Para além do Pensamento Abissal |
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global, conhecido como globalização neoliberal (Santos, 00, 006b,
006c). Atendendo a que a exclusão social é sempre produto de relações
de poder desiguais, estas iniciativas, movimentos e lutas são animados por
um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão, o qual implica
a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbó‑
licos e, como tal, se baseia, simultaneamente, no princípio da igualdade e
no princípio do reconhecimento da diferença. Desde o início do novo
século, o Fórum Social Mundial tem sido a expressão mais conseguida de
globalização contra‑hegemónica e de cosmopolitismo subalterno.
4
De
entre os movimentos que têm vindo a participar no Fórum Social Mundial,
os movimentos indígenas são, do meu ponto de vista, aqueles cujas con‑
cepções e práticas representam a mais convincente emergência do pensa‑
mento pós‑abissal. Este facto é muito auspicioso para a possibilidade de
um pensamento pós‑abissal, sendo que os povos indígenas são os habitan‑
tes paradigmáticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma
da apropriação/violência.
A novidade do cosmopolitismo subalterno reside, acima de tudo, em ter
um profundo sentido de incompletude, sem contudo ambicionar a comple‑
tude. Por um lado, defende que a compreensão do mundo excede larga‑
mente a compreensão ocidental do mundo e, portanto, a nossa compreen‑
são da globalização é muito menos global que a própria globalização. Por
outro lado, defende que quanto mais compreensões não‑ocidentais forem
identificadas mais evidente se tornará o facto de que muitas outras conti‑
nuam por identificar e que as compreensões híbridas, que misturam com‑
ponentes ocidentais e não‑ocidentais, são virtualmente infinitas. O pensa‑
mento pós‑abissal parte da ideia de que a diversidade do mundo é
inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de uma epistemo‑
logia adequada. Por outras palavras, a diversidade epistemológica do mundo
continua por construir.
A seguir apresento um esquema geral do pensamento pós‑abissal. Con‑
centro‑me nas suas dimensões epistemológicas, deixando de lado as suas
dimensões jurídicas.
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Pensamento pós‑abissal como um pensamento ecológico
O pensamento pós‑abissal parte do reconhecimento de que a exclusão social
no seu sentido mais amplo toma diferentes formas conforme é determinada
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Sobre a dimensão cosmopolita do Fórum Social Mundial, ver Nisula e Sehm‑Patomäki, 00;
Fisher e Ponniah, 00; Sen
et al., 004; Polet, 004; Santos, 006c; Teivainen, no prelo.
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Sobre o meu anterior confronto crítico com a epistemologia moderna, ver Santos, 988, 995:
7‑55, 000: 09‑5, 004; Santos (org.), 00a. Ver também Santos, Meneses e Nunes, 004.
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Boaventura de Sousa Santos
por uma linha abissal ou não‑abissal, e que, enquanto a exclusão abissal‑
mente definida persistir, não será possível qualquer alternativa pós‑capita‑
lista progressista. Durante um período de transição possivelmente longo,
defrontar a exclusão abissal será um pré‑requisito para abordar de forma
eficiente as muitas formas de exclusão não‑abissal que têm dividido o mundo
moderno deste lado da linha. Uma concepção pós‑abissal de marxismo (em
si mesmo, um bom exemplo de pensamento abissal) pretende que a eman‑
cipação dos trabalhadores seja conquistada em conjunto com a emancipação
de todas as populações descartáveis do Sul global, que são oprimidas mas
não directamente exploradas pelo capitalismo global. Da mesma forma,
reivindica que os direitos dos cidadãos não estarão seguros enquanto os
não‑cidadãos sofrerem um tratamento sub‑humano.
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O reconhecimento da persistência do pensamento abissal é, assim, a
conditio sine qua non para começar a pensar e a agir para além dele. Sem
este reconhecimento, o pensamento crítico permanecerá um pensamento
derivativo que continuará a reproduzir as linhas abissais, por mais anti‑
‑abissal que se autoproclame. Pelo contrário, o pensamento pós‑abissal é
um pensamento não‑derivativo, envolve uma ruptura radical com as formas
ocidentais modernas de pensamento e acção. No nosso tempo, pensar em
termos não‑derivativos significa pensar a partir da perspectiva do outro
lado da linha, precisamente por o outro lado da linha ser o domínio do
impensável na modernidade ocidental. A emergência do ordenamento da
apropriação/violência só poderá ser enfrentada se situarmos a nossa pers‑
pectiva epistemológica na experiência social do outro lado da linha, isto
é, do Sul global não‑imperial, concebido como a metáfora do sofrimento
humano sistémico e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colo‑
nialismo (Santos, 995: 506‑59). O pensamento pós‑abissal pode ser
sumariado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do
Sul. Confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de
saberes
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. É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da plura‑
lidade de conhecimentos heterogéneos (sendo um deles a ciência moderna)
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Gandhi é, provavelmente, o pensador‑activista dos tempos modernos que mais consistentemente
pensou e actuou em termos não‑abissais. Tendo vivido e experienciado as exclusões radicais típicas
do pensamento abissal, Gandhi não se desviou do seu propósito de construir uma nova forma de
universalidade capaz de libertar tanto o opressor como a vítima. Como Ashis Nandy reafirma
correctamente: “A visão gandhiana desafia a tentação de igualar o opressor na violência e de rea‑
dquirir uma auto‑estima própria como competidor num mesmo sistema. É uma visão assente numa
identificação com os oprimidos que exclui a fantasia da superioridade do estilo de vida do opres‑
sor, tão profundamente enraizada na consciência daqueles que reclamam falar em nome das vítimas
da história” (987: 5).
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Sobre a ecologia de saberes ver Santos, 006b: 7‑5.