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manto da descrição, mas, também, como um yo quase personagem lhe outorga a essa mesma
imagem-paisagem sua marca; sua contribuição a um imaginário (comparativo pendente para o
“positivo” quando descreve o mundo norte-americano: “feito de precisão e eficácia”) o qual,
este sim, flotará en el aire até que se o tome ou se deixe tomar por outro viajero, outro
receptor, outro leitor de sua obra
38
.
Entretanto, como parte final do exercício proposto, haveria que imaginar-se a um novo
viajero, que, pela primeira vez, pisa em Paso del Norte Ciudad Juárez, parte do solo de seu
objeto de estudo, presente em mostras literárias “reveladoras” de imagens utilizadas na
composição, assunção e perpetuação de imaginários acerca das conturbadas relações
mexicano-estadunidenses. Haveria que questionar-se alguém sobre o que sente, o que vê, que
caminhos percorrem o imaginário, o depositário de imagens que traz de suas leituras
contrapondo-se, entremesclando-se à ótica que insere neste real agora experimentado, porém
antes imaginado por ele graças à literatura em Samuel Ramos, Octavio Paz, Carlos Fuentes,
Tomás Rivera, Juan Rulfo. Lográssemos imaginá-lo e talvez nos déssemos conta da
quantidade de sensações quem sabe, e/ou inclusive, químicas que a literatura tem o poder de
despertar, enquanto evocadora, provocadora de imagens, despertando, incitando a
imaginação, participando em, fomentando a criação de imaginários, particulares ou mesmo
coletivos.
Imaginemos por fim que a este novo viajero se lhe surge de modo inesperado
(semelhante ao defendido por Iser) a confrontação de seu imaginário prévio, particular (por
que não dizer carregado de pré-conceitos, preconceitos) com o olor, a poeira, o espaço do
deserto, com a guerra que já não há (não lhe tratam mal os “anglos”) e a guerra discursiva
(nela o ano de 1848 não encerrou a Guerra mexicano-americana), ainda que por vezes quase,
quase silenciosa, que ainda segue existindo em cidades onde pode alguém confundir-se se
mexicanoestadunidencizadas ou estadounidensemexicanizadas. Daí que se pode inferir desse
exercício de imagens em ação a possível renovação de imaginários sociais, transnacionais
com os quais a mesma literatura que um dia se quis confundir com a História (contribuindo
para a fixação do nacional) interage a partir dos efeitos que causa, da ação que proporciona
junto às sensações, ao cérebro e à psique humana.
Cabe, dessa forma, uma última proposta de contributo necessário à teorização do
imaginário: o que se imagina de; ideia sobre; conjunto, depositário de imagens, de ideias
assentadas na mente, na memória (individual e/ou coletiva), flutuantes em um inconsciente
38
Análises comparativas mais estendidas fazem parte dos capítulos de leitura do corpus.
67
coletivo, reconstruídas, (re)despertadas a partir de determinadas sensações, situações em que
pode desempenhar papel decisivo a literatura.
68
2 ELIPSE E LACONISMO: A NARRATIVA EM INSTANTÂNEOS LITERÁRIOS DE
...Y NO SE LO TRAGÓ LA TIERRA
O termo “chicana” figura em variados dicionários brasileiros de língua portuguesa o
mais das vezes como um substantivo representativo de ardil, astúcia, malícia
39
. Pouco usual
na fala comum, cotidiana, é raro seu uso até mesmo nos discursos da dita norma culta, tendo
utilização mais bem alocada ao meio jurídico, onde aparece como sinônimo de manobra
capciosa, abuso de recursos com base em sutilezas propiciadas pela própria formalidade da
justiça, mas encaradas como utilização intencional de meios, de detalhes irrelevantes dos
quais pode se valer o advogado para atrasar todo um processo.
Abordadas essas duas possibilidades semânticas do termo, esses dois aspectos do
verbete em português, o fato é que em ambos há o encontro de que a palavra deriva do francês
chicane. Tal galicismo parece remontar suas origens ao século XVI, com o significado bélico
de desvio em ziguezague por um entrincheiramento. Essa mesma origem francesa acompanha,
ainda, o significado de mecanismo que obstaculiza a livre passagem de um elemento fluido ou
sólido, transposto, também, ao meio jurídico da mesma forma que em português e à outra
utilização contemporânea no círculo automobilístico, como objeto de desvio, desaceleração
por intermédio de pneus dispostos de modo lateral à pista ou por uma sequencial de curvas em
“s” logo após uma grande reta.
Não. Em sua etimologia, o galicismo feminino e o “mechicanismo”, tanto em
masculino como em feminino, não parecem ter a mesma origem, algo que evidencie uma
mesma raiz semântica. No entanto, resulta minimamente curioso o fato de que coincidam de
certa maneira nas heranças neolatinas de chicane/chicana (do gálico ao francês e daí ao
português) e meso-hispano-americanas de chicano (do náuatle que dá origem a “mexica” à
apropriação espanhola, portanto também neolatina, com contribuição sufixal no termo
“mexicano” e daí ao nome cortado – como sugere Jean-Luc Nancy em interessante ensaio de
2012
40
– “chicano”, já em solo estadunidense); resulta interessante, pois, a permanência
semântica da relação com o movimento (migratório no caso chicano) e com o desvio (já seja
encarado como desvio físico ou mesmo como desvio à norma, a regras, razão pela qual aqui
tal caráter se assemelha à carga de imposições/significações depreciativas dadas ao nome
“chicano” enquanto denominação estrangeira em solo ianque).
39
Dicionário Aurélio da língua portuguesa em: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio
Eletrônico versão 5.12 (2004).
40
“Sol cuello cortado” (NANCY, 2012, p. 163-79).
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