Antropologia: aproximando-se do “outro” em meio a tensões da subjetividade e cientificidade



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Antropologia: aproximando-se do “outro” em meio a tensões da subjetividade e cientificidade

Aroldo da Silva Junior*



RESUMO: O objetivo deste trabalho é, partindo de Malinowski como eixo orientador, apresentar a antropologia, em especial o método etnográfico, problematizando principalmente a alteridade e a objetividade científica. A antropologia envolve uma aproximação em torno do “outro” - originalmente o “selvagem” das comunidades nativas. Nisso desenvolveu-se uma forma de pesquisa participativa na qual o próprio pesquisador convivia com os “seus nativos” na tentativa de melhor “compreendê-los”. Esse método, que passou a caracterizar a própria antropologia, causou profundo impacto, especialmente por deslocar o pesquisador de seu gabinete. Nesse contexto adquiriu notoriedade Malinowski, considerado como o seu célebre fundador. Esse processo culminou com a sua mitificação, ora reforçando a imagem de um suposto herói (idealizado), ora desqualificando as suas concretas contribuições. Pretende-se, aqui, ir além do mito e das limitações de Malinowski, sinalizando o caráter histórico e coletivo envolvidos, pontuando contribuições de outros pesquisadores (como Boas, Mauss e Durkheim) e, inclusive, revelando uma antropologia, uma alteridade, nem sempre “humanizadoras”. Na atualidade um novo “nativo” surgiu, mais próximo: nas vilas, repartições públicas, salas de aula (em nós mesmos). E o método etnográfico, que incorporou mudanças, além de revelar-se como uma alternativa viável frente a metodologias massificantes (predominantemente quantitativas e abstratas), ainda instiga o pesquisador a sair detrás de seu “avental branco cientificista”, justamente por expor a tensão entre a sensibilidade subjetiva (necessária para introjetar os significados da cultura investigada) e a objetividade científica (exigida para legitimar a sua representação acadêmica), convidando-o para um encontro com o “diverso” numa (desejável) perspectiva de inclusão e complementaridade.

PALAVRAS-CHAVE: antropologia; método etnográfico; cientificidade.

ABSTRACT: The objective of this work is, from Malinowski as guiding axis, present anthropology, especially the ethnographic method, mainly questioning alterity and scientific objectivity. Anthropology involves an approximation around the “other” - originally “wild” native communities. It has developed a form of participatory research in which the researcher lived with “his native” in an attempt to better “understand them”. This method, which has come to characterize anthropology itself, caused profound impact, especially for the researcher to move his office. In this context acquired notoriety Malinowski, regarded as its famous founder. This process culminated in his mythologizing, sometimes reinforcing the image of a supposed hero (idealized), sometimes dismissing their concrete contributions. It is intended here to go beyond the myth and the limitations of Malinowski, signaling the historical and collective involved, scoring contributions from other researchers (such as Boas, Mauss and Durkheim) and even revealing an anthropology, an alterity, not always “humanizing”. At present a new “native” emerged, closer, in villages, government offices, classrooms (in ourselves). And the ethnographic method, which incorporated changes, reveals itself as a viable alternative to replace methodologies against massified (predominantly quantitative and abstract), also encourages the researcher to leave behind his “white coat scientistic”, precisely by expose the tension between sensitivity subjective (needed to internalize the meanings of culture investigated) and scientific objectivity (required to legitimize their academic representation), inviting him to a meeting with the “diverse” a (desirable) perspective of inclusion and complementarity.

KEYWORDS: anthropology, ethnographic method, scientific.

INTRODUÇÃO


A antropologia é filha de uma era de violência e se ela se tornou capaz de ter uma visão mais objetiva dos fenômenos humanos do que as precedentes, ela deve esta vantagem epistemológica a um estado de fato em que uma parte da humanidade se outorgou o direito de tratar a outra como objeto (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 62-63).

Malinowski é considerado como um dos principais precursores da antropologia, notadamente o (mito) fundador do método etnográfico. Por outro lado, coleciona críticas: em relação à sua visão funcionalista (considerada uma redundância, já que seria evidente que toda cultura funcionaria para si mesma, em si mesma) e biologista (por representar um determinismo biológico: a cultura como resultado primário de respostas a necessidades humanas básicas, como alimentação, proteção e procriação), bem como em relação às suas pretensões metodológicas e suas ambiciosas insinuações, como pode inicialmente sugerir a questão por ele próprio realizada: “Qual é (...) essa magia do etnógrafo, com a qual ele consegue evocar o verdadeiro espírito dos nativos, numa visão autêntica da vida tribal?” (MALINOWSKI, 1978, p. 20).

Mas nesse caso não houve “magia”. Ou melhor, a “magia” foi outra, mais devida à “visibilidade” dos trabalhos que propriamente à competência. E ainda que na atualidade sejam frequentes as abordagens que rotulam um Malinowski oscilante entre o mito e o dispensável, que enfatizam um ambicioso e idealizado “modo científico” de compreender o “outro”, que realçam uma antropologia de viés romanticamente humanizador, pretende-se desenvolver outros enfoques que, inclusive, possam subverter tais percepções, superando tanto uma postura meramente apologista, como supostamente iconoclasta.

1. ANTROPOLOGIA: UM ENCONTRO COM O “OUTRO” (NOÇÕES E PROBLEMATIZAÇÕES INICIAIS)

Inicialmente entre os séculos XVIII e XIX, os estudos antropológicos voltaram-se para grupos humanos “selvagens”, “exóticos”, distantes geográfica e culturalmente (nativos da Melanésia, Oceania, Ásia, África e América do Sul). Mais que essa “distância”, entretanto, esses estudos viriam a ser caracterizados, essencialmente, por um modo peculiar de observar/investigar, no qual o próprio pesquisador buscaria conviver com os “nativos” (esse “outro”) na tentativa de elaborar uma interpretação e compreensão mais coerente e inteligível possível a seu respeito - uma descrição densa nas palavras de Geertz (2008).

Antropologia é um termo de origem grega: anthropos = homem; logos = estudo, razão, lógica. Ela remete à ideia genérica de “estudo do homem” ou “lógica do homem”. Como ‘ciência do homem’, a Antropologia toma o homem, isto é, o ser humano, no sentido integral de homem e mulher, de coletividade, mas também de espécie da natureza e de ser da cultura e da razão (...)” (GOMES, 2008, p. 13).

