Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 

nullius, muito semelhante à terra nullius,



 o conceito de vazio jurídico que 



justificou a invasão e ocupação dos territórios indígenasCom base nestas 

concepções abissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da ten‑

são entre a regulação e a emancipação, aplicada deste lado da linha, não 

entra em contradição com a tensão entre apropriação e violência aplicada 

do outro lado da linha. 

A apropriação e a violência tomam diferentes formas na linha abissal 

jurídica e na linha abissal epistemológica. Mas, em geral, a apropriação 

envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência 

implica destruição física, material, cultural e humana. Na prática, é pro‑

funda a interligação entre a apropriação e a violência. No domínio do 

conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como 

guias




 e de mitos e cerimónias locais como instrumentos de conversão, à 

pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, enquanto a 

violência é exercida através da proibição do uso das línguas próprias em 

espaços públicos, da adopção forçada de nomes cristãos, da conversão e 

destruição de símbolos e lugares de culto, e de todas as formas de discri‑

minação cultural e racial.

No que toca ao direito, a tensão entre apropriação e violência é parti‑

cularmente complexa devido à sua relação directa com a extracção de valor: 

tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador do direito e das 

autoridades tradicionais através do governo indirecto (indirect rule), pilha‑

gem de recursos naturais, deslocação maciça de populações, guerras e 

tratados desiguais, diferentes formas de apartheid e assimilação forçada, 

etc. Enquanto a lógica da regulação/emancipação é impensável sem a dis‑

tinção matricial entre o direito das pessoas e o direito das coisas, a lógica 

da apropriação/violência reconhece apenas o direito das coisas, sejam elas 

humanas ou não. A versão extrema deste tipo de direito, irreconhecível 

deste lado da linha, é o direito do “Estado Livre do Congo” imposto pelo 

Rei Leopoldo II da Bélgica.

4

Existe, portanto, uma cartografia moderna dual: a cartografia jurídica e 



a cartografia epistemológica. O outro lado da linha abissal é um universo 



  De acordo com a Bula, “os Índios eram verdadeiros homens e... não eram capazes de enten‑



der a fé Católica mas, de acordo com as nossas informações, desejam ardentemente recebê‑la”. 

“Sublimis Deus” encontra‑se em http://www.papalencyclicals.net/Paul0/psubli.htm (acedido 

em  de Setembro, 006).



  Como no caso famoso de Ibn Majid, um experiente piloto que indicou a Vasco da Gama o 



caminho marítimo de Mombaça à Índia (Ahmad, 97). Outros exemplos podem encontrar‑se em 

Burnett, 00. 

4

  Diferentes perspectivas sobre esta “colónia privada” e sobre o Rei Leopoldo podem encontrar‑se 



em Emerson, 979; Hochschild, 999; Dumoulin, 005; Hasian, 00:89‑.


10 | Boaventura de Sousa Santos 

que se estende para além da legalidade e ilegalidade, para além da verdade 

e da falsidade.

5

 Juntas, estas formas de negação radical produzem uma 



ausência radical, a ausência de humanidade, a sub‑humanidade moderna. 

Assim, a exclusão torna‑se simultaneamente radical e inexistente, uma vez 

que seres sub‑humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão 

social.


6

 A humanidade moderna não se concebe sem uma sub‑humanidade 

moderna.

7

 A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida 



em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar 

enquanto universal.

8

A minha tese é que esta realidade é tão verdadeira hoje como era no 



período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar 

mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub‑humano, 

de tal forma que princípios de humanidade não são postos em causa por 

práticas desumanas. As colónias representam um modelo de exclusão radi‑

cal que permanece actualmente no pensamento e práticas modernas oci‑

dentais tal como aconteceu no ciclo colonial. Hoje, como então, a criação 

e ao mesmo tempo a negação do outro lado da linha fazem parte integrante 

de princípios e práticas hegemónicos. Actualmente, Guantánamo representa 

uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídico abissal, da 

criação do outro lado da fractura enquanto um não‑território em termos 

jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos 

direitos humanos e da democracia.

9

 Porém, seria um erro considerá‑lo uma 



excepção. Existem muitos Guantánamos, desde o Iraque à Palestina e a 

Darfur. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discrimi‑

nações sexuais e raciais quer na esfera pública, quer na privada, nas zonas 

5

  A profunda dualidade do pensamento abissal e a incomensurabilidade entre os termos dessa 



dualidade foram implementadas pelos monopólios bem policiados do conhecimento e do direito 

com uma poderosa base institucional – universidades, centros de investigação, escolas de direito 

e profissões jurídicas – e pela sofisticada linguagem tecnológica da ciência e da jurisprudência.

6

  A suposta externalidade do outro lado da linha é, de facto, a consequência da sua pertença ao 



pensamento abissal: como fundação e como negação da fundação.

7

  Fanon denuncia esta negação da humanidade com insuperável lucidez (Fanon, 96, 967).        



O radicalismo da negação fundamenta a defesa que Fanon faz da violência como uma dimensão 

intrínseca da revolta anti‑colonial. Embora partilhassem uma luta comum, Fanon e Gandhi diver‑

giram a este respeito e essa divergência deve ser objecto de uma reflexão cuidada, particularmente 

pelo facto de se tratar de dois dos mais importantes pensadores‑activistas do século passado. Ver 

Federici, 994, e Kebede, 00.

8

  Esta negação fundamental permite por um lado, que tudo o que é possível se transforme na 



possibilidade de tudo, e por outro, que a criatividade exaltadora do pensamento abissal trivialize 

facilmente o preço da sua destrutividade.

9

  Sobre Guantánamo e tópicos relacionados ver, entre muitos outros, McCormack, 004; Amann, 



004a, 004b; Human Rights Watch, 004; Sadat, 005; Steyn, 004; Borelli, 005; Dickinson, 005; 

Van Bergen e Valentine, 006.




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