Para além do Pensamento Abissal |
A primeira linha global moderna foi, provavelmente, o Tratado de Tor‑
desilhas entre Portugal e Espanha (494),
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mas as verdadeiras linhas abissais
emergem em meados do século XVI com as
amity lines (linhas de amizade).
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O seu carácter abissal manifesta‑se no elaborado trabalho cartográfico inves‑
tido na sua definição, na extrema precisão exigida a cartógrafos, fabricantes
de globos terrestres e pilotos, no policiamento vigilante e nas duras punições
das violações. Na sua constituição moderna, o colonial representa, não o
legal ou o ilegal, mas antes o sem lei. Uma máxima que então se populariza,
“para além do Equador não há pecados”, ecoa no passo famoso dos Pen-
samentos de Pascal, escritos em meados do século XVII: “Três graus de
latitude alteram toda a jurisprudência e um meridiano determina o que é
verdadeiro... É um tipo peculiar de justiça cujos limites são demarcados por
um rio, verdadeiro neste lado dos Pirinéus e falso no outro” (966: 46). De
meados do século XVI em diante, o debate jurídico e político entre os
estados europeus a propósito do Novo Mundo concentra‑se na linha global,
isto é, na determinação do colonial, não na ordenação interna do colonial.
Pelo contrário, o colonial é o estado de natureza onde as instituições da
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A definição das linhas globais ocorre gradualmente. Segundo Carl Schmitt (00: 9), as linhas
cartográficas do século XV pressupunham ainda uma ordem espiritual global vigente de ambos os
lados da divisão — a Respublica Christiana, simbolizada pelo Papa. Isto explica as dificuldades
enfrentadas por Francisco Vitoria, o grande teólogo e jurista espanhol do século XVI, para justi‑
ficar a ocupação de terras nas Américas. Vitoria pergunta se a descoberta é suficiente como título
jurídico de posse da terra. A sua resposta é muito complexa, não só por ser formulada em estilo
aristotélico, mas sobretudo porque Vitoria não concebe qualquer resposta convincente que não
parta da premissa da superioridade europeia. Este facto, contudo, não confere qualquer direito
moral ou positivo sobre as terras ocupadas. Segundo Vitoria, nem mesmo a superioridade civiliza‑
cional dos Europeus é suficiente como base de um direito moral. Para Vitoria, a conquista podia
servir apenas de fundamento a um direito reversível à terra, a jura contraria, nas suas palavras. Isto
é, a questão da relação entre a conquista e o direito à terra deve ser colocada inversamente: se os
Índios tivessem descoberto e conquistado os Europeus, teriam eles igual direito a ocupar as terras?
A justificação de Vitoria para a ocupação de terras assenta ainda na ordem cristã medieval, na
missão atribuída pelo Papa aos reis espanhol e português, e no conceito de guerra justa (Schmitt,
00: 0‑5; ver também Anghie, 005: ‑). A laboriosa argumentação de Vitoria reflecte o
grau de cuidado da Coroa que, ao tempo, se preocupava mais com a legitimação dos direitos de
propriedade do que com a soberania sobre o Novo Mundo. Ver também Pagden, 990: 5.
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Do século XVI em diante, as linhas cartográficas, as chamadas amity lines – a primeira das quais
poderá ter emergido em resultado do Tratado de Cateau‑Cambresis (559) entre a Espanha e a
França – abandonaram a ideia de uma ordem comum global e estabeleceram uma dualidade
abissal entre os territórios deste lado da linha e os territórios do outro lado da linha. Deste lado da
linha, vigoram a verdade, a paz e a amizade; do outro lado da linha, a lei do mais forte, a violência
e a pilhagem. O que quer que ocorra do outro lado da linha não está sujeito aos mesmos princípios
éticos e jurídicos que se aplicam deste lado. Não poderá, portanto, dar origem ao tipo de conflitos
que a violação de tais princípios causaria se ocorresse deste lado da linha. Esta dualidade permitiu,
por exemplo, aos reis católicos de França manterem, deste lado da linha, uma aliança com os reis
católicos de Espanha e, ao mesmo tempo, aliarem‑se aos piratas que, do outro lado da linha, ata‑
cavam os barcos espanhóis.
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Boaventura de Sousa Santos
sociedade civil não têm lugar. Hobbes refere‑se explicitamente aos “povos
selvagens em muitos lugares da América” como exemplares do estado de
natureza (985: 87), e Locke pensa da mesma forma ao escrever em Sobre
o Governo Civil: “No princípio todo o mundo foi América” (946: §49).
O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as moder‑
nas concepções de conhecimento e direito. As teorias do contrato social
dos séculos XVII e XVIII são tão importantes pelo que dizem como pelo
que silenciam. O que dizem é que os indivíduos modernos, ou seja, os
homens metropolitanos, entram no contrato social abandonando o estado
de natureza para formarem a sociedade civil.
O que silenciam é que, desta
forma, se cria uma vasta região do mundo em estado de natureza, um estado
de natureza a que são condenados milhões de seres humanos sem quais‑
quer possibilidades de escaparem por via da criação de uma sociedade civil.
A modernidade ocidental, em vez de significar o abandono do estado de
natureza e a passagem à sociedade civil, significa a coexistência da sociedade
civil com o estado de natureza, separados por uma linha abissal com base
na qual o olhar hegemónico, localizado na sociedade civil, deixa de ver e
declara efectivamente como não‑existente o estado de natureza. O presente
que vai sendo criado do outro lado da linha é tornado invisível ao ser recon‑
ceptualizado como o passado irreversível deste lado da linha. O contacto
hegemónico converte simultaneidade em não‑contemporaneidade. Inventa
passados para dar lugar a um futuro único e homogéneo. Assim, o facto de
os princípios legais vigentes na sociedade civil deste lado da linha não se
aplicarem do outro lado da linha não compromete de forma alguma a sua
universalidade.
A mesma cartografia abissal é constitutiva do conhecimento moderno.
Mais uma vez, a zona colonial é, par excellence, o universo das crenças e dos
comportamentos incompreensíveis que de forma alguma podem considerar‑
‑se conhecimento, estando, por isso, para além do verdadeiro e do falso.
O outro lado da linha alberga apenas práticas incompreensíveis, mágicas
ou idolátricas. A completa estranheza de tais práticas conduziu à própria
negação da natureza humana dos seus agentes. Com base nas suas refina‑
das concepções de humanidade e de dignidade humana, os humanistas
dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os selvagens eram
sub‑humanos. A questão era: os índios têm alma? Quando o Papa Paulo III
respondeu afirmativamente na bula Sublimis Deus, de 57, fê‑lo conce‑
bendo a alma dos povos selvagens como um receptáculo vazio, uma anima
Sobre as diferentes concepções do contrato social, ver Santos, 00: 0‑9.