Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 31

ser. Mais ainda, o “ser” de “sum” é igualmente muito difícil de exprimir 

porque o equivalente mais próximo é algo semelhante a “estou aí”. Segundo 

Wiredu, o locativo “aí” “seria suicida tanto do ponto de vista da epistemo‑

logia como da metafísica do cogito”. Ou seja, a língua permite exprimir 

certas ideias e não outras. Isto não significa, contudo, que a relação entre a 

filosofia africana e a filosofia ocidental tenha de ficar por aqui. Como Wiredu 

tenta demonstrar, é possível desenvolver argumentos autónomos com base 

na filosofia africana, não só sobre o porquê de esta não poder exprimir o 

cogito ergo sum”, mas também sobre as muitas ideias alternativas que ela 

pode exprimir e que a filosofia ocidental não pode.

55

Ecologia de saberes, mythos, e clinamen

A ecologia de saberes não ocorre apenas no plano do logos. Ocorre também 

no do mythos. A ideia de emergência ou o “Ainda Não” de Ernst Bloch é 

aqui essencial (Bloch, 995: 4).

56

 A intensificação da vontade resulta de 



uma leitura potenciadora de tendências objectivas, que emprestam força a 

uma possibilidade auspiciosa, mas frágil, decorrente de uma compreensão 

mais profunda das possibilidades humanas com base nos saberes que, ao 

contrário do científico, privilegiam a força interior em vez da força exterior, 

natura naturans em vez da natura naturata.

57

 Através destes saberes é 



possível alimentar o valor intensificado de um empenhamento, o que é 

incompreensível do ponto de vista do mecanicismo positivista e funcionalista 

da ciência moderna.

Deste empenho surgirá uma capacidade nova de inquirição e indignação, 

capaz de fundamentar teorias e práticas novas, umas e outras inconformis‑

tas, destabilizadoras e mesmo rebeldes. O que está em jogo é a criação de 

uma previsão activa baseada na riqueza da diversidade não‑canónica do 

mundo e de um grau de espontaneidade baseado na recusa de deduzir o 

potencial do factual. Desta forma, os poderes constituídos deixam de ser 

destino podendo ser realisticamente confrontados com os poderes consti‑

tuintes. O que importa, pois, é desfamiliarizar a tradição canónica das mono‑

culturas do saber sem parar aí, como se essa desfamiliarização fosse a única 

familiaridade possível. 

55

  Sobre este assunto e o debate que ele suscita, ver Wiredu, 997, e a discussão do seu trabalho 



em Osha, 999.

56

  Sobre a sociologia das emergências, ver Santos, 004 e 006b: 87‑6.



57

  De uma perspectiva distinta, a ecologia dos saberes procura a mesma complementaridade que, 

no Renascimento, Paracelso (49‑54) identificou entre “Archeus”, a vontade elementar na 

semente e no corpo, e “Vulcanus”, a força natural da matéria. Ver Paracelso, 989:  e todo o 

texto sobre “microcosmos e macrocosmos” (989: 7‑67). Ver também Paracelso,967.



3 | Boaventura de Sousa Santos 

A ecologia de saberes é uma epistemologia destabilizadora no sentido 

em que se empenha numa crítica radical da política do possível, sem ceder 

a uma política impossível. Central a uma ecologia de saberes não é a dis‑

tinção entre estrutura e acção, mas antes a distinção entre acção conformista 

e aquilo que designo por acção-com-clinamen.

58

 A acção conformista é uma 



prática rotineira, reprodutiva e repetitiva que reduz o realismo àquilo que 

existe e apenas porque existe. Para a minha noção de acção-com-clinamen, 

tomo de Epicuro e Lucrécio o conceito de clinamen, entendido como o 

quiddam” inexplicável que perturba a relação entre causa e efeito, ou      

seja, a capacidade de desvio que Epicuro atribuiu aos átomos de Demócrito. 

clinamen é o que faz com que os átomos deixem de parecer inertes e 

revelem um poder de inclinação, isto é, um poder de movimento espon‑

tâneo (Epicurus, 96; Lucretius, 950).

59

 Ao contrário do que acontece 



na acção revolucionária, a criatividade da acção-com-clinamen não assenta 

numa ruptura dramática, antes num ligeiro desvio, cujos efeitos cumula‑

tivos tornam possíveis as combinações complexas e criativas entre átomos, 

assim como entre seres vivos e grupos sociais.

60

 O clinamen não recusa o 



passado; pelo contrário, assume‑o e redime‑o pela forma como dele se 

desvia. O seu potencial para o pensamento pós‑abissal decorre da sua 

capacidade para atravessar as linhas abissais. A ocorrência de acção-com-            

-clinamen é em si mesma inexplicável. O papel de uma ecologia de saberes 

a este respeito será somente o de identificar as condições que maximizam 

a probabilidade de uma tal ocorrência e definir, ao mesmo tempo, o hori‑

zonte de possibilidades em que o desvio virá a “operar”. A ecologia de 

saberes é constituída por sujeitos desestabilizadores, individuais ou colec‑

tivos, e é, ao mesmo tempo, constitutiva deles. A subjectividade capaz da 

ecologia dos saberes é uma subjectividade dotada de uma especial capaci‑

dade, energia e vontade para agir com clinamen. A própria construção 

social de uma tal subjectividade implica necessariamente recorrer a formas 

excêntricas ou marginais de sociabilidade ou subjectividade dentro ou fora 

da modernidade ocidental, as formas que recusaram a ser definidas de 

acordo com os critérios abissais.

58

  Desenvolvo este conceito em Santos, 998.



59

  O conceito de clinamen entrou na teoria literária pela mão Harold Bloom. É uma das rationes 

revisionistas da sua teoria da influência poética. Em The Anxiety of Influence, Bloom serve‑se da 

noção de clinamen para explicar a criatividade poética como uma tresleitura que é antes trans-     



-leitura

 (o termo bloomiano é misreading, um ler‑mal que é também ler‑mais‑do‑que‑bem, ou 



corrigir). Diz Bloom: “Um poeta desvia‑se do poema do seu precursor, executando um clinamen 

em relação a ele” (Bloom, 97: 4). 

60

  Como diz Lucrécio, o desvio é per paucum nec plus quam minimum (Epicurus, 96: introdução 



de Frederic Manning, XXXIV).


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