Para além do Pensamento Abissal |
cia moderna é mais ténue, onde é mais visível a vinculação da ciência
moderna aos desígnios da dominação colonial e imperial, e onde outros
conhecimentos não‑científicos e não‑ocidentais prevalecem nas práticas
quotidianas das populações. O segundo factor é uma proliferação sem pre‑
cedentes de alternativas que, contudo, não podem ser agrupadas sob a
alçada de uma única alternativa global. A globalização contra‑hegemónica
destaca‑se pela ausência de uma tal alternativa no singular. A ecologia de
saberes procura dar consistência epistemológica ao pensamento pluralista
e propositivo.
Na ecologia de saberes cruzam‑se conhecimentos e, portanto, também
ignorâncias. Não existe uma unidade de conhecimento, como não existe
uma unidade de ignorância. As formas de ignorância são tão heterogéneas
e interdependentes quanto as formas de conhecimento. Dada esta interde‑
pendência, a aprendizagem de certos conhecimentos pode envolver o esque‑
cimento de outros e, em última instância, a ignorância destes. Por outras
palavras, na ecologia de saberes, a ignorância não é necessariamente um
estado original ou ponto de partida. Pode ser um ponto de chegada. Pode
ser o resultado do esquecimento ou desaprendizagem implícitos num pro‑
cesso de aprendizagem recíproca. Assim, num processo de aprendizagem
conduzido por uma ecologia de saberes, é crucial a comparação entre o
conhecimento que está a ser aprendido e o conhecimento que nesse processo
é esquecido e desaprendido. A ignorância só é uma forma desqualificada
de ser e de fazer quando o que se aprende vale mais do que o que se esquece.
A utopia do interconhecimento é aprender outros conhecimentos sem esque‑
cer os próprios. É esta a tecnologia de prudência que subjaz à ecologia de
saberes. Ela convida a uma reflexão mais profunda sobre a diferença entre
a ciência como conhecimento monopolista e a ciência como parte de uma
ecologia de saberes.
A ciência moderna como parte de uma ecologia de saberes
Como produto do pensamento abissal, o conhecimento científico não se
encontra distribuído socialmente de forma equitativa, nem poderia encon‑
trar‑se, uma vez que o seu desígnio original foi a conversão deste lado da
linha em sujeito do conhecimento e do outro lado da linha em objecto de
conhecimento. As intervenções no mundo real que favorece tendem a ser
as que servem os grupos sociais que têm maior acesso a este conhecimento.
Enquanto as linhas abissais continuarem a desenhar‑se, a luta por uma
justiça cognitiva não terá sucesso se se basear apenas na ideia de uma
distribuição mais equitativa do conhecimento científico. Para além do facto
de tal distribuição ser impossível nas condições do capitalismo e colonia‑
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Boaventura de Sousa Santos
lismo, o conhecimento científico tem limites intrínsecos em relação ao tipo
de intervenção que promove no mundo real. Na ecologia de saberes,
enquanto epistemologia pós‑abissal, a busca de credibilidade para os conhe‑
cimentos não‑científicos não implica o descrédito do conhecimento cien‑
tífico. Implica, simplesmente, a sua utilização contra‑hegemónica. Trata‑se,
por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência, isto é, as práti‑
cas científicas alternativas que se têm tornado visíveis através das episte‑
mologias feministas
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e pós‑coloniais
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e, por outro lado, de promover a
interacção e a interdependência entre os saberes científicos e outros sabe‑
res, não‑científicos.
Uma das premissas básicas da ecologia de saberes é que todos os conhe‑
cimentos têm limites internos e limites externos. Os internos dizem respeito
aos limites das intervenções no real que permitem. Os externos decorrem
do reconhecimento de intervenções alternativas tornadas possíveis por outras
formas de conhecimento. Por definição, as formas de conhecimento hege‑
mónico só conhecem os limites internos, portanto, o uso contra‑hegemónico
da ciência moderna só é possível através da exploração paralela dos seus
limites internos e externos como parte de uma concepção contra hegemónica
de ciência. É por isso que o uso contra‑hegemónico da ciência não pode
limitar‑se à ciência. Só faz sentido no âmbito de uma ecologia de saberes.
Para uma ecologia de saberes, o conhecimento como intervenção no real
– não o conhecimento como representação do real – é a medida do realismo.
A credibilidade da construção cognitiva mede‑se pelo tipo de intervenção
no mundo que proporciona, ajuda ou impede. Como a avaliação dessa
intervenção combina sempre o cognitivo com o ético‑político, a ecologia
de saberes distingue a objectividade analítica da neutralidade ético‑política.
Ninguém questiona hoje o valor geral das intervenções no real tornadas
possíveis pela ciência moderna através da sua produtividade tecnológica.
Mas este facto não deve impedir‑nos de reconhecer outras intervenções no
real tornadas possíveis por outras formas de conhecimento. Em muitas áreas
da vida social, a ciência moderna tem demonstrado uma superioridade
indiscutível em relação a outras formas de conhecimento. Existem, no
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As epistemologias feministas têm sido centrais para a crítica dos dualismos “clássicos” da moder‑
nidade, como sejam natureza/cultura, sujeito/objecto, humano/não‑humano, e da naturalização
das hierarquias de classe, sexo e raça. Para alguns contributos relevantes para as críticas feministas
da ciência, ver Keller, 985; Harding, 986, 998, 00; Schiebinger, 989, 999; Haraway, 99,
997; Soper, 995; Fausto‑Sterling, 000; Gardey e Lowy, 000. Creager, Lunbeck, e Schiebinger,
00, oferece uma panorâmica interessante, ainda que centrada no Norte global.
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Entre muitos outros, ver Alvares, 99; Dussel, 995; Santos, 995; Santos (org.), 00a e 004a;
Guha e Martinez‑Alier, 997; Visvanathan, 997; Ela, 998; Prakash, 999; Quijano, 000; Mignolo,
000; Mbembe, 00; e Masolo, 00.