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fundamental da constituição do gênero romance, das quais fala Bakhtin. Nessa contradição e
espécie de polêmica oracional de uma voz que aparentemente não fala, quando em verdade é
a responsável pelas várias vozes que falam, minha posição é a de que, reiterando, é o
narrador, ao fim e ao cabo, o “velho” encontrado debaixo da casa no final do romance; mas
um “velho” que, ao dar vez e voz à memória de um ano de sua infância, faz, desse menino
que ele foi, o protagonista, sim, de tal mnemônica.
Sendo assim, tendo para fins de consideração efetiva que é o menino rememorado o
protagonista recuperado na construção mnemônica de um narrador maduro, tem-se, nesse um
ano de sua infância, outra tensão, um atrito entre fronteiras, mais culturais do que
propriamente a física que compartem México e Estados Unidos. Estabelecida já sua migração
laboral e agrária em solo estadunidense, a família do menino protagonista traz, ainda,
entretanto, raízes culturais, raízes que invocam seu pertencimento do lado mexicano dessa
fronteira evocada a entrar em ...y no se lo tragó como problemática cultural. Tal problemática
atravessa o menino, já seja no ano de sua vida, visto desde o aspecto de trabalho nas terras do
agronegócio norte-americano, nos campos de cultivo, já seja desde o aspecto de
confrontamento de suas raízes cosmogônicas, culturais, familiares e linguísticas desde um ano
letivo em um novo sistema, um novo “universo” onde eram outros os atributos que vigoravam
nas práticas majoritárias primeiromundistas estadunidenses (por exemplo, o inglês como
única língua no ambiente, no aparato escolar, e a submissão, práticas vexatórias de
menosprezo às minorias, dentre as quais as de mexicanos... e chicanos).
Assim, temos que: a inserção da figura de um “velho”, e sua estranha aceitação do
passado, a duras penas conseguida, apontam para um futuro em que suas antigas formas de
resistência já se transformaram, solidificando-se em afirmação identitária e em uma nova
forma de resistência às demandas do poder, tanto o originário do México quanto o
confrontado nos Estados Unidos. No entanto, tal afirmação não se dá antes sem
questionamento, sem que sejam desafiadas, sem que sejam feitas, na figura evocada e
construída do menino protagonista, certas interdições sobre sacralidades, sobre “tradições”.
Segundo Gustavo Buenrostro (2012, p. 193 – grifo meu), em sua busca por obter e
instaurar um marco identitário coerente, a emergente intelectualidade chicana coetânea a
Rivera, procura, antes, no México encontrar algo que lhe orientasse com “un sentido de
historia y de identidad; una tradición”. Ainda conforme Buenrostro, o próprio Tomás Rivera
aponta que nos primeiros anos desse (re)florescimento da identidade chicana “hubo un
empeño en hallar nuestros valores en México, es decir, regresar allí y encontrar la piedra
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filosofal; encontrar nuestros antepasados y obtener así la fuerza dinámica que nos ayudaría
aquí” (RIVERA, 1979, s/p. apud BUENROSTRO, 2012, p. 194).
Allí e aquí denotam proximidade de espaços, mas é justo esse entre-fronteiras que
separa o tempo do menino protagonista do tempo do narrador maduro, o “velho” que “finda”
o romance, a figura com a qual finda seu romance Tomás Rivera. E, em seu tempo, o menino
protagonista defronta as questões de pertencimento que envolvem sua gente num apanhado de
apreensões culturais ainda mexicanas. Ocorre que esse menino recuperado traz para a
surpreendente figura “presentificadora” do velho descoberto embaixo da casa a atualização de
seu passado infante de questionamento ao apego cultural de sua gente e sua família a
costumes cuja validade se vê posta em xeque em solo estadunidense, onde se mostram
exacerbadas problemáticas de alteridade, mesmo que aceita a sujeição das classes minoritárias
diante do controle exercido pela cultura anglo dominante, algo que impõe a esse sujeito
minoritário uma situação de constante, e incômoda para muitos (tal é o caso do menino e
outras jovens vozes evocadas), subalternidade.
Entretanto, há um desafio implícito no confrontamento de que fez parte o jovem
narrador, o jovem no narrador. E tal desafio diz respeito a buscar entender de que modo se dá
todo esse questionamento de espírito jovem. Veremos que ele se atém, primeiro, ao âmbito da
imagem, e uma possível relação com imaginários. Possível porque, antes, o menino
protagonista relativiza toda uma imaginária que trazem consigo os seus. Cabe, então, um
aprofundamento desse aspecto relativo à imagem.
O termo “imaginária” aparece no desenvolvimento da obra O imaginário ([1994]
2011), do filósofo francês Gilbert Durand. Nesse ensaio sobre as ciências e a filosofia da
imagem, Durand lança mão do verbete “imaginária” (“imaginaire” em francês), não como
adjetivo, mas, sim, como substantivo, para referir-se/ou quando se refere a uma das vias da
resistência do imaginário ao iconoclasmo herdeiro do pensamento racionalista do Ocidente
desde Aristóteles (IV a.C.). As querelas a que se referem Durand tornam-se mais agudas,
principalmente, a partir da redescoberta dos textos aristotélicos (quase desaparecidos por
praticamente treze séculos) durante o século XII d.C. Desde então, a imagem se vê entre a
postura racionalista do pensamento, da experiência através do acesso aos fatos e entre a
Reforma Cristã Protestante, que abole em seus dogmas, suas doutrinas aquilo que tinha como
excessos imagéticos provenientes da idolatria abraçada e difundida pelo cristianismo católico.
E é a essa idolatria que Durand denomina, como parte da resistência do imaginário a um
profundo e amplo processo de iconoclasmo no Ocidente, de imaginária sacra.
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