A abordagem antropológica tende a considerar as diversas dimensões individual, social, técnica, econômica, política, religiosa, linguística, psicológica, simbólica, etc., em torno do grupo/comunidade que investiga, na tentativa de conhecer e compreender sua diversidade (a própria pluralidade das culturas). Essa abordagem pode privilegiar certos aspectos, caracterizando-se, por exemplo, como social ou cultural. Segundo Lévi-Strauss (2003), “Quer a antropologia se proclame ‘social’ ou ‘cultural’, aspira sempre a conhecer o homem total, encarado, num caso, a partir de suas produções, no outro a partir de suas representações” (destaques originais; ibid., p. 399). A antropologia mantém, ainda, uma sutil interface com a etnografia (“descrição” de povos/culturas) e a etnologia (estudo de povos/culturas). Para indicar delimitações mínimas iniciais, cabe destacar:



Para Lévi-Strauss a etnografia corresponde “aos primeiros estágios da pesquisa: observação e descrição, trabalho de campo”. A etnologia, com relação à etnografia, representaria “um primeiro passo em direção à síntese” e a antropologia “uma segunda e última etapa da síntese, tomando por base as conclusões da etnografia e etnologia” (...). Para Dan Sperber: “Sob o nome de antropologia coabitam, com efeito, duas disciplinas bem diferentes (...): a Etnografia, disciplina interpretativa, viva e agitada, e a Antropologia propriamente dita, que não é nada mais do que uma projecção filosófica, secundada por um projecto científico sempre adiado. A maior parte dos antropólogos são etnógrafos” (...). Como se vê, não é consensual o modo como os diferentes autores definem o que seja a antropologia e a etnografia (...) (destaques originais; SILVA, 2006, p. 121).

A antropologia remete, ainda, à ideia de alteridade, que do latim alter, “outro”, indica relações de contraste, distinção e diferença. Para Abbagnano (2007) alteridade aponta para: ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. Neste sentido de realçada empatia, a alteridade tende à afirmação e ao reconhecimento do outro. Mas esta alteridade, ainda que desejável, é uma entre outras possíveis. É preciso desnaturalizar a impressão “romântica” da alteridade estritamente humanizadora e tolerante, pois ela tende a ocultar o fato de que esse “encontro com o outro” pode se dar de muitas formas e que, aliás, é normalmente marcado por tensões e conflitos (de interesses, relações de domínio, subordinação, exploração, estigmatização, etc.); tende, ainda, a fixar pólos que, na realidade, são móveis nas relações: as alteridades podem levar tanto ao reconhecimento, quanto à exploração (a indiferença e a piedade disfarçadas de tolerância). A antropologia envolve uma (des)construção do “outro”.



A diferenciação é responsável por (re)construir/(re)produzir a alteridade, por definir quem é o “outro”, e torná-lo identificável, (in)visível, previsível (aspas originais; PACHECO, 2007, p. 3). A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas (SILVA, 2009, p.81).

Até o final do século XIX, os estudos antropológicos fundamentavam-se predominantemente em fontes bibliográficas e análises indiretas decorrentes de materiais históricos e arqueológicos; de relatos, informações, descrições e registros de viajantes, missionários, representantes e administradores de governos coloniais. Nessas condições os “povos recém-descobertos” eram vistos basicamente como selvagens, ignorantes, atrasados, “fósseis vivos” do passado. Tais concepções fundamentavam-se, essencialmente, numa lógica evolucionista, etnocêntrica e colonialista.

A ideia básica do evolucionismo consiste em admitir que em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente. Toda a humanidade, portanto, deveria passar pelos mesmos estágios, seguindo uma direção que ia do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado (CASTRO in BOAS, 2007). A noção básica do etnocentrismo, por sua vez, consiste em privilegiar um universo de representações e valores propondo-o como modelo referencial, reduzindo à insignificância os demais universos e culturas “diferentes”, estabelecendo “fronteiras” entre uma cultura hegemônica diante de outras consideradas subalternas. Trata-se de uma violência que, historicamente, não só se concretizou por meio da violência física contida nas diversas formas de colonialismos, mas, sobretudo, disfarçadamente por meio daquilo que Bourdieu denominou “violência simbólica”, que é o “colonialismo cognitivo” na antropologia de De Martino (CARVALHO, 1997). Nas palavras de Martins (2009, p. 11) (...) a fronteira tem um caráter litúrgico e sacrificial, porque nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a existência de quem domina, subjuga, explora.

Foi justamente no contexto das conquistas coloniais do século XIX que a antropologia passou a constituir-se como disciplina. Se, por um lado, não se pode afirmar que a principal atividade da antropologia seja seu caráter aplicativo, por outro, os exemplos históricos demonstram que muitos antropólogos enfatizaram os possíveis usos da antropologia com o objetivo de obter legitimidade e reconhecimento, além de subsídios financeiros. O conhecimento antropológico foi tido muitas vezes, especialmente nos séculos XVIII e XIX, como um instrumento útil, inclusive de valor comercial, na medida em que a “compreensão dos nativos” podia beneficiar comerciantes e administradores coloniais (BARTOLI, 2002; BARBOSA, 2006).

A partir de uma rede de informantes (principalmente por meio de questionários), os “antropólogos” passaram a dispor de um expressivo volume de informações procedentes de diversas partes do mundo. Esses pesquisadores não eram, nesta fase incipiente, antropólogos por formação acadêmica: eram juristas, médicos, geógrafos, etc., ou mesmo pesquisadores sem titulação acadêmica (como é o caso de Edward Burnett Tylor, um dos referenciais da antropologia evolucionista). Foram assim produzidas as primeiras grandes obras da antropologia: em 1871, Edward Burnett Tylor publica A cultura primitiva; em 1877, Lewis Henry Morgan, A sociedade antiga; e, em 1890, James George Frazer, os primeiros volumes da coleção O ramo de ouro.

Essas primeiras obras pretendiam estabelecer um verdadeiro retrato etnográfico da humanidade a partir de uma concepção evolucionista. Nelas o “selvagem” passou a ser tratado como “primitivo”, um ancestral do civilizado destinado à civilização. A colonização atuará nesse sentido, fundamentalmente etnocêntrica.



2. MALINOWSKI: UM NOVO OLHAR SOBRE O “OUTRO”

Bronislaw Kasper Malinowski (1884-1942), nascido na Cracóvia, Polônia, inicialmente doutorou-se em Física e Matemática; posteriormente, naturalizou-se cidadão britânico, voltou-se para a Antropologia e se tornou um dos grandes nomes dessa área.

Em 1922 Malinowski publicou os Argonautas do pacífico ocidental, obra que o tornaria um dos protagonistas da antropologia (em sua fase incipiente), em especial do método etnográfico. Neste trabalho Malinowski retratou, a partir de sua experiência vivida, sua convivência com nativos das Ilhas Trobriand, uma população de aproximadamente 1200 melanésios da costa nordeste da Nova Guiné. Desenvolveu um estudo detalhado em torno da organização social, da mentalidade, das crenças, dos costumes e comportamentos dos nativos daquelas comunidades.

Malinowski propôs um modo de investigar, interpretar e explicar os costumes e as crenças dos povos primitivos, com o qual o comportamento nativo surgia como ação coerente e integrada à sua própria cultura - não mais comparada à outra (admitida como evoluída e civilizada). Esse tratamento constituiu o que se convencionou denominar de funcionalismo cultural: os indivíduos teriam certas necessidades (alimentação, proteção, procriação, etc.) e cada cultura teria precisamente a função de satisfazê-las à sua maneira.

Na introdução d’Os Argonautas, Malinowski destacou os aspectos que caracterizaram sua metodologia. Em síntese, o pesquisador deveria: (1) ter objetivos genuinamente científicos e conhecer os valores e critérios da etnografia moderna; (2) adotar a observação direta/participativa: conviver com os nativos em seu cotidiano, falar sua língua, buscar apreender suas percepções, pensamentos, sentimentos, emoções – os imponderáveis da vida real; e (3) documentar a mentalidade nativa (coleção de narrativas típicas, palavras características, elementos folclóricos e rituais).

