Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 1

De forma mais ampla, parece que a modernidade ocidental só poderá 

expandir‑se globalmente na medida em que viole todos os princípios 

sobre os quais fez assentar a legitimidade histórica do paradigma da regu‑

lação/emancipação deste lado da linha. Direitos humanos são desta forma 

violados para poderem ser defendidos, a democracia é destruída para garan‑

tir a sua salvaguarda, a vida é eliminada em nome da sua preservação. Linhas 

abissais são traçadas tanto no sentido literal como metafórico. No sentido 

literal, estas são as linhas que definem as fronteiras como vedações



 e cam‑



pos de morte, dividindo as cidades em zonas civilizadas (gated communities,



 

em número sempre crescente) e zonas selvagens, e prisões entre locais de 

detenção legal e locais de destruição brutal e sem lei da vida.



O outro lado do movimento principal em curso é o regresso do colo‑



nizador. Implica o ressuscitar de formas de governo colonial, tanto nas 

sociedades metropolitanas, agora incidindo sobre a vida dos cidadãos 

comuns, como nas sociedades anteriormente sujeitas ao colonialismo euro‑

peu. A expressão mais saliente deste movimento é o que eu designo como 

nova forma de governo indirecto.

4

 Emerge em muitas situações quando o 



Estado se retira da regulação social e os serviços públicos são privatizados. 

Poderosos actores não‑estatais adquirem desta forma controlo sobre as vidas 

e o bem‑estar de vastas populações, quer seja o controlo dos cuidados de 

saúde, da terra, da água potável, das sementes, das florestas ou da qualidade 

ambiental. A obrigação política que ligava o sujeito de direito ao Rechtsstaat

o Estado constitucional moderno, que tem prevalecido deste lado da linha, 

está a ser substituída por obrigações contratuais privadas e despolitizadas 

nas quais a parte mais fraca se encontra mais ao menos à mercê da parte 

mais forte. Esta forma de governo apresenta algumas semelhanças pertur‑

badoras com o governo da apropriação/violência que prevaleceu do outro 

lado da linha. 



  Um bom exemplo da lógica jurídica abissal subjacente à construção de uma vedação separando 



a fronteira dos EUA do México pode ver‑se em Glon, 005.



  Sobre condomínios fechados, ver Blakely e Snyder, 999; Low, 00; Atkinson e Blandy, 005; 



Coy, 006.



  Ver Amann, 004a, 004b; Brown, 005. Um novo relatório pelo Comité Parlamentar Tempo‑



rário Europeu sobre a actividade ilegal da CIA na Europa (Novembro, 006) mostra como os 

governos europeus actuaram como facilitadores dos abusos da CIA, tais como a detenção secreta 

e a tortura. Estas operações à margem da lei envolveram .45 voos e aterragens de aviões da CIA 

na Europa (alguns deles envolvendo transporte de prisioneiros) e a criação de centros de detenção 

secreta na Polónia, Roménia e, provavelmente, também na Bulgária, Ucrânia, Macedónia e 

Kosovo.


4

  O governo indirecto foi uma forma de política colonial europeia largamente praticada nas anti‑

gas colónias britânicas, onde as estruturas tradicionais de poder local, ou pelo menos uma parte 

delas, foram incorporadas na administração colonial estatal. Ver Lugard, 99; Perham, 94; 

Malinowski, 945; Furnivall, 948; Morris e Read, 97; Mamdani, 996, 999.



1 | Boaventura de Sousa Santos 

Tenho descrito esta situação como a ascensão do fascismo social, um 

regime social de relações de poder extremamente desiguais que concedem 

à parte mais forte o poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte 

mais fraca. Noutro lugar distingui cinco formas de fascismo social.

5

 Aqui, 



refiro‑me a três delas, as que mais claramente reflectem a pressão da lógica 

de apropriação/violência sobre a lógica da regulação/emancipação. A pri‑

meira forma é o fascismo do apartheid social. Trata‑se da segregação social 

dos excluídos através de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens 

e zonas civilizadas. As zonas selvagens urbanas são as zonas do estado de 

natureza hobbesiano, zonas de guerra civil interna como em muitas mega‑

cidades em todo o Sul global. As zonas civilizadas são as zonas do contrato 

social e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defen‑

derem, transformam‑se em castelos neofeudais, os enclaves fortificados que 

caracterizam as novas formas de segregação urbana (cidades privadas, con‑

domínios fechados, gated communities, como mencionei acima). A divisão 

entre zonas selvagens e zonas civilizadas está a transformar‑se num critério 

geral de sociabilidade, um novo espaço‑tempo hegemónico que atravessa 

todas as relações sociais, económicas, políticas e culturais e que, por isso, é 

comum à acção estatal e à acção não‑estatal. 

A segunda forma é o fascismo contratual. Ocorre nas situações em que a 

diferença de poder entre as partes no contrato de direito civil (seja ele um 

contrato de trabalho ou um contrato de fornecimento de bens ou serviços) 

é de tal ordem que a parte mais fraca, vulnerabilizada por não ter alternativa 

ao contrato, aceita as condições que lhe são impostas pela parte mais pode‑

rosa, por mais onerosas e despóticas que sejam. O projecto neoliberal de 

transformar o contrato de trabalho num contrato de direito civil como 

qualquer outro configura uma situação de fascismo contratual. Como men‑

cionei acima, esta forma de fascismo ocorre hoje frequentemente nas situa‑

ções de privatização dos serviços públicos, da saúde, da segurança social, 

electricidade e água, etc.

6

 Nestes casos, o contrato social que presidiu à 



produção de serviços públicos no Estado‑Providência e no Estado desen‑

volvimentista é reduzido ao contrato individual do consumo de serviços 

privatizados. À luz das deficiências por vezes chocantes da regulação pública, 

5

  Analiso em detalhe a emergência do fascismo social como consequência da quebra da lógica do 



contrato social em Santos, 00: 447‑458 e 006b: 95‑6.

6

  Um dos exemplos mais dramáticos é a privatização da água e as consequências sociais daí resul‑



tantes. Ver Bond, 000, e Buhlungu et al., 006 (para o caso da África do Sul);

 Oliveira Filho, 00 

(para o caso do Brasil); Olivera, 005 e Flores, 005 (para o caso da Bolívia); Bauer, 998 (para o 

caso do Chile); Trawick, 00 (para o caso do Peru); Castro, 006 (para o caso do México). Sobre 

dois ou mais casos, ver Donahue e Johnston, 998; Balanyá et al., 005; Conca, 005; Lopes, 005. 

Ver também Klare, 00;

 Hall, Lobina e de la Motte, 005.



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