Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 3

e em interacções sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a 

sua autonomia. A ecologia de saberes baseia‑se na ideia de que o conheci‑

mento é interconhecimento. 



Pensamento pós‑abissal e co‑presença

A primeira condição para um pensamento pós‑abissal é a co‑presença radical. 

A co‑presença radical significa que práticas e agentes de ambos os lados da 

linha são contemporâneos em termos igualitários. A co‑presença radical implica 

conceber simultaneidade como contemporaneidade, o que só pode ser con‑

seguido abandonando a concepção linear de tempo.

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 Só assim será possível 



ir além de Hegel (970), para quem ser membro da humanidade histórica – isto 

é, estar deste lado da linha – significava ser um grego e não um bárbaro no 

século V a.C., um cidadão romano e não um grego nos primeiros séculos da 

nossa era, um cristão e não um judeu na Idade Média, um europeu e não um 

selvagem do Novo Mundo no século XVI, e, no século XIX, um europeu 

(incluindo os europeus deslocados da América do Norte) e não um asiático, 

parado na história, ou um africano que nem sequer faz parte dela. Além disso, 

a co‑presença radical pressupõe ainda a abolição da guerra, que, juntamente 

com a intolerância, constitui a negação mais radical da co‑presença.

A ecologia de saberes e a inesgotável diversidade da experiência do mundo

Como ecologia de saberes, o pensamento pós‑abissal tem como premissa 

a ideia da diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da 

existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhe‑

cimento científico.

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 Isto implica renunciar a qualquer epistemologia geral. 



47

  Se, hipoteticamente, um camponês africano e um funcionário do Banco Mundial no decurso de 

uma rápida incursão rural se encontrassem num campo africano, de acordo com o pensamento 

abissal, o encontro seria simultâneo (o pleonasmo é intencional), mas eles seriam não‑contem‑

porâneos; pelo contrário, de acordo com o pensamento pós‑abissal, o encontro é simultâneo e tem 

lugar entre dois indivíduos contemporâneos.

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  Este reconhecimento da diversidade e diferenciação é um dos componentes fundamentais da 



Weltanschauung através da qual podemos imaginar o século XXI. Esta Weltanschauung é radical‑

mente diferente da adoptada pelos países centrais no início do século passado. A imaginação 

epistemológica no princípio do século XX estava dominada pela ideia de unidade. Este foi o 

contexto cultural que influenciou as opções teóricas de A. Einstein (Holton, 998). A premissa da 

unidade do mundo e a explicação fornecida por esta presidiu a todas as assunções nas quais Einstein 

baseou a sua pesquisa – simplicidade, simetria, causalidade newtoniana, completude, continuum – 

e explica parcialmente a sua recusa em aceitar a mecânica quântica. Segundo Holton, a ideia da 

unidade prevaleceu no contexto cultural do tempo, especialmente na Alemanha. Trata‑se de uma 

ideia que atingira a expressão mais brilhante no conceito de Goethe de unidade orgânica da 

humanidade e da natureza e da completa articulação de todos os elementos da natureza. Foi esta 

mesma ideia que, em 9, conduziu cientistas e filósofos à produção de um manifesto para a 

criação de uma nova sociedade que visava desenvolver um conjunto de ideias unificadoras e con‑

ceitos unificadores a aplicar a todos os campos do saber (Holton, 998: 6).



 | Boaventura de Sousa Santos 

Em todo o mundo, não só existem diversas formas de conhecimento da 

matéria, sociedade, vida e espírito, como também muitos e diversos con‑

ceitos sobre o que conta como conhecimento e os critérios que podem ser 

usados para validá‑lo. No período de transição que iniciamos, no qual 

resistem ainda as versões abissais de totalidade e unidade, provavelmente 

precisamos, para seguir em frente, de uma epistemologia geral residual 

ou negativa: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma episte‑

mologia geral.

Saberes e ignorâncias

O contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambíguo. Por 

um lado, a ideia da diversidade sociocultural do mundo que tem ganhado 

fôlego nas três últimas décadas e favorece o reconhecimento da diversidade 

e pluralidade epistemológica como uma das suas dimensões. Por outro lado, 

se todas as epistemologias partilham as premissas culturais do seu tempo, 

talvez uma das mais bem consolidadas premissas do pensamento abissal 

seja, ainda hoje, a da crença na ciência como única forma de conhecimento 

válido e rigoroso. Ortega y Gasset (94) propôs uma distinção radical     

entre crenças e ideias, entendendo por estas últimas a ciência ou a filosofia. 

A distinção reside em que as crenças são parte integrante da nossa identidade 

e subjectividade, enquanto as ideias são algo que nos é exterior. Enquanto 

as nossas ideias nascem da dúvida e permanecem nela, as nossas crenças 

nascem da ausência dela. No fundo, a distinção é entre ser e ter: somos as 

nossas crenças, temos ideias. O que é característico do nosso tempo é o 

facto de a ciência moderna pertencer simultaneamente ao campo das ideias 

e ao campo das crenças. A crença na ciência excede em muito o que as ideias 

científicas nos permitem realizar. Assim, a relativa perda de confiança epis‑

temológica na ciência, que percorreu toda a segunda metade do século XX, 

ocorreu de par com a crescente crença popular na ciência. A relação entre 

crenças e ideias deixa de ser uma relação entre duas entidades distintas para 

passar a ser uma relação entre duas formas de experienciar socialmente a 

ciência. Esta dualidade faz com que o reconhecimento da diversidade 

 cultural do mundo não signifique necessariamente o reconhecimento da 

diversidade epistemológica do mundo.

Neste contexto, a ecologia de saberes é, basicamente, uma contra‑epis‑

temologia. O impulso básico que a faz emergir resulta de dois factores.         

O primeiro é o novo surgimento político de povos e visões do mundo do 

outro lado da linha como parceiros da resistência ao capitalismo global, isto 

é, a globalização contra‑hegemónica. Em termos geopolíticos, trata‑se de 

sociedades periféricas do sistema mundial moderno onde a crença na ciên‑



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