Para Malinowski (1978), “genuinamente científico” indicaria, fundamentalmente, o empenho na busca de uma “visão objetiva e científica da realidade” com base em observações diretas, sistemáticas e metódicas, em contraposição às “conjecturas” (especulações) decorrentes de informações indiretas e carregadas de preconceitos sedimentados. Por outro lado, os “critérios da etnografia moderna” privilegiariam, essencialmente, a observação direta e o reconhecimento do “nativo” a partir de sua própria cultura. Já os “imponderáveis” corresponderiam aos estados subjetivos/psicológicos (impulsos, desejos, sentimentos, crenças, valores etc.) que permeariam os comportamentos e as atitudes dos nativos; refletiriam uma rotina estabelecida pelo costume e pela tradição, mas não poderiam ser apreendidos apenas por meio (indireto) de informantes, questionários ou registros estatísticos: exigiriam sua observação direta pelo próprio pesquisador, em plena realidade, no momento em que ocorressem.

Mas isso seria possível? Não seria pretencioso demais?

Segundo Malinowski,



(...) ideias, sentimentos e impulsos são moldados e condicionados pela cultura em que os encontramos e são, portanto, uma peculiaridade étnica da sociedade em questão. Deve-se, portanto, empenhar em seu estudo e registro. Mas é isso possível? Todos esses estados subjetivos não serão demasiadamente elusivos e informes? (...) entrarei diretamente na questão de como resolver de maneira prática, algumas das dificuldades relacionadas à questão. Em primeiro lugar, devemos partir do fato de que o objetivo de nosso estudo são os modos estereotipados de pensar e sentir. Enquanto sociólogos, não nos interessamos pelo que A ou B possam sentir como indivíduos (...) interessamo-nos, sim, apenas por aquilo que eles sentem e pensam enquanto membros de uma dada comunidade (ibid., p. 32).

Ainda de acordo com Malinowski (1978), para que um trabalho etnográfico pudesse sustentar conclusões confiáveis, seria necessário um esforço na aplicação sistemática de princípios científicos: a busca paciente e metódica de uma visão coerente e objetiva da realidade, sem preconceitos ou opiniões sedimentadas, além de referenciada em estudos já realizados, próprios e de outros pesquisadores. Um trabalho etnográfico teria valor científico se revelasse quais experiências concretas teriam conduzido às formulações gerais elaboradas. Seu objetivo fundamental seria estabelecer um contorno consistente e nítido das constituições do grupo e delinear padrões e regularidades dos fenômenos culturais relevantes.

A abordagem de Malinowski provocou profundo impacto na antropologia. A habitual divisão de tarefas entre observador (usualmente viajantes, missionários, administradores coloniais - tomados como meros provedores de informações) e pesquisador (“intelectual” - que em seu gabinete recebia, analisava e interpretava essas informações) modificou-se; o pesquisador passou a deixar o seu “gabinete” para, ele próprio, sem intermediários, estar entre os nativos, vivendo seu modo de vida, falando sua língua, buscando apreender suas próprias percepções, não mais como (suposta) autoridade que questiona, mas como hóspede que aprende - trata-se da observação participante. Houve, do mesmo modo, uma ruptura com a história conjectural (a reconstituição especulativa dos estágios evolutivos) e a geografia especulativa (a teoria difusionista, que admitia a existência de centros de difusão de cultura). Para Malinowski uma sociedade deveria ser estudada enquanto uma totalidade em si mesma, para si mesma, tal como funciona no momento em que é observada, vivenciada pelo pesquisador.

3. A DESCONSTRUÇÃO DO MITO

Pouco tempo após a sua publicação, a obra Os Argonautas adquiriu lugar de destaque: “(...) passou a ter lugar paradigmático na antropologia, alçada ora a marco de uma verdadeira revolução nos referenciais teóricos e nos objetivos gerais da disciplina, ora a padrão original e exemplar em termos metodológicos” (GIUMBELLI, 2002, p. 91). As percepções em torno de Malinowski levaram-no, então, a ser “mitificado por haver introduzido [na antropologia] a pesquisa de campo intensiva” (PEIRANO, 1990, p. 3).



Malinowski (...) é considerado referência obrigatória em se tratando do “modo padrão da pesquisa etnográfica” (Kuper, 1996); aquele que estabeleceu a “estratégia básica que é fundamento comum entre antropólogos” (Salzman, 1996, p.364). Ele é o “etnógrafo do etnógrafo”, protagonista da “viagem paradigma para o outro-lugar-qualquer paradigma” (Geertz, 1988: pp. 4 e 75). É o “herói” de um mito, o “trabalho de campo”, e o capítulo de abertura dos Argonautas, espécie de “mapa” ou “roteiro” míticos para os antropólogos (...) (destaques originais; GIUMBELLI, 2002, p. 92).

O que teria levado Malinowski a tornar-se um mito na antropologia? A inauguração de um “modo científico” de compreender os “selvagens”? A consistência e o alcance teórico de suas formulações? Enfim, nas pretenciosas palavras do próprio Malinowski: “Qual é (...) essa magia do etnógrafo, com a qual ele consegue evocar o verdadeiro espírito dos nativos, numa visão autêntica da vida tribal?” (MALINOWSKI, 1978, p. 20) – se é que isso seja possível.

A intenção, aqui, é indicar que nesse caso não há “magia”, ou melhor, que a “magia” é outra (mais devida à “visibilidade” do que propriamente à competência); que o próprio Malinowski não é inteiramente dispensável, nem tampouco o seu mito é tão real; que, sobretudo, é necessário ir além do mito e das limitações de Malinowski.

3.1. AS INSUFICIÊNCIAS MAIS EVIDENTES

O enfoque sobre aspectos individuais e subjetivos, especialmente sobre a carga afetiva contida nas ações humanas (motivações, desejos, sentimentos, etc. – os “imponderáveis”), caracterizou o “psicologismo” criticado em Malinowski. Apesar de envolver simultaneamente relações sociais, elementos materiais e simbólicos, a sua concepção de cultura estava atrelada à ideia de satisfação de necessidades humanas básicas (nutrição, procriação, proteção, etc.) e derivadas (manutenção, reprodução e transmissão do próprio equipamento cultural). Embora Malinowski não ignorar os aspectos simbólicos (ou propriamente psicológicos), suas expressões diluíam-se no psicologismo e finalismo biológico do modelo funcionalista: “Embora cobertos por um verniz de emoção e misticismo, a magia o mito e o ritual, na visão de Malinowski, são, todas elas, atividades instrumentais na base” (GEERTZ, 2004, p. 100).

