Esquizofonia



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Sharawadji”, definido como a sensação de plenitude provocada pela 
contemplação de uma paisagem sonora complexa. O termo “sharawadji” 
veio da China e foi introduzido na Europa pelos navegadores do Séc. XVII, 
designando uma impressão de beleza que não se pode explicar 
racionalmente e que só a Natureza é capaz de originar, ainda que «por 
descontextualização e ruptura de sentido», como avisou o compositor 
canadense Claude Schryer. A categoria soundscape surgiu não só como 
resposta ao desejo de introduzir na música a realidade vivencial, os sons 
não musicais (o ruído) do quotidiano, mas também em decorrência de 
preocupações de tipo ecológico. A referência do próprio Schryer a uma 
“experiência auditiva quase-religiosa” dos sons sharawadji dá conta da 
amplitude espiritual deste tipo de intervencionismo estético. 
Schryer confessou o seu amor pelas máquinas numa comunicação dirigida 
à Société Québécoise de Recherche en Musique: “Gosto muito da 
velocidade do som virtual. Gosto de me inspirar no imenso potencial 
metafórico e metamórfico da eletroacústica. E no entanto, devo lidar 
continuamente com o paradoxo entre a minha arte eletrônica e a 
ecologia. Por vezes tenho mesmo a impressão de fazer parte do 
problema, e não da solução.” Esta solução poderia ser o desenvolvimento 
de uma “consciência sonora”, na esperança de que as tecnologias 
eletrônicas nos ajudem a sensibilizar a percepção dos sons e a encontrar 
um equilíbrio entre o ambiente áudio natural e o que produzimos 
artificialmente.  
Assim, a grande tarefa da eletroacústica ambiental é conjugar as 
dimensões físicas da escuta natural com as da relatividade da escuta 
midiatizada. 
Qual é a principal diferença desta tendência em relação à música 
concreta? O fato de a composição de soundscapes refletir e processar a 
realidade, na fronteira entre a representação e a abstração, tal como a 
fotografia, enquanto na musique concrète os sons são separados da sua 
fonte e transformados em “objetos” cujo valor reside em si mesmos. Ou 
melhor: são “desanimados”. Desse modo, considera-se bem sucedida 
uma peça musical “paisagística” quando esta consegue modificar a 
atitude dos ouvintes relativamente aos sons que nos rodeiam, num 
processo de alcance social e político. Se a utopia do cyberpunk é 
negativista, na verdade uma anti-utopia, a antecipação da tragédia 
humana e um alerta, a utopia da ecologia musical é simpática, ingênua e 
bem intencionada, por vezes até “politicamente correta”. Destas duas 
perspectivas, uma niilista, a outra “construtiva”, a mais atuante acaba por 
ser a primeira, e não só devido ao seu impacto. A fabulação de cenários 
ou atmosferas sobrenaturais e pós-humanos pode ser “anti-ecológica”, 
mas esta anti-ecologia, vendo bem, é ainda uma ecologia. 
Num pequeno livro simplesmente intitulado Cyber-Punk, o neo-
situacionista Mark Downham definiu este gênero como “uma nova ficção 
tecno-surreal”. Já acreditava ele na época (década de 80 do século 
passado) que a convergência da televisão, das telecomunicações e do 
computador cria uma ideologia de determinismo tecnológico e constrói 
futuros pré-fabricados que apenas espelham a presente sociedade do 
espetáculo, numa espécie de transmissão da morte da alma coletiva dos 
homens. Não se trata apenas de um encontro entre Frankenstein e a 
MTV, mas de um deslumbramento relativamente à violência 
metropolitana e societária. “Nós somos o espetáculo. O vácuo do nosso 
relacionamento social e do nosso espírito é o espetáculo. As nossas 
iconografias são o espetáculo, bem como as nossas atrocidades”, lemos 
em determinada passagem. 
O triunfo tecnológico “celebrado” pelo cyberpunk é escatológico, segundo 
Downham, significando a nulidade de qualquer oposição, a dissolução da 


