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Seguindo os termos de Chklovski, entende-se que está na transposição da percepção
usual que comumente se tem de um objeto para uma esfera que altere tal percepção,
deslocando-a do anterior lugar comum, anterior lugar de automatismo em que figurava para o
receptor; está em tal transposição um dos atributos base da arte, um de seus procedimentos, o
procedimento de singularização, “criado conscientemente para libertar a percepção do
automatismo” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54).
É interessante notar o caráter de permanência da descrição do procedimento de
singularização, mesmo com as variantes e desdobramentos apresentados ao longo dos anos
que sucederam os traços inovadores das teorizações formalistas. No caso particular da busca
por expor tal procedimento literário, há que se destacar o trabalho com bases até mesmo
aristotélicas. Chklovski encontra em Aristóteles campo para diálogo com o clássico (pese a
toda revolução formalista requerida a partir de então no uso da ciência da literatura), certo
fundamento para seus argumentos. Para esse formalista: “Segundo Aristóteles, a língua
poética deve ter um caráter estranho, surpreendente” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54 –
grifo meu). Aqui, então, talvez esteja a base para a formulação que visava destacar a
existência do procedimento literário de estranheza, o surpreendente na literatura, o que lhe
confere boa parte de sua literariedade, de seus traços característicos, intrínsecos, próprios,
diferenciadores, particulares, singulares. Não se identificasse a existência desse(s) efeito(s) de
estranheza e talvez não poderíamos chegar à literaturnost de Jakobson: dissecando-se a
literaturnost, chega-se aos efeitos de estranheza; identificando-se estes, podemos falar da
presença daquela como característica indissociável da obra literária.
Ora, por certo é questionável por meios teóricos, pela observação atenta dos mais
variados corpus se toda obra literária de fato tem evidente, se toda obra literária deve carregar
em si, deve trazer em sua interpretação, ou seja, se se extrai de sua leitura a observação
explícita de literariedade, de efeitos de estranheza tal como anotados a partir dos moldes
formalistas. Contudo, no que toca a esta pesquisa, a abordagem literária tomando como marco
teórico preceitos formalistas resulta de estudo reiterado dos romances sobre os quais me
atenho para a composição da presente tese.
Com relação à noção de forma, pude apresentar nos parágrafos referidos a ela sua
correspondência, seu diálogo e relevância para com as obras em relevo nesta investigação. Já
no tocante às noções de literariedade e de estranhamento, antes de serem apresentados dados
mais específicos nos capítulos propriamente destinados para a análise textual dos corpora,
pode-se aqui adiantar algo da evidência dessas noções nas obras ora estudadas e de sua
importância no alcance dos objetivos apresentados para o desenvolvimento desta tese.
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Em La frontera de cristal e ...y no se lo tragó la tierra, a eleição de se escreverem
ambos os romances em contos, apesar de não se constituir um feito inédito
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, representa
“estratégia” literária carregada de arrojo em seu intento estético e de construção narrativa, ato
que confere caráter singular ao que busca representar, apreender do real vivido, incitando,
“convidando” o leitor/receptor a uma abordagem minimamente distinta à que costuma dedicar
à leitura/recepção e percepção e interpretação da forma/gênero romance.
Mas, a literaturnost nas referidas obras de C. Fuentes e T. Rivera não se limita apenas
ao efeito de estranheza estético acima descrito. Em La frontera de cristal, de modo resumido
por ora, pode-se dizer que, além dos elementos até aqui já levemente destacados, faz parte
ainda de seu processo de desautomatização do quotidiano o orquestrar mescla entre certo tom
mais poético da linguagem (porquanto mais literário?) até seu caráter mais cru (porquanto
mais popular?) ou histórico-ensaístico (porquanto mais elaborado?) no intuito de mostra das
imagens que deseja passar, perpassar ou, inclusive, repassar. É importante lembrar que tal
jogo de e entre linguagens é também enfocado pelo formalista Chklovski em suas explanações
sobre os caminhos, sobre as estratégias literárias utilizadas para e na obtenção dos efeitos de
estranheza, aqueles que conferirão a literariedade de que fala outro dos formalistas, Jakobson.
Mas, se em Fuentes o destaque de estranhamentos está em parte por conta do que
poderíamos chamar de profusão da palavra literária, sua oposição estaria na elipse dos contos
curtos, e das estampas que os antecedem, em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera.
Estará também nessas mesmas estampas “introdutórias”, quase epígrafes, o logro de efeito de
estranheza da obra, porque sugerem, por serem aparentes introduções, coesão de enredo com
os contos que precedem; algo, todavia, só alcançado com a chegada ao último conto,
responsável pela circularidade romanesca do narrado.
Enquanto isso, no La frontera de Fuentes (1995), este encontro se dá de maneira
semelhante no último conto; entretanto, apesar da independência dos textos que o compõem,
os nexos nos são apresentados, pouco a pouco, aqui e ali, em um ou outro conto componente
do todo capitular da obra, pela repetição explícita de personagens de contos-capítulos
anteriores, inseridos em contos-capítulos posteriores.
Outra aproximação na literariedade de ambas as obras é o “apego” à oralidade, a busca
por sua representação, imitação e emulação, o que lhes confere certo caráter popular,
inclinando-se sobre o imaginário fônico, fonético (a imagem não é muda, crítica iminente na
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Encontramos exemplos de estruturação semelhante em modelos dos mais distintos entre si, dentre os quais
podem ser citados mesmo obras distantes em tempo e espaço, tais como o Decameron (1351/1353), do italiano
Bocaccio (1313-1375), e Noite na Taverna (1855), do brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852).
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