Outra insuficiência de Malinowski foi sua percepção predominantemente harmônica em torno das instituições sociais (condutas suficientemente recorrentes, “normas” que regulam as “ações sociais e que representam um padrão de controle, uma programação da conduta individual “imposta” pela sociedade - ABBAGNANO, 2007; BERGER E BERGER in FORACCHI e MARTINS, 2006). Sua compreensão naturalista tomava a comunidade como uma totalidade cultural integrada, fixada em seu presente, deslocada de seu contexto histórico, de modo que suas instituições satisfariam todas as suas necessidades dentro dos seus limites locais: toda sociedade seria tão boa quanto pudesse ser. Essa visão marcadamente otimista e harmônica confrontou-se com uma grande dificuldade: como explicar os problemas, os conflitos e as transformações sociais?

Malinowski, baseando-se no modelo do finalismo biológico, estabelece generalizações sistemáticas (...). Além disso, esse funcionalismo (...) [ignora] (...) a realidade da situação colonial dos anos 20 (...), totalmente ocultada. A antropologia vitoriana era a justificação do período da conquista colonial. O discurso monográfico e a-histórico do funcionalismo passa a ser a justificação de uma nova fase do colonialismo (LAPLANTINE, 2007, p. 83-84).

3.2. AS REVELAÇÕES (PÓSTUMAS) DE UM DIÁRIO

A publicação póstuma do diário íntimo de Malinowski, Um diário no sentido estrito do termo, em 1967, redigido durante seus trabalhos de campo nas Ilhas Trobriand, provocou polêmica e controvérsia.

Segundo Durham (in MALINOWSKI, 1978), muito discutível teria sido a utilidade e o interesse em torno de sua publicação - Malinowski não teria pretensão de publicá-lo. De pouco valor científico ou literário, teria apenas demonstrado sua constante preocupação com a saúde (que não seria sem motivo), e as frequentes crises de angústia, mau humor e hostilidade em relação aos nativos.

Weber (2009), por sua vez, considerou que o diário retrataria um conjunto disseminado de notas heterogêneas, cuja publicação produziria uma ficção fantasiosa de um narrador-etnógrafo: registros episódicos, isolados e pontuais, poderiam conduzir a interpretações descontextualizadas e gerar constrangimentos. Censurar a publicação permitiria não censurar a escrita. Os materiais censurados não seriam da ordem do íntimo, mas da ordem do não (ainda) inteligível.

É Geertz (1997), no entanto, quem trata o caso de modo a destacar aspectos reveladores. Segundo ele, Malinowski, postumamente, por decisão de sua viúva, teria revelado a verdade em público. Um pequeno escândalo na antropologia que, não apenas teria conduzido alguns conservadores do meio a acusarem a viúva (também antropóloga) de traição em relação ao “clã” (por ter divulgado um segredo, “profanando um ídolo”), como também levado à decepção alguns (ou muitos) de seus adeptos. As atenções, concentradas em detalhes secundários, em particularidades do caráter e da (in)tolerância de Malinowski, teriam ignorado a principal questão:

O mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo, foi, de um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez, um dos maiores responsáveis pela sua criação (ibid., p. 85). (...) [Mas] baixou-se o nível do debate, concentrando-o no caráter - ou na falta de caráter – de Malinowski, e ignorando a questão profunda e genuinamente importante que o livro havia levantado, isto é, se não é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária, a uma capacidade quase sobrenatural de pensar, sentir, e perceber o mundo como um nativo (...) como é possível que antropólogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa, sente e percebe o mundo? A questão que o diário introduz (...) não é uma questão ética (...) é epistemológica (ibid., p. 86).

4. PARA ALÉM DO MITO E DAS LIMITAÇÕES DE MALINOWKI

As insuficiências de Malinowski, tomadas numa perspectiva isolada, descontextualizada, tornam suas contribuições (minimizadas) praticamente inexpressivas, inteiramente absorvidas por suas limitações (realçadas), além de causarem a impressão de que seus trabalhos teriam sido inócuos. Torna-se indispensável, portanto, situá-lo historicamente, contextualizá-lo perante contribuições de outros pesquisadores, considerar as críticas em torno de seu trabalho, as limitações e os alcances de suas abordagens.



A obra de Malinowski move-se dentro de uma contradição: à enorme riqueza, vivacidade e complexidade da descrição etnográfica opõe-se o simplismo de certas concepções teóricas que facilita a crítica destrutiva e concorre para encobrir a importância real de sua contribuição à Antropologia (...) (DURHAM, 1986, p. 7).

4.1. A OBRA ISOLADA DE UM MITO OU UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA?

Assim como Malinowski foi mitificado, a própria pesquisa de campo foi “sacralizada” - a ponto do método etnográfico ser tomado como seu sinônimo (GIUMBELLI, 2002). Mas Malinowski não foi o único a defender a necessidade do trabalho de campo. Neste sentido podem ser citados os trabalhos de Franz Boas (1858-1942), dos integrantes da Expedição ao Estreito de Torres e, inclusive, os de Morgan - evolucionista já citado, conhecido por seu apego ao trabalho de gabinete (SILVA, 2006). O movimento de estranhar-se em si mesmo e familiarizar-se com o outro (princípios básicos da observação participante ou do trabalho de campo antropológico) foi desde, pelo menos, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), anunciado como inerente à produção de conhecimento sobre o homem, realizado pelo próprio homem: nas ciências humanas, observador e observado, ou “sujeitos” e “objetos” do conhecimento, são da mesma natureza (LÉVI-STRAUSS, 1993).

Em Os nativos da Austrália Central, de 1899, Spencer e Gillian já adotavam um estilo reconhecidamente moderno de etnografia – antes mesmo de Malinowski. Frazer, típico antropólogo de gabinete, avesso aos “selvagens”, estimulava a pesquisa de campo entre os mais jovens. Seligman, no pré-guerra, já afirmava que a pesquisa de campo era para a antropologia “o que o sangue dos mártires era para a igreja católica”. Da “etnografia de varanda” à “pesquisa intensiva” de Radcliffe-Brown, ao “método concreto” de Rivers, a ideia do trabalho de campo já estava bem estabelecida antes de 1914. Nesta época vários antropólogos haviam deixado as universidades inglesas para passar de um a dois anos no campo (Radcliffe-Brown, Diamond Jennes, Gunnar Landtman, Rafael Karsten, Bárbara Freire-Marreco, Marie Czaplicka, John Layard); Malinowski teria sido o último a ir a campo (PEIRANO, 2006).

É importante mencionar também, ainda que superficialmente, Émile Durkheim (1858-1917) e Marcel Mauss (1872-1950), que destacaram-se por desenvolver sistematizações teóricas de expressiva consistência. A partir do conceito de “fato social” (uma espécie de “representação coletiva”, externa ao indivíduo, objetiva e coercitiva), Durkheim sustentava que a causa determinante do fato social deveria ser buscada entre os próprios fatos sociais antecedentes, e não entre os estados da consciência individual (DURKHEIM, 2007). Sem ignorar as dimensões simbólicas e psicológicas envolvidas, privilegiando aspectos objetivos e quantitativos, Durkheim subordinou o individual ao social. Mauss (2003), por outro lado, propôs uma abordagem em termos de “fato social total”, considerando simultaneamente aspectos sociais, quantitativos, materiais, corporais, biológicos, fisiológicos e psicológicos, numa perspectiva de interação. Inicialmente a partir de uma abordagem semelhante a de Durkheim, a reflexão de Mauss culminou em uma posição bastante distinta: distanciou-se da abordagem sociológica durkheimiana (mais distanciada, com ênfase no fato social e em aspectos quantitativos) e aproximou-se da prática etnográfica (LAPLANTINE, 2007).