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História, a neutralização da diferença e o apagamento da possibilidade de 
alternativa. Na sua definição, o cyberpunk é um mar eletrônico cujas 
correntes o transportam na direção da catástrofe. Esta entropia tem um 
nome: poder. Se a tecnologia é a mão do poder, o cyberpunk foi a sua má 
consciência. E continua a sê-lo, nas práticas musicais que o herdaram. A 
mão, já o dizia Jean Baun, não tem apenas como vocações a preensão, o 
gesto ou o toque, é também “o órgão do surgimento”. A mão torna o 
cérebro ativo e completa o homem, isto é, lhe dá poder. E se este 
pensador argumenta que o desenvolvimento do maquinismo teve por fim 
último a conquista do espaço, a tecnologia fez deste “já não o lugar da 
nossa despossessão, mas o campo do nosso poder”. Porquê? Porque as 
técnicas de telecomunicação, de telecomando, de teleguiagem 
amplificaram o poder das nossas mãos, prolongaram os nossos braços e 
enriqueceram as possibilidades de manipulação, explica ele. 
Foi assim que nos habituamos a encontrar cada vez menos resistência nas 
coisas, “a distância, o peso, a impenetrabilidade dos corpos foram 
vencidos e já não constituem obstáculos”, verificando-se deste modo que 
“o homem conseguiu tecer em torno do mundo toda uma rede de 
preensões”. Hoje, muitos artistas eletroacústicos influenciados pelos 
princípios cyberpunk utilizam o microfone como o instrumento principal 
de uma música que se pretende móvel e até de deriva, uma música 
tecnologicamente portátil e que tem a sua razão de ser no próprio 
atravessamento dos ambientes sonoros. Esta postura é bem explicada por 
Brandon LaBelle num texto intitulado “Architecture of Noise” que reflete 
sobre a geografia criada pelo ruído, publicado num livro/CD coletivo, Site 
of Sound: Of Architecture and the Ear: “A rua é imprevisível, existindo 
como um possível caos, uma ordem sempre em processo de se minar a si 
mesma.” A rua, espaço vazio, é para LaBelle inerentemente instável e 
potencialmente “criminal”. 
A rua expressa, assim, a liberdade do movimento e força a possibilidade 
de igualdade democrática, aliviando a ordenação imposta pela 
arquitetura burguesa. Uma casa é sempre um abrigo, mas também 
potencia a perturbação: “Um corpo sentado numa cadeira pode estar 
confortável, mas esse conforto não dura muito tempo; o corpo fica 
inquieto, agitado, os músculos crispam-se e acabamos por nos levantar. 
Estamos sempre em processo de nos confrontarmos com o nosso 
conforto, sentimos a necessidade de nos ajustarmos para acomodar as 
nossas agitações corporais, reorganizando o espaço para aliviarmos os 
movimentos.” Esta visão das coisas não está muito longe da expressa pela 
Internacional Situacionista. LaBelle vê esta como o abandono da prática 
artística a favor da ação política, com o objetivo de minar a 
homogeneização crescente da sociedade moderna e articular formas 
alternativas de viver e de ser produtivo. Procurou-se, assim, a 
potencialização dos conflitos e das paixões, por meio de uma arquitetura 
que tivesse a rua em consideração, designadamente as suas inerentes 
multiplicidade, vitalidade e fluidez. 
Contra a expansão corporativa a que se assistiu nos anos 50, os 
situacionistas valorizaram a idéia de fluxo como forma de libertar o caos 
da realidade. O fluxo cria ruído, dissonância, contradição, magnifica a 
diferença, multiplica a experiência humana, convida à interação coletiva. 
“A IS aspirou a uma arquitetura pública, a um design urbano 
estruturalmente permeável, determinado e formado pelo coletivo”, em 
concordância “com a agitada fluidez da rua” e tendo em vista uma 
“vivência criativa” e “espontânea”. Como lembra Brandon LaBelle no seu 
ensaio, para a Internacional Situacionista a liberdade não era algo 
desprovido de tensão, antes pelo contrário. E assim sendo, uma 
arquitetura da liberdade deve criar espaços de conflito, espaços que não 
só os possibilitem como os amplifiquem. A música concreta refletiu este 
entendimento, pois incidiu sobre a própria substância da realidade, a sua 


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