69
É, então, atrelado a esse caráter chicano de deslocamento, que movo meus argumentos
neste segundo capítulo. Seguindo essa linha de raciocínio, a interpretação que dedico ao
clássico da literatura chicana ...y no se lo tragó la tierra se movimenta ao redor do seguinte
eixo de abordagem: a) num primeiro momento, analiso a estrutura romanesca em elipse
orquestrada por Rivera, com destaque para sua coincidência quanto ao modo elíptico de narrar
usado pelo autor; b) em seguida, no segundo tópico do capítulo, volto meu olhar para o
narrador (ou narradores) criado(s) por Rivera para contar uma história intimamente vinculada
à infância do próprio autor, sem que isso, entretanto, afaste a obra ora em epígrafe do poder
imaginativo caro às narrativas literárias de ficção; e c) terceira parte do capítulo, na qual as
questões tratadas nos tópicos anteriores acabam por desembocar no imagético que se levanta
do romance. Assim, é a partir da proposição de movimento acima descrita que me pauto para
a consecução da leitura exposta a seguir.
2.1 A elipse romanesca de Tomás Rivera
...y no se lo tragó la tierra é um romance cujo tom introspectivo é ditado pelos catorze
contos que o compõem de modo sugestivamente descontínuo, desconexo. Neles, o
protagonista busca os caminhos de sua identidade reconstruindo histórias vividas e a ele
contadas durante doze meses de migração familiar pelos campos de cultivo da região sudoeste
dos Estados Unidos. Neste enredo, não expositivo, repleto de implícitos, ressalta-se a força do
movimento chicano, dos trabalhadores migratórios e sua tenacidade.
Esta narrativa, quase todo o tempo em primeira pessoa (cujos elos não são fáceis de
serem unidos tão-somente em uma primeira leitura), conta a história de um adolescente de
ascendência mexicana, radicado nos Estados Unidos, criado, porém, dentro da cultura
mexicana trazida por seus pais. Através de um “relato”
41
quase todo ele em solilóquio
(havendo também a presença de outras “vozes” evocadas pelo próprio menino protagonista e
ainda uma narração em terceira pessoa, que só ao fim se revela como pertencente a este
41
O termo “relato” aparece aqui entre aspas porque é comum que em espanhol ele seja usado também como
sinônimo de conto, de narração. Ocorre que, em português, o termo tem sua semântica bastante aproximada à
narração de fatos, algo que poderia dar-lhe uma carga maior de proximidade com o real, com a realidade
empírica. Por essa razão, embora seja comum encontrar na crítica em espanhol a palavra relato para referir-se
aos contos que dão forma à ...y no se lo tragó la tierra, tal palavra será aqui evitada o mais das vezes com vistas
a desaconselhar uma possível, porém perigosa se excessiva aproximação da obra literária para com o real
empírico. Ainda que seja um consenso crítico a vinculação do enredo ficcional de ...y no se lo tragó para com a
vida de seu autor Tomás Rivera, é preciso que se separe o que em sua obra aparece, como o próprio escritor
afirma (1975, p. 66-77), como parte de um processo imaginativo, perto, muito perto de seu passado de menino
chicano, mas, ainda assim, simulacro que joga com o real empírico em relação de similitude, semelhança e não
de perfeita igualdade, de retrato “fiel”.
70
mesmo “menino” narrador) pode o leitor enveredar-se pelos caminhos e descaminhos de um
recurrido traspassado de preconceitos sofridos por conta da cultura e etnicidade de seu
personagem principal
42
.
O estilo trazido à baila nesta obra de Tomás Rivera indica a predileção pelo uso do que
podemos chamar de economia linguística. Assim, o laconismo no narrado sugere e ativa,
instiga a percepção do leitor/receptor a partir do rumor que deixa a secura desse mesmo
narrar, certa “ausência” de palavras a mais demonstrada já no título do romance, iniciado de
forma elíptica por reticências e pela conjunção y, sugerindo uma anterioridade ausente,
“continuada” e abruptamente cortada em tierra. Em uma operação que cobra mais perguntas
do que respostas, a busca de nexos para esse título elíptico dá esperanças ao leitor de
encontradas serem tais “soluções” em um conto homônimo, na sétima história que empresta
seu título à obra.
Porém, mais do que o encontro com uma evidente e já esperada remissão à exploração
do trabalho laboral com a terra, o leitor se depara ante a ação das resultantes desse trabaje y
trabaje debaixo de sol e suor sobre a mente de um irmão de nosso personagem principal.
Sentindo ódio e coragem, inconformado pela perda sucessiva de parentes próximos para a
tuberculose, o irmão mais velho do menino narrador amaldiçoa a Deus, quando vê seu irmão
menor e seu pai acometidos pela mesma doença que levara seus entes ou ao sanatório ou à
morte. Desse modo, acaba sendo ledo engano do leitor a busca de nexos que respondessem
pelo todo do enredo a partir do encontro de um correspondente para o título em elipse. Em
vez disso, o que se tem é um contar seco em que o maior destaque é o desafio desesperado ao
apego a tradições religiosas, forte na mãe dos meninos, entre conformada e esperançosa de
que a vontade divina não fosse a de que a terra tragasse nem pai, nem filho menor, sequer o
filho mais velho que amaldiçoava dessa maneira a Deus:
Como a medio camino se empezó a enfurecer y luego comenzó a llorar de puro
coraje. (…) Luego empezó a echar maldiciones. Y no supo ni cuándo, pero lo que
dijo lo había tenido ganas de decir desde hacía mucho tiempo. Maldijo a Dios. Al
hacerlo sintió el miedo infundido por los años y por sus padres. Por un segundo vio
que se abría la tierra para tragárselo. Luego se sintió andando por la tierra bien
apretada, más apretada que nunca. Entonces le entró el coraje de nuevo y se
42
Tal narrado de descaminhos não impede, porém, que se perceba na obra uma relativização da condição
chicana, não havendo uma heroicização excessiva dos sujeitos migrantes e sequer uma demonização antitética,
por assim dizer, da alteridade estadunidense. Ilustram tal observação a presença de personagens chicanos ladrões
e assassinos, que tomam conta do menino narrador para que ele termine seu ano letivo durante uma das
migrações trabalhistas rurais de sua família no conto “La mano en la bolsa”, e de personagens (especialmente
professoras) estadunidenses “anglos” tocados (algo não muito comum nem à época nem no enredo do romance)
pela ternura do menino chicano, como no caso de “La profesora se asombró...”, estampa que antecede o conto
“Los quemaditos”.
Dostları ilə paylaş: |