4.2. COMPETÊNCIA OU VISIBILIDADE?

Segundo Peirano (1990), a obra de Malinowski tornou-se clássica especialmente por seu caráter exemplar de descoberta antropológica, e não propriamente pela consistência de suas propostas (muitas consideradas ultrapassadas).

Durham (in MALINOWSKI, 1978) salienta que os trabalhos mais populares de toda a obra de Malinowski não seriam aqueles associados ao tema metodológico propriamente dito, mas aqueles referentes à vida sexual e à família dos aborígines da Melanésia. Neste sentido, Giumbelli (2002, p. 100) destaca que “Leach (...) [atribuiu] parte da popularidade de Malinowski, para além dos círculos antropológicos, aos seus investimentos intelectuais sobre a vida sexual dos trobriandeses (1966)”. Os trobriandeses negavam a paternidade biológica: as mulheres procriariam independentemente de relações sexuais - tais características não poderiam deixar de atrair um público muito mais amplo que o círculo restrito dos antropólogos. O impacto e o fascínio que seus trabalhos teriam provocado (tanto em especialistas como em leigos), refletiriam a capacidade de Malinowski retratar - conciliando um estilo de escrever sensível e humano com uma “proposta científica” - o funcionamento de uma sociedade matrilinear, oposta à sociedade ocidental do período, por meio de abordagens explícitas sobre a vida sexual, numa época ainda marcada pelo puritanismo da sociedade inglesa. Tais características, nesse contexto, contribuíram para o impacto e a visibilidade de sua obra.

Essa capacidade de Malinowski, porém, foi ironizada por Geertz (2009): páginas e páginas de descrição para, oscilando entre a imagem de um peregrino (aventureiro e humano) e de um cartógrafo (objetivo e “científico”), ressaltou “aqui”, as impressões de “lá”. Mas teria sido justamente essa estratégia que, segundo o próprio Geertz, teria possibilitado a “aparência de verdade” à etnografia (não teria sido a consistência teórica, nem mesmo a extensão dos fatos sistematizados). Geertz prossegue:



(...) a voz de Malinowski, do túmulo [com a publicação de seu diário], apenas dramatizou a questão (...) [epistemológica da tensão entre o “científico” e o subjetivo - indicada anteriormente] (GEERTZ, 2001, p. 86). A verdadeira questão – a que Malinowski levantou ao demonstrar que, no caso de “nativos”, não é necessário ser um deles para conhecer um – relaciona-se com os papéis que [a “distância” e a “proximidade” do observador] (...) desempenham na análise antropológica. (...) como devem (...) ser empregados, em cada caso, para produzir uma interpretação do modus vivendi de um povo que não fique limitada pelos horizontes mentais daquele povo – uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa – nem que fique sistematicamente surda às tonalidades de sua existência – uma etnografia sobre bruxaria escrita por um geômetra (destaques originais; ibid., p. 88). [Malinowski, oscilando entre um “cartógrafo” e um “peregrino”] (...) ao mesmo tempo projetou (...) uma modalidade de pesquisa que, pelo menos em seus limites, praticamente apaga ou diz apagar a distância efetiva entre o observador [“daqui”] e o observado [“de lá”], e um estilo de análise (...) que, em seus limites, torna ou alega tornar quase absoluta essa distância (GEERTZ, 2009, p. 111).

É interessante contrapor, aqui, o caso de Franz Boas (1858-1942) que, apesar de suas significativas contribuições à antropologia (inclusive considerado por Lévi-Strauss (1993) como o “mestre de obra” da antropologia, senão o seu próprio fundador), não se caracterizou como propriamente um teórico e foi praticamente desconhecido fora do círculo dos antropólogos. Voltado para os estudos de campo, seus textos produzidos privilegiavam rigor e concisão - características bastante distintas do “estilo romântico” de Malinowski (Laplantine, 2007).



4.3. O “DISCURSO CIENTÍFICO” E SUA TENSÃO COM O “DISCURSO SUBJETIVO”

Malinowski buscou uma visão objetiva e científica ao sustentar que “(...) não resta dúvida de que a subjetividade do observador interfere (...). Porém, mesmo nesse particular, devemos empenharmos no sentido de deixar que os fatos falem por si mesmos” (MALINOWSKI, 1978, p. 31), Malinowski realça a objetividade pretendida. Note-se, porém, que enfatizou a importância da objetividade justamente por assumir, mas não excluir, a dimensão subjetiva envolvida. Silva (2006) não só destaca este aspecto, como aponta para as possíveis razões dessa tendência (de realçar a “objetividade”):

Mesmo que os antropólogos estejam conscientes de que os fatos não falam por si mesmos, conforme defendeu Malinowski, as etnografias pretendem que os documentos apresentados, as descrições, possam ser referidos como ‘fatos brutos’, não contaminados pelo uso interpretativo que se quer fazer deles” (destaques originais; ibid., p. 121-122).

O antropólogo é submetido a uma “tensão” entre a sensibilidade para introjetar em si mesmo os significados da cultura que investiga, e a objetividade científica para legitimar sua representação acadêmica. A dificuldade está em construir textos ostensivamente científicos a partir de experiências em grande parte biográficas. A questão da “assinatura” do autor, isto é, de interpretar e construir sentidos, tal como o etnógrafo a confronta, ou tal como ela confronta o etnógrafo, exige a “mecânica” do “físico não-autoral” e a consciência soberana do “romancista hiper-autoral”, sem de fato permitir nenhum dos dois. O primeiro suscita acusações de insensibilidade, de tratar as pessoas como objetos, de ouvir a letra, mas não a música, e, claro, de etnocentrismo. O segundo, acusações de impressionismo, de tratar as pessoas como fantoches, de ouvir uma música que não existe e, é claro, de etnocentrismo (GEERTZ, 2009).

(...) o Estar lá é uma experiência de cartão postal (‘Fui a Katmandu; você já esteve lá?’). Mas é o Estar Aqui, como um estudioso entre estudiosos, que faz com que o texto antropológico de alguém seja lido... publicado, criticado, citado e ensinado” (ibid., 2009, p. 170).

Malinowski não sustentou que a realidade do nativo seria traduzida de modo estritamente objetivo, através de sua mera observação direta e precisa descrição. Pelo contrário, considerou a necessidade de inferências e interpretações. Ele próprio esclarece:



Sem interpretação, todo o trabalho de campo científico degenerará num mero “coleccionar” de dados; quando muito, poderá dar retalhos sem qualquer ligação entre si. Mas nunca porá a nu a estrutura sociológica de um povo ou apresentará um relato organizado das suas crenças, ou transmitirá a imagem do mundo na perspectiva do nativo. A natureza frequentemente fragmentária, incoerente e desorganizada de grande parte do actual material etnológico deve-se ao culto do “facto puro”. Como se fosse possível embrulhar numa trouxa um determinado número de “factos tal como são encontrados” e trazê-los para, no seu país, o estudante sobre eles generalizar (...) construções teóricas. (...) nesta forma crua, não constituem factos científicos; são absolutamente enganadores e só se podem determinar por interpretação (...) detectando o que neles há de essencial e fixando-o (destaques originais; MALINOWSKI, 1984, p. 255-256). (...) um trabalho etnográfico só terá valor científico (...) se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta (...) e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica (destaques originais; MALINOWSKI, 1978, p. 18).

