e a explicação fornecida por esta presidiu a todas as assunções nas quais Einstein
baseou a sua pesquisa – simplicidade, simetria, causalidade newtoniana, completude, continuum –
e explica parcialmente a sua recusa em aceitar a mecânica quântica. Segundo Holton, a ideia da
unidade prevaleceu no contexto cultural do tempo, especialmente na Alemanha. Trata‑se de uma
ideia que atingira a expressão mais brilhante no conceito de Goethe de unidade orgânica da
humanidade e da natureza e da completa articulação de todos os elementos da natureza. Foi esta
mesma ideia que, em 9, conduziu cientistas e filósofos à produção de um manifesto para a
criação de uma nova sociedade que visava desenvolver um conjunto de ideias unificadoras e con‑
ceitos unificadores a aplicar a todos os campos do saber (Holton, 998: 6).
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Boaventura de Sousa Santos
Em todo o mundo, não só existem diversas formas de conhecimento da
matéria, sociedade, vida e espírito, como também muitos e diversos con‑
ceitos sobre o que conta como conhecimento e os critérios que podem ser
usados para validá‑lo. No período de transição que iniciamos, no qual
resistem ainda as versões abissais de totalidade e unidade, provavelmente
precisamos, para seguir em frente, de uma epistemologia geral residual
ou negativa: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma episte‑
mologia geral.
Saberes e ignorâncias
O contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambíguo. Por
um lado, a ideia da diversidade sociocultural do mundo que tem ganhado
fôlego nas três últimas décadas e favorece o reconhecimento da diversidade
e pluralidade epistemológica como uma das suas dimensões. Por outro lado,
se todas as epistemologias partilham as premissas culturais do seu tempo,
talvez uma das mais bem consolidadas premissas do pensamento abissal
seja, ainda hoje, a da crença na ciência como única forma de conhecimento
válido e rigoroso. Ortega y Gasset (94) propôs uma distinção radical
entre crenças e ideias, entendendo por estas últimas a ciência ou a filosofia.
A distinção reside em que as crenças são parte integrante da nossa identidade
e subjectividade, enquanto as ideias são algo que nos é exterior. Enquanto
as nossas ideias nascem da dúvida e permanecem nela, as nossas crenças
nascem da ausência dela. No fundo, a distinção é entre ser e ter: somos as
nossas crenças, temos ideias. O que é característico do nosso tempo é o
facto de a ciência moderna pertencer simultaneamente ao campo das ideias
e ao campo das crenças. A crença na ciência excede em muito o que as ideias
científicas nos permitem realizar. Assim, a relativa perda de confiança epis‑
temológica na ciência, que percorreu toda a segunda metade do século XX,
ocorreu de par com a crescente crença popular na ciência. A relação entre
crenças e ideias deixa de ser uma relação entre duas entidades distintas para
passar a ser uma relação entre duas formas de experienciar socialmente a
ciência. Esta dualidade faz com que o reconhecimento da diversidade
cultural do mundo não signifique necessariamente o reconhecimento da
diversidade epistemológica do mundo.
Neste contexto, a ecologia de saberes é, basicamente, uma contra‑epis‑
temologia. O impulso básico que a faz emergir resulta de dois factores.
O primeiro é o novo surgimento político de povos e visões do mundo do
outro lado da linha como parceiros da resistência ao capitalismo global, isto
é, a globalização contra‑hegemónica. Em termos geopolíticos, trata‑se de
sociedades periféricas do sistema mundial moderno onde a crença na ciên‑