Para além do Pensamento Abissal |
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esta redução preconiza a eliminação do âmbito contratual de aspectos deci‑
sivos para a protecção dos consumidores, aspectos que, por esta razão, se
tornam extracontratuais e ficam à mercê da benevolência das empresas. Ao
assumirem valências extracontratuais, as agências privadas de serviços assu‑
mem as funções de regulação social anteriormente exercidas pelo Estado.
Este, implícita ou explicitamente, subcontrata a estas agências para‑estatais
o desempenho dessas funções e, ao fazê‑lo sem a participação efectiva nem
o controlo dos cidadãos, torna‑se conivente com a produção social de
fascismo contratual.
A terceira forma de fascismo social é o fascismo territorial. Existe sempre
que actores sociais com forte capital patrimonial retiram ao Estado o con‑
trolo do território onde actuam ou neutralizam esse controlo, cooptando
ou violentando as instituições estatais e exercendo a regulação social sobre
os habitantes do território sem a participação destes e contra os seus inte‑
resses. Na maioria dos casos, estes constituem os novos territórios coloniais
privados dentro de Estados que quase sempre estiveram sujeitos ao colo‑
nialismo europeu. Sob diferentes formas, a usurpação original de terras
como prerrogativa do conquistador e a subsequente “privatização” das
colónias encontram‑se presentes na reprodução do fascismo territorial e,
mais geralmente, nas relações entre terratenientes e camponeses sem terra.
As populações civis residentes em zonas de conflitos armados encontram‑se
também submetidas ao fascismo territorial.
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O fascismo social é a nova forma do estado de natureza e prolifera à
sombra do contrato social sob duas formas: pós‑contratualismo e pré‑con‑
tratualismo. O pós‑contratualismo é o processo pelo qual grupos e interes‑
ses sociais até agora incluídos no contrato social são dele excluídos sem
qualquer perspectiva de regresso: trabalhadores e classes populares são
expulsos do contrato social através da eliminação dos seus direitos sociais
e económicos, tornando‑se assim populações descartáveis. O pré‑contratua‑
lismo consiste no bloqueamento do acesso à cidadania a grupos sociais que
anteriormente se consideravam candidatos à cidadania e tinham a expecta‑
tiva fundada de a ela aceder: por exemplo, a juventude urbana habitante
dos guetos das megacidades do Norte global e do Sul global.
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Como regime social, o fascismo social pode coexistir com a democracia
política liberal. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capita‑
lismo global, trivializa a democracia até ao ponto de não ser necessário, nem
sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o capitalismo.
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Para o caso da Colômbia, ver Santos e Garcia Villegas, 00.
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Uma análise eloquente pode ser encontrada em Wilson, 987.
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Boaventura de Sousa Santos
Trata‑se, pois, de um fascismo pluralista e, por isso, de uma forma de fas‑
cismo que nunca existiu. De facto, é minha convicção que podemos estar
a entrar num período em que as sociedades são politicamente democráticas
e socialmente fascistas.
As novas formas de governo indirecto constituem também a segunda
grande transformação da propriedade e do direito de propriedade da era
moderna. A propriedade, e, mais especificamente, a propriedade dos terri‑
tórios do Novo Mundo, foi, como mencionei inicialmente, o ponto chave
subjacente ao estabelecimento das linhas abissais modernas. A primeira
transformação teve lugar quando a propriedade sobre as coisas se expandiu,
com o capitalismo, à propriedade sobre os meios de produção. Como Karl
Renner (965) tão bem descreveu, o proprietário das máquinas transformou‑
‑se no proprietário da força de trabalho dos trabalhadores que nelas ope‑
ravam. O controlo sobre as coisas transformou‑se em controlo sobre as
pessoas. Claro que Renner desvalorizou o facto de esta transformação não
ter ocorrido nas colónias, uma vez que o controlo sobre as pessoas era a
forma original de controlo sobre as coisas, sendo que este último incluía
tanto as coisas humanas, como as não‑humanas. A segunda grande trans‑
formação da propriedade tem lugar, muito além da produção, quando a
propriedade de serviços se torna uma forma de controlar as pessoas que
deles necessitam para sobreviver. Usando a caracterização do governo colo‑
nial em África proposta por Mamdani (Mamdani, 996: cap. ) o novo governo
indirecto promove uma forma de despotismo descentralizado. O despotismo
descentralizado não choca com a democracia liberal, antes a torna progres‑
sivamente mais irrelevante para a qualidade de vida de populações cada vez
vastas. Sob as condições do novo governo indirecto, o pensamento abissal
moderno, mais do que regular os conflitos sociais entre cidadãos, é solicitado
a suprimir conflitos sociais e a ratificar a impunidade deste lado da linha,
como sempre sucedeu do outro lado da linha. Pressionado pela lógica da
apropriação/violência, o próprio conceito de direito moderno – uma norma
universalmente válida emanada do Estado e por ele imposta coercivamente
se necessário – encontra‑se assim em mudança. Como exemplo das mudan‑
ças conceptuais em curso está a emergir um novo tipo de direito que, eufe‑
misticamente, se denomina “direito mole”, soft law.
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Apresentado como a
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Uma vasta literatura tem vindo a ser produzida nos últimos anos teorizando e estudando empi‑
ricamente novas formas de governo da economia que assentam na colaboração entre actores não‑
‑estatais (firmas, organizações cívicas, ONGs, sindicatos, etc.) em lugar da regulação estatal de cima
para baixo. Apesar da variedade de designações sob as quais os cientistas sociais e académicos do
direito têm vindo a prosseguir esta abordagem, a ênfase recaí mais na “moleza” do que na dureza,
na obediência voluntária mais do que na imposição: “regulação responsiva” (Ayres e Braithwaite,
99), “lei pós‑regulatória” (Teubner, 986), “lei mole” (Snyder, 99, 00; Trubek e Mosher, 00;