Fonseca (1999) destaca, inclusive, que a introjeção da reflexividade, da dimensão subjetiva/interpretativa na escrita acadêmica, não retrata uma ruptura epistemológica recente, pós-moderna, mas antes reflete uma tradição antropológica desde Malinowski. Geertz (2009) vai além: admite que essa seja - talvez - a maior contribuição de Malinowski às ciências humanas (mesmo antes das revelações de seu “diário íntimo” - que viriam expor de modo radical a problemática dessa dimensão: a tensão entre subjetividade e objetividade, entre “discurso literário” e “discurso científico”):



(...) mais do que qualquer etnógrafo que o precedeu e do que a maioria dos que o sucederam, ele [Malinowski] está constantemente ciente, e nos conscientiza constantemente, de quão difícil e quão pouco mapeada é a passagem entre perambular com o selvagem (...) em meio às trepadeiras e corais de uma lavoura rústica de inhames, e registrar uma realidade social (...) em parágrafos atemporais. “Na Etnografia” escreve ele em Os Argonautas (...) “é enorme a distância entre o material bruto (...), tal como se apresenta (...) e a apresentação final dos resultados” (...). Essa percepção, que não concerne à técnica de campo nem à teoria social, nem tampouco a esse objeto santificado que é a “realidade social”, mas ao “problema do discurso” na antropologia (...) talvez seja o legado malinowskiano de maior vulto. Certamente revelou-se o mais perturbador. Isso porque, muito antes de existir o Diário para dramatizar esse fato para os desatentos, Malinowski já formulou a questão do “Estar lá” em sua forma mais radical, se não necessariamente a mais produtiva (aspas originais; ibid., p. 111).

4.4. UMA POSIÇÃO “CIENTIFICISTA” OU UMA POSTURA CIENTÍFICA INCLUSIVA?

Gostaria de dizer inicialmente que a abordagem científica não é de modo claro, o único interesse ou inspiração no domínio do humanismo. (...) A ciência, contudo, como um instrumento pelo menos, como um meio para um fim, é indispensável (MALINOWSKI, 1970, p. 18).

O posicionamento cientificista deriva do positivismo, que adota o conhecimento científico como o único conhecimento adequado. Trata-se de uma concepção deformada da ciência, da cientificidade, e que consiste em tomá-la como sistema fechado, definitivo e suficiente. Por sua vez, o positivismo, concepção ocidental de ampla influência originalmente associada ao nome de Augusto Comte (1798-1857), privilegia o fato positivo, isto é, o fato objetivo, que pode ser medido e controlado pela experimentação através do método científico. Essa concepção tende a opor radicalmente o mito à razão, a sensibilidade ao conhecimento, a criatividade ao método, inferiorizando outras formas e modos de conhecer. O positivismo mostra-se reducionista, empobrecendo as possibilidades de abordagens do mundo abertas ao homem: a ciência é necessária, mas não a única interpretação válida e autossuficiente do real. Quando exaltada, faz nascer o mito do cientificismo: a crença na ciência como única forma legítima e verdadeira de saber possível. Produz, ainda, outros mitos igualmente prejudiciais, como o do progresso e o da objetividade e neutralidade científicas (ARANHA e MARTINS, 1993).

Malinowski empenhou-se na busca de uma visão científica e objetiva da realidade. Esse empenho, sob certas abordagens, pode causar a impressão de traços cientificistas. No entanto, sua busca não se reduziu a uma pretensão de objetividade cartesiana em torno de fatos e registros. Pelo contrário, assumiu os aspectos subjetivos e interpretativos envolvidos (já mencionados anteriormente).

Por outro lado, para contrastar e exemplificar uma postura, esta sim, de objetividade e rigor cartesianos, assumidamente positivista, pode ser citado Émile Durkheim (1858-1917):

Zombamos hoje dos singulares raciocínios que os médicos da Idade Média construíam (...) e não nos apercebemos que continuamos a aplicar esse mesmo método (...). É preciso que (...) [a sociologia] passe do estágio subjetivo (...) à fase objetiva” (DURKHEIM, 2007, p. 23). “Uma das bases da objetividade de uma ciência da sociedade teria que ser, necessariamente, a disposição do cientista social a colocar-se ‘num estado (...) semelhante ao dos físicos, químicos e fisiologistas (...) adotando, enfim, a prática cartesiana (...)” (destaques originais; QUINTANEIRO et al., 2002, p. 74-75). “(...) a (...) única [denominação] que aceitamos é a de racionalista. Nosso principal objetivo (...) é estender à conduta humana o racionalismo científico (...). O que chamamos nosso positivismo não é senão uma consequência desse racionalismo” (DURKHEIM, 2007, p. XIV).
A Revolução Científica do século XVII, especialmente a partir do método científico (da experimentação controlada, objetiva, mensurável, precisa, demonstrável – e supostamente infalível), estabeleceu uma nova ciência, a ciência moderna. Sua metodologia, porém, parecia não se ajustar às ciências sociais, cuja subjetividade parecia confrontar a objetividade dos fatos e das leis das ciências naturais, especialmente da Física e da Química. Nesse contexto Durkheim, por meio de uma objetividade cartesiana (racionalista e quantitativa), transpondo e incorporando o método científico (objetivando o fato social como “coisa” e estabelecendo relações de causa-efeito, além de abordagens quantitativas), possibilitou um status científico às ciências sociais, especialmente à sociologia (destacando o social). Por outro lado, Malinowski a partir de uma objetividade não-exclusiva e aplicando a observação participante (que caracterizou o método etnográfico), também possibilitou um status científico às ciências sociais, mas especialmente à antropologia (destacando o cultural a partir da etnografia).

De qualquer modo, as particularidades de Durkheim, assim como aquelas de Malinowski, não o impediram de contribuir expressivamente para as ciências sociais. E mais:

Não perturba nossa apropriação contínua de suas lições sobre a natureza da sociedade saber que (...) [Durkheim] podia ter uma personalidade considerada questionável na época – um autoproclamado guardião da verdade, com características dominadoras e tirânicas, e um adepto virtuoso do sistema de patronagem (...)” (PEIRANO, 2006, p. 95).
5. PARA ALÉM DO MÉTODO

As atuais etnografias não são réplicas daquela de Malinowski; não são apenas produzidas por “homens brancos” que desembarcam em praias tropicais ou descobrem aldeias isoladas. Ao lado das praias, aldeias e povoados da antiga antropologia, estudam-se também a cidade, seus grupos, seus bairros, seus habitantes e seus estilos de vida, entre outros temas (SILVA, 2006): “(...) por etapas, os nativos deixaram de ser apenas os ‘primitivos’ e se transformaram nos ‘outros’, sucessivamente remotos no espaço, remotos no tempo, menos remotos na mesma sociedade, até a conclusão recente de que ‘agora somos todos nativos’, de Geertz (...)” (destaques originais; PEIRANO, 1990, p. 7). Cada vez mais a etnografia vem se consolidando como uma atividade acadêmico-profissional.

