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do lado anglo dessa bi-fronteira que “compartilham” México e Estados Unidos? Perguntas
que coincidem com e correspondem a um “¿Nosotros qué?”, elíptica e fatídica pergunta que
encerra de forma anônima a quarta estampa “introdutória” ¿Para qué van tanto a la escuela?
(RIVERA, [1971] 2012, p. 92). A busca por respostas para tais questionamentos só se passa
através de uma revisitação a toda imaginária sacralizada, tida como sacra, como sagrada, fruto
de tradição e apego, porquanto pertencimento, pelos seus. Vejamos, pois, de que modo se dá o
desfile de tal imaginária passeando pela contestação revisitada na narrativa de reminiscências
do protagonista do único romance riverano.
Num primeiro momento, logo na primeira estampa que abre o narrado de
desenvolvimento da obra após o primeiro conto-capítulo, o menino protagonista se interpõe
ao jogo de sobreposições multiculturais caros à tradição mexicana herdada, trazida por sua
família. Nesse jogo, o sagrado se atém ao apego a pedidos feitos a espíritos. Assim, o
questionar se posiciona entre a burla e o temor (implícito no caráter elíptico-sugestivo do
narrado) às possíveis repreensões que poderiam advir do ato assim contado:
Lo que nunca supo su madre fue que todas las noches se tomaba el vaso de agua que
ella les ponía a los espíritus debajo de la cama. Ella siempre creyó que eran éstos los
que se tomaban el agua y así seguía haciendo su deber. Él le iba a decir una vez pero
luego pensó que mejor lo haría cuando ya estuviera grande (RIVERA, [1971] 2012,
p. 78).
Nesse primeiro instante, mesmo que com bastante cuidado, questionado é o “dever” de
sua mãe, este dever “tradicional” de “todas las noches”, cuja tradição a narrativa se deixa,
através da oração “Ella siempre creyó”, desvelar por não mais que uma crença a qual tem, na
verdade, em seu “siempre” o estabelecimento de ato (con)sagrado de tradição. Mas, os
espíritos rememorados pelo menino não se aquietam aqui. Tornam espíritos e a inquietação do
protagonista, logo na estampa seguinte à anterior:
Se había dormido luego, luego, y todos con mucho cuidado de no tener los brazos ni
las piernas ni las manos cruzadas, la veían intensamente. Ya estaba el espíritu en su
caja.
– A ver ¿en qué les puedo ayudar esta noche, hermanos?
– Pues, mire, no he tenido razón de m’ijo hace ya dos meses. Ayer me cayó una
carta del gobierno que me manda decir que está perdido en acción. Yo quisiera saber
si vive o no. Ya me estoy volviendo loca nomás a piense y piense en eso.
– No tenga cuidado, hermana. Julianito está bien. Está muy bien. Ya no se preocupe
por él. Pronto lo tendrá en sus brazos. Ya va a regresar el mes que entra.
– Muchas gracias, muchas gracias (RIVERA, [1971] 2012, p. 81).
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Aqui a imaginária vem ainda por força da imaginação de sua gente, representada pela
imaginação da mãe do menino protagonista. Porém, a narrativa subverte tal imaginária
inventiva a seus subentendidos. Algo perceptível desde a frase “Ya estaba el espíritu en su
caja”, pois, se levamos em conta a dúvida metafísica de um onde seria o “Está muy bien” de
que fala um espírito e como dar-se-ia a materialização de sua outra fala “Pronto lo tendrá en
sus brazos”, tal caixa como corpo em que aporta o espírito que fala à mãe desesperada por
notícias de seu filho dado como perdido em guerra pode metaforicamente, dubiamente,
também representar outro objeto. Assim, essa caixa pode denotar, conforme apontam Ramos e
Buenrostro – ao tocarem no tema da guerra também tratado pelo porto-riquenho José Luis
González em seu conto “Una caja de plomo que no se podía abrir” (1973) –, “esa hermética
cajita de plomo donde los representantes del ejército le ‘entregan’ a la madre los restos de su
hijo desaparecido en la guerra” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 49 – grifo dos autores
em aspa simples).
Mas, se até aqui a relativização se atém mais à imaginação do que propriamente a uma
imaginária, tal ação se intensifica mesmo na continuidade desse drama que passa pela ficção
de cidadania a que se viam submetidos os sujeitos de etnia minoritária em solo estadunidense.
Como se percebe, pela apresentação de dados anteriores, a dramaticidade da situação advinda
dessa ficção e busca por reconhecimento de cidadania, desemboca no conto “El retrato”, o
qual já abordei. No entanto, antes que se chegue a ele, imediatamente após a estampa “Se
había dormido...” está o conto “Un rezo”, onde não apenas se desenvolve a passagem iniciada
na primeira estampa “Lo que nunca supo...”, bem como se intensifica a apresentação e
relativização da imaginária me(x)chicana.
Assim, apresenta o conto uma voz em primeira pessoa referente à mãe do já referido
jovem dado como desaparecido na intervenção estadunidense à Guerra da Coreia. Tal voz
conta suplicar pelo terceiro domingo seguido a “Dios, Jesucristo, santo de mi corazón”
(RIVERA, [1971] 2012, p. 82) para que estes lhe deem notícias de seu filho. A estes pede
ainda que o protejam das balas inimigas, para “que una bala no vaya a atravesarle el corazón
como al de doña Virginia, que Dios lo tenga en paz” (Ibid.); sendo, neste caso, bastante
perspicaz a “coincidência” forçosa, forçada, a fina ironia de que conste a referência do
ocorrido a alguma amiga cujo nome se assemelha à designação da Virgem católica, sobre
quem também pesou a dor do martírio de seu filho, Jesus, de coração também atravessado
pelo inimigo com uma lança romana.
No entanto, as remissões à mariolatria, esse apego e culto da Virgem (Cf. DURAND,
[1994] 2011, p.18), com efeito, revelam-se em pedidos mais específicos como: “Por favor,
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