Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul – Caxias do Sul - RS – 15 a 17/06/2017
plano, citada apenas uma vez. O que foi destacado foi o fato de ser do continente
Africano. Não é comum vermos 'asiático' ou 'europeu', ao invés de 'chinês' ou 'italiano',
por exemplo.
A primeira imagem do vídeo é o rosto do suspeito, em diversos ângulos, bem
como o nome. Também não há referência ao fato de ser suspeito. O repórter cita que
"Claudino, de 28 anos, foi preso em flagrante depois de, segundo a polícia, ter tentado
estuprar duas estudantes...". Em seguida, temos a passagem do repórter, dando a versão
das estudantes, depois o depoimento de ambas, e só então a defesa do próprio suspeito,
que nega as acusações.
No final, o repórter ainda reforça a imagem do personagem como criminoso, já
que, conforme a reportagem, ele estaria morando de forma ilegal no Brasil por estar
com a documentação vencida. Desde o início, a construção é de um
vilão, o que fica
explícito nesse trecho, que serve como um reforço à imagem construída inicialmente.
Não bastasse não ser comum o uso do continente como referência de realidade, nesta
reportagem o substantivo 'africano' foi usado quatro vezes. Sozinho, o substantivo é
objetivo, mas carrega consigo uma subjetividade indiscutível.
A reportagem em texto inverte a sequência de informações, colocando o nome
do personagem no segundo parágrafo, mas usa o substantivo ‘africano’ já no título e
também na abertura da reportagem: "Um africano foi preso em flagrante suspeito de
tentar estuprar duas jovens dentro do campus da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) em Florianópolis, entre a noite de sexta (21) e a madrugada deste sábado (22)".
O restante do texto é praticamente a transcrição da reportagem em vídeo,
embora tenha suprimido parte do depoimento de um agente de segurança da
Universidade Federal de Santa Catarina, que afirmou que crimes são comuns no campus
da universidade em dias de festa. Essa observação, embora pudesse ser uma discussão
até mesmo mais
importante que o fato em si, é abordado de forma superficial.
Não podemos julgar a intenção do repórter responsável pela reportagem e saber
se houve uma reflexão, tanto por ele quanto pelos editores da
RBS TV
e do G1 Santa
11
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul – Caxias do Sul - RS – 15 a 17/06/2017
Catarina. Mas é inegável que o substantivo 'Africano', repetido tantas vezes, denota
preconceito. Talvez não fosse tão grave se tratássemos de qualquer outra origem, mas o
preconceito a negros é histórico, o que torna o uso inevitavelmente questionável.
As mudanças tecnológicas e o impacto nos processos jornalísticos também
devem ser levados em conta. No caso da reportagem para TV, o repórter foi até o local
do acontecimento e teve a oportunidade de conversar com as fontes. Já os profissionais
do
G1
, na maioria das vezes, fazem a apuração por telefone. É inegável que a tecnologia
trouxe avanços, mas também tornou-se uma opção para empresas cortarem gastos. O
enxugamento das redações também ocasionou, em muitos casos, acúmulo de funções,
com um tempo reduzido para apuração. Isso, porém, não reduz a responsabilidade dos
profissionais em relação à divulgação de informações e o tratamento boçal dado às
fontes.
Voltando aos apontamentos de Boaventura de Sousa Santos (2010), a Ciência
Moderna adquiriu o status de modelo único, que reduz os fatos sociais às suas
dimensões externas, observáveis e mensuráveis. O fato de o personagem ser africano é
uma dimensão externa e mensurável, não há como negar. Mas, continuando sua
reflexão, Santos (2010) acredita que esta lógica privilegia a relação sujeito-objeto, uma
objetivação que enxerga fenômenos também como objetos, ou seja, um processo de
coisificação, amparada pela lógica da racionalidade científica: “fundamentada no rigor
matemático, quantifica e, ao quantificar, desqualifica; ao objetivar os fenômenos, os
objetualiza e os degrada e, ao caracterizar os fenômenos, os caricaturiza” (SANTOS,
2010, p. 54). O que fazer então? É nas reflexões do próprio autor que buscamos saídas
possíveis.
Algumas Alternativas
Se o jornalismo é feito para e por seres humanos, existe então um jornalismo
desumanizado? Embora pareça contraditório, a reportagem que motivou este artigo
mostra que sim, que o jornalismo pode desumanizar. Pode reforçar a distância abissal,
12