Fonseca (1999), sob a perspectiva da dinâmica do diálogo/comunicação entre agente e interlocutores, destaca o método etnográfico como um instrumento acessível e capaz de enriquecer a atuação, seja de um professor, de um enfermeiro, de um assistente social, dentre outros profissionais. Reconhece que muitos têm buscado no método etnográfico uma alternativa frente às explicações massificantes, predominantemente quantitativas e abstratas. Por outro lado, aponta em torno dessa busca, distorções e equívocos teórico-metodológicos: aqueles que tendem ora a isolar o sujeito de seu contexto (“sacralizando” o indivíduo), ora a torná-lo objeto dos processos coletivos (“reificando o social”, reduzindo-o à “coisa”), além daqueles em torno da subjetividade (a abstração generalista, à subjetividade confessional ou à reflexividade metacientífica) e da própria alteridade.

Lembro-me de uma dissertação em particular na qual (...) depois de mais de cem páginas discorrendo sobre a reflexividade no método etnográfico [na qual a subjetividade do autor/pesquisador é assumida como um componente essencial da análise] (...) não aprendemos muito quanto à subjetividade dos indivíduos envolvidos – nem da pesquisada nem do pesquisador. (...) Páginas e páginas de uma discussão sumamente sofisticada sobre a subjetividade como novo paradigma de pensamento científico para chegar a essa “pesquisa de campo”... na qual o pesquisador parece se esconder mais do que nunca atrás do avental branco do cientificismo. (...) Nesta dissertação, a reflexividade parece materializar-se apenas no modo confessional (...) (FONSECA, 1999, 61-62).

Fonseca (1999) exemplifica um caso no qual os sujeitos foram tratados em termos tão gerais e descontextualizados (seres abstrato-genéricos, a-históricos, sem residência, profissão, renda, preferências, etc.), que impediu, com base nos dados obtidos, qualquer conclusão consistente. Em nome de uma suposta preservação da identidade dos envolvidos, de uma suposta neutralidade, de um suposto não-envolvimento de sua parte, o pesquisador não reconhece sua subjetividade como elemento do processo e parece esconder-se atrás do “avental branco do cientificismo”. Contrapõe, então, o exemplo de Sidney Mintz, que desenvolvendo sua análise em torno da história de vida de um só porto-riquenho (a representatividade na antropologia não se reduziria a aspectos quantitativos), soube fazer falar a vida de seu protagonista, sujeita às mesmas influências históricas de toda uma geração de “operários de cana”, sem que este deixasse de ser um indivíduo singular. Destaca, ainda, que Gilberto Velho, mesmo com sujeitos de seu próprio meio, não foi impedido de caracterizar aquelas pessoas. Com um olhar comparativo, mediante vastas pesquisas bibliográficas, ele conseguiu distanciar-se de seu próprio universo para (re)constituí-lo em termos sociológicos e culturais.

A autora sublinha, enfim, o método etnográfico como um modo de conduzir e pensar a interação entre sujeitos capaz de “abrir o leque de interpretações” e compreensões possíveis, não como um “receituário teórico” para “fechar o assunto ou criar novas fórmulas dogmáticas”. Embora não seja recomendado para qualquer situação e ainda que não possa ser aplicado integralmente, o método etnográfico pode ser utilizado de forma competente; os interessados podem.

(...) tomar de empréstimo alguns dos [seus] elementos (...) – o estranhamento, a esquematização, a desconstrução de estereótipos e a comparação sistemática entre casos para chegar a novas maneiras de compreender seus ‘clientes’ e interagir de forma criativa com eles” (destaques originais; FONSECA, 1999, p. 76). “O ponto de partida desse método é a interação entre o pesquisador e seus objetos de estudo (...). É, de certa forma, o protótipo do ‘qualitativo’. E – melhor ainda – com sua ênfase no cotidiano e no subjetivo, parece uma técnica ao alcance de praticamente todo mundo, uma técnica investigativa, enfim, inteligível para combater os males da quantificação” (destaques originais; ibid., p. 58).

Em Para além do trabalho de campo: reflexões supostamente malinowskianas, Giumbelli (2002) questiona se seria possível uma Antropologia sem trabalho de campo. Admite que sim, a considerar o volume e a variedade de pesquisas conduzidas no âmbito de espaços e instituições referidos à antropologia que utilizam técnicas distintas da observação participante. Desenvolve, a partir daí, uma expressiva abordagem que tende a conceber a antropologia e o trabalho de campo sob uma relação que não exclui outras possibilidades metodológicas - justamente através de uma “nova leitura” do próprio Malinowski.

Giumbelli (2002) destaca que, em termos históricos, a Antropologia também se desenvolveu a partir de intelectuais que realizaram pouco ou nenhum trabalho de campo, como Marcel Mauss e Lévi-Strauss; que o próprio trabalho de campo não surgiu exclusivamente no contexto da antropologia. Ressalta, ainda, que Malinowski em sua pesquisa entre os trobriandeses utilizou diversas técnicas ou abordagens: algumas mais derivadas da mensuração, como recenseamentos e mapeamentos; outras que contavam com a utilização de questionamentos diretos, às vezes com informantes privilegiados, algo que pode não estar muito distante da entrevista; outras, ainda, que anteciparam o método da história de caso. Giumbelli aponta, também, a possibilidade de que o trabalho de campo acabe, ainda, por subsumir (ao invés de traduzir) um conjunto geralmente plural de técnicas e abordagens, sobrevalorizando a observação participante: “Uma certa sacralização do trabalho de campo obstacularizou (...) a discussão sobre as técnicas de pesquisa que efetivamente se combinavam na prática etnográfica dos antropólogos” (ibid., p. 103). Acentua que não se trata de dissolver ou de invalidar o trabalho de campo, e sim de conceber a investigação etnográfica de forma não-restritiva, na qual o próprio trabalho de campo possa envolver diversas técnicas que não se contrapõem, mas se complementam na busca dos objetivos estabelecidos.

6. PARA ALÉM DE MALINOWSKI - UMA VISÃO PANORÂMICA (E PROVISÓRIA) DA ANTROPOLOGIA

(...) a antropologia não pode permanecer indiferente aos processos históricos e às expressões conscientes dos fenômenos sociais. (...) Neste sentido, a célebre fórmula de Marx “Os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem” justifica, em seu primeiro termo, a história, e em seu segundo termo, a etnologia. Ao mesmo tempo, ela mostra que os dois procedimentos são indissociáveis (destaques originais; LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 39).

A antropologia nasceu de uma evolução histórica durante a qual a maior parte da humanidade foi escravizada pela outra, e onde milhões de vítimas inocentes viram usurpados os seus recursos, suas crenças, e suas instituições destruídas antes de serem elas mesmas massacradas, reduzidas à servidão, ou contaminadas por doenças contra as quais o seu organismo não oferecia defesa.

