Para além do Pensamento Abissal |
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ser. Mais ainda, o “ser” de “sum” é igualmente muito difícil de exprimir
porque o equivalente mais próximo é algo semelhante a “estou aí”. Segundo
Wiredu, o locativo “aí” “seria suicida tanto do ponto de vista da epistemo‑
logia como da metafísica do cogito”. Ou seja, a língua permite exprimir
certas ideias e não outras. Isto não significa, contudo, que a relação entre a
filosofia africana e a filosofia ocidental tenha de ficar por aqui. Como Wiredu
tenta demonstrar, é possível desenvolver argumentos autónomos com base
na filosofia africana, não só sobre o porquê de esta não poder exprimir o
“cogito ergo sum”, mas também sobre as muitas ideias alternativas que ela
pode exprimir e que a filosofia ocidental não pode.
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Ecologia de saberes, mythos, e clinamen
A ecologia de saberes não ocorre apenas no plano do logos. Ocorre também
no do mythos. A ideia de emergência ou o “Ainda Não” de Ernst Bloch é
aqui essencial (Bloch, 995: 4).
56
A intensificação da vontade resulta de
uma leitura potenciadora de tendências objectivas, que emprestam força a
uma possibilidade auspiciosa, mas frágil, decorrente de uma compreensão
mais profunda das possibilidades humanas com base nos saberes que, ao
contrário do científico, privilegiam a força interior em vez da força exterior,
a natura naturans em vez da natura naturata.
57
Através destes saberes é
possível alimentar o valor intensificado de um empenhamento, o que é
incompreensível do ponto de vista do mecanicismo positivista e funcionalista
da ciência moderna.
Deste empenho surgirá uma capacidade nova de inquirição e indignação,
capaz de fundamentar teorias e práticas novas, umas e outras inconformis‑
tas, destabilizadoras e mesmo rebeldes. O que está em jogo é a criação de
uma previsão activa baseada na riqueza da diversidade não‑canónica do
mundo e de um grau de espontaneidade baseado na recusa de deduzir o
potencial do factual. Desta forma, os poderes constituídos deixam de ser
destino podendo ser realisticamente confrontados com os poderes consti‑
tuintes. O que importa, pois, é desfamiliarizar a tradição canónica das mono‑
culturas do saber sem parar aí, como se essa desfamiliarização fosse a única
familiaridade possível.
55
Sobre este assunto e o debate que ele suscita, ver Wiredu, 997, e a discussão do seu trabalho
em Osha, 999.
56
Sobre a sociologia das emergências, ver Santos, 004 e 006b: 87‑6.
57
De uma perspectiva distinta, a ecologia dos saberes procura a mesma complementaridade que,
no Renascimento, Paracelso (49‑54) identificou entre “Archeus”, a vontade elementar na
semente e no corpo, e “Vulcanus”, a força natural da matéria. Ver Paracelso, 989: e todo o
texto sobre “microcosmos e macrocosmos” (989: 7‑67). Ver também Paracelso,967.
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Boaventura de Sousa Santos
A ecologia de saberes é uma epistemologia destabilizadora no sentido
em que se empenha numa crítica radical da política do possível, sem ceder
a uma política impossível. Central a uma ecologia de saberes não é a dis‑
tinção entre estrutura e acção, mas antes a distinção entre acção conformista
e aquilo que designo por acção-com-clinamen.
58
A acção conformista é uma
prática rotineira, reprodutiva e repetitiva que reduz o realismo àquilo que
existe e apenas porque existe. Para a minha noção de acção-com-clinamen,
tomo de Epicuro e Lucrécio o conceito de clinamen, entendido como o
“quiddam” inexplicável que perturba a relação entre causa e efeito, ou
seja, a capacidade de desvio que Epicuro atribuiu aos átomos de Demócrito.
O clinamen é o que faz com que os átomos deixem de parecer inertes e
revelem um poder de inclinação, isto é, um poder de movimento espon‑
tâneo (Epicurus, 96; Lucretius, 950).
59
Ao contrário do que acontece
na acção revolucionária, a criatividade da
acção-com-clinamen não assenta
numa ruptura dramática, antes num ligeiro desvio, cujos efeitos cumula‑
tivos tornam possíveis as combinações complexas e criativas entre átomos,
assim como entre seres vivos e grupos sociais.
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O clinamen não recusa o
passado; pelo contrário, assume‑o e redime‑o pela forma como dele se
desvia. O seu potencial para o pensamento pós‑abissal decorre da sua
capacidade para atravessar as linhas abissais. A ocorrência de acção-com-
-clinamen é em si mesma inexplicável. O papel de uma ecologia de saberes
a este respeito será somente o de identificar as condições que maximizam
a probabilidade de uma tal ocorrência e definir, ao mesmo tempo, o hori‑
zonte de possibilidades em que o desvio virá a “operar”. A ecologia de
saberes é constituída por sujeitos desestabilizadores, individuais ou colec‑
tivos, e é, ao mesmo tempo, constitutiva deles. A subjectividade capaz da
ecologia dos saberes é uma subjectividade dotada de uma especial capaci‑
dade, energia e vontade para agir com clinamen. A própria construção
social de uma tal subjectividade implica necessariamente recorrer a formas
excêntricas ou marginais de sociabilidade ou subjectividade dentro ou fora
da modernidade ocidental, as formas que recusaram a ser definidas de
acordo com os critérios abissais.
58
Desenvolvo este conceito em Santos, 998.
59
O conceito de clinamen entrou na teoria literária pela mão Harold Bloom. É uma das rationes
revisionistas da sua teoria da influência poética. Em The Anxiety of Influence, Bloom serve‑se da
noção de clinamen para explicar a criatividade poética como uma tresleitura que é antes trans-
-leitura
(o termo bloomiano é misreading, um ler‑mal que é também ler‑mais‑do‑que‑bem, ou
corrigir). Diz Bloom: “Um poeta desvia‑se do poema do seu precursor, executando um
clinamen
em relação a ele” (Bloom, 97: 4).
60
Como diz Lucrécio, o desvio é per paucum nec plus quam minimum (Epicurus, 96: introdução
de
Frederic Manning, XXXIV).