Para além do Pensamento Abissal |
nullius, muito semelhante à
terra nullius,
o conceito de vazio jurídico que
justificou a invasão e ocupação dos territórios indígenas
. Com base nestas
concepções abissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da ten‑
são entre a regulação e a emancipação, aplicada deste lado da linha, não
entra em contradição com a tensão entre apropriação e violência aplicada
do outro lado da linha.
A apropriação e a violência tomam diferentes formas na linha abissal
jurídica e na linha abissal epistemológica. Mas, em geral, a apropriação
envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência
implica destruição física, material, cultural e humana. Na prática, é pro‑
funda a interligação entre a apropriação e a violência. No domínio do
conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como
guias
e de mitos e cerimónias locais como instrumentos de conversão, à
pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, enquanto a
violência é exercida através da proibição do uso das línguas próprias em
espaços públicos, da adopção forçada de nomes cristãos, da conversão e
destruição de símbolos e lugares de culto, e de todas as formas de discri‑
minação cultural e racial.
No que toca ao direito, a tensão entre apropriação e violência é parti‑
cularmente complexa devido à sua relação directa com a extracção de valor:
tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador do direito e das
autoridades tradicionais através do governo indirecto (indirect rule), pilha‑
gem de recursos naturais, deslocação maciça de populações, guerras e
tratados desiguais, diferentes formas de apartheid e assimilação forçada,
etc. Enquanto a lógica da regulação/emancipação é impensável sem a dis‑
tinção matricial entre o direito das pessoas e o direito das coisas, a lógica
da apropriação/violência reconhece apenas o direito das coisas, sejam elas
humanas ou não. A versão extrema deste tipo de direito, irreconhecível
deste lado da linha, é o direito do “Estado Livre do Congo” imposto pelo
Rei Leopoldo II da Bélgica.
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Existe, portanto, uma cartografia moderna dual: a cartografia jurídica e
a cartografia epistemológica. O outro lado da linha abissal é um universo
De acordo com a Bula, “os Índios eram verdadeiros homens e... não eram capazes de enten‑
der a fé Católica mas, de acordo com as nossas informações, desejam ardentemente recebê‑la”.
“Sublimis Deus” encontra‑se em http://www.papalencyclicals.net/Paul0/psubli.htm (acedido
em de Setembro, 006).
Como no caso famoso de Ibn Majid, um experiente piloto que indicou a Vasco da Gama o
caminho marítimo de Mombaça à Índia (Ahmad, 97). Outros exemplos podem encontrar‑se em
Burnett, 00.
4
Diferentes perspectivas sobre esta “colónia privada” e sobre o Rei Leopoldo podem encontrar‑se
em Emerson, 979; Hochschild, 999; Dumoulin, 005; Hasian, 00:89‑.
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Boaventura de Sousa Santos
que se estende para além da legalidade e ilegalidade, para além da verdade
e da falsidade.
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Juntas, estas formas de negação radical produzem uma
ausência radical, a ausência de humanidade, a sub‑humanidade moderna.
Assim, a exclusão torna‑se simultaneamente radical e inexistente, uma vez
que seres sub‑humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão
social.
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A humanidade moderna não se concebe sem uma sub‑humanidade
moderna.
7
A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida
em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar
enquanto universal.
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A minha tese é que esta realidade é tão verdadeira hoje como era no
período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar
mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub‑humano,
de tal forma que princípios de humanidade não são postos em causa por
práticas desumanas. As colónias representam um modelo de exclusão radi‑
cal que permanece actualmente no pensamento e práticas modernas oci‑
dentais tal como aconteceu no ciclo colonial. Hoje, como então, a criação
e ao mesmo tempo a negação do outro lado da linha fazem parte integrante
de princípios e práticas hegemónicos. Actualmente, Guantánamo representa
uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídico abissal, da
criação do outro lado da fractura enquanto um não‑território em termos
jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos
direitos humanos e da democracia.
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Porém, seria um erro considerá‑lo uma
excepção. Existem muitos Guantánamos, desde o Iraque à Palestina e a
Darfur. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discrimi‑
nações sexuais e raciais quer na esfera pública, quer na privada, nas zonas
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A profunda dualidade do pensamento abissal e a incomensurabilidade entre os termos dessa
dualidade foram implementadas pelos monopólios bem policiados do conhecimento e do direito
com uma poderosa base institucional – universidades, centros de investigação, escolas de direito
e profissões jurídicas – e pela sofisticada linguagem tecnológica da ciência e da jurisprudência.
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A suposta externalidade do outro lado da linha é, de facto, a consequência da sua pertença ao
pensamento abissal: como fundação e como negação da fundação.
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Fanon denuncia esta negação da humanidade com insuperável lucidez (Fanon, 96, 967).
O radicalismo da negação fundamenta a defesa que Fanon faz da violência como uma dimensão
intrínseca da revolta anti‑colonial. Embora partilhassem uma luta comum, Fanon e Gandhi diver‑
giram a este respeito e essa divergência deve ser objecto de uma reflexão cuidada, particularmente
pelo facto de se tratar de dois dos mais importantes pensadores‑activistas do século passado. Ver
Federici, 994, e Kebede, 00.
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Esta negação fundamental permite por um lado, que tudo o que é possível se transforme na
possibilidade de tudo, e por outro, que a criatividade exaltadora do pensamento abissal trivialize
facilmente o preço da sua destrutividade.
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Sobre Guantánamo e tópicos relacionados ver, entre muitos outros, McCormack, 004; Amann,
004a, 004b; Human Rights Watch, 004; Sadat, 005; Steyn, 004; Borelli, 005; Dickinson, 005;
Van Bergen e Valentine, 006.