Após o humanismo aristocrático da Renascença e o humanismo burguês do século XIX, inspirando-se nas sociedades mais humildes e desprezadas, reconhecendo que nada de humano poderia ser estranho ao homem, a antropologia tende a um humanismo mais democrático, diferente daqueles anteriores: criados para privilegiados, a partir de civilizações privilegiadas. Abrindo-se à possibilidade de ser praticada pelos próprios membros da cultura que estuda, a antropologia tende a superar a sua característica típica, inicial (a antropologia como ciência da cultura vista de fora), enquanto povos que conquistam sua independência e tomam consciência de sua originalidade passam a estudar sua cultura por si mesmos (isto é, de dentro). Assim, mobilizando métodos e técnicas de todas as ciências, a antropologia busca a reconciliação do homem e da natureza num humanismo generalizado (LÉVI-STRAUSS, 1993).

Como Lévi-Strauss (1993; 2003) indica, a antropologia não persegue a reconstituição exata do que se passa na sociedade estudada: o melhor estudo etnográfico não transforma o leitor em indígena; a Revolução Francesa vivida por um aristocrata não é a mesma Revolução Francesa vivida por um sans-culotte (“sem calção”: denominação dada pelos aristocratas aos militantes da revolução que, ao invés de calções, culottes, usavam calças compridas) e nenhuma delas poderia corresponder à Revolução Francesa pensada por um Jules Michelet ou por um Hippolyte Taine - historiadores contemporâneos da época. Assim, a função das ciências humanas estaria situada entre a explicação e a previsão: não explicariam nunca - ou raramente - até o fim; nem seriam capazes de prever com segurança. Mas isto não as tornaria inúteis: mesmo explicando parte do problema e prevendo de forma muito aproximada, permitiriam agir menos deficientemente, pois possibilitariam uma melhor compreensão:



Tudo o que o historiador e o etnógrafo conseguem fazer, e tudo que o que se pode pedir-lhes para fazer, é alargar uma experiência particular às dimensões de uma experiência geral ou mais geral, e que se torne, por isto mesmo, acessível como experiência a homens de um outro país ou de um outro tempo (LÉVI-STRAUSS, ibid., p. 32).

DaMatta (1987) destaca o “conhecimento do homem pelo homem” como possibilidade de transformação e esperança:



A Antropologia (...) tem algo a ensinar, esse algo é precisamente isso: que o homem, afinal, pode aprender e mais que o intelecto e a ordenação do mundo é a grande arma de todos os homens em todos os tempos. Ora, se tais instrumentos têm sido usados para a opressão, serão eles mesmos que obrigarão a criar uma nova ordem onde (...) humildade (...) e tolerância deixarão de ser ideais impostos pela moralidade. Eles passarão a ser uma necessidade (...), instrumentos que são de uma convivência (...) aberta (...). Em outras palavras, o próprio intelecto nos fará enxergar nossa humanidade no “outro”; e o “outro” dentro de nós mesmos (destaques originais; DAMATTA, p. 14).

Até mesmo o biólogo e o físico - das típicas ciências naturais e exatas - vêm atualmente considerando, cada vez mais, as implicações sociais de suas descobertas, a sua significação antropológica: o homem não se contenta mais em apenas conhecer; conhecendo cada vez mais, vê-se a si próprio cognoscente, e o verdadeiro objeto de sua pesquisa torna-se um pouco mais, cada dia, esse par indissolúvel formado por uma humanidade que transforma o mundo e que se autotransforma no decurso de suas operações (LÉVI-STRAUSS, 1993).

Na ciência moderna o conhecimento avança pela especialização. O conhecimento é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é seu objeto. Nisso, aliás, reside o dilema básico da ciência moderna: o seu rigor aumenta na proporção direta com que divide o real. Sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, orientado para policiar as fronteiras entre as disciplinas e para reprimir outros saberes que o queiram transpor (SANTOS, 1995).

A antropologia não escapou à sedução dessa racionalidade cientificista. Mas, se no passado ela fez suas vítimas, atualmente vem sendo bastante prestigiada em diversas áreas (a social, a jurídica, da saúde, da educação, etc.), especialmente em função de seu potencial inclusivo e humanizador em torno de temas como alteridade(s), tolerância, direitos humanos, multiculturalismo, pluralidade, diversidade, saberes tradicionais (etnociência), transdisciplinaridade, etc. Contudo, esse potencial não torna a antropologia imune a pretensões de domínio, manipulação e exploração:

A própria alteridade tem um caráter móvel e é analiticamente construída para responder a certas perguntas. No contexto das desigualdades socioeconômicas, a alteridade torna-se ainda mais exigente. Implícita em tudo que se refere ao outro, a desigualdade nesse caso fica exposta nos próprios termos da linguagem (classe alta, classe média, classe baixa, etc.). Nessas condições, explorar a hipótese da alteridade pode parecer a consagração da injustiça social. Por outro lado, a injustiça pode mostrar-se muito mais acentuada quando se nega a própria ideia de alteridade, impossibilitando a escuta, fechando definitivamente a porta ao diálogo. Não foi por acaso que os primeiros antropólogos partiram para tão longe para descobrir “o outro”. Os “selvagens” do outro lado do mundo eram como “folhas em branco” sobre a qual o pesquisador podia deitar suas fantasias. De seu “campo” ele podia trazer, do “outro”, a prova de sua “humanidade” (ou mesmo de sua “incivilidade”, “animalidade”, etc.). Os aspectos considerados “inconvenientes”, impróprios (os maus cheiros, os piolhos, as intrigas, os conflitos, etc.) podiam ficar para trás, nas ilhas, à confortável distância ou, pelo menos, escondidos nas páginas do diário do pesquisador. Não surpreende, portanto, que os antropólogos tenham hesitado em investigar as classes trabalhadoras, populares:

Os pobres de nossa sociedade estão demasiadamente próximos de nós. Olhando bem, encontramos elementos interessantes - a música, a religião - algo que ainda se encaixa nos nossos limites de alteridade ou soa bastante folclórico para merecer atenção. Mas as facetas brutas permanecem muito numerosas. As vozes agudas, os sorrisos desdentados, as roupas gastas nos perseguem - impertinentes - nos corredores dos hospitais, na fila dos desempregados, nos empurrões dos ônibus. Elas se impõem ao nosso quotidiano. Não temos sequer o consolo das imagens hiper-reais que nos protegeriam contra o choque. Dos índios modernos que mandam suas crianças mendigar no mercado, podemos dizer: “Não são índios verdadeiros. Eles perderam a pureza das tradições”. Não há nenhuma frase análoga para os pobres. Pelo contrário, dizemos “Não é um índio verdadeiro, É apenas um mendigo”. Sem nome, o “pobre” não tem história, nem existência própria. Dessa forma, não temos de fazer perguntas quanto à nossa relação com ele. Por este silêncio, encobrimos o que seria o lado sórdido de nossas existências. Não temos que confrontar uma alteridade radical que nos faria sentir o lado frágil de nossas certezas, o caráter cultural e de classe de nossos valores “universais” (destaques originais; FONSECA, 2000, p. 227-228).

O mundo contemporâneo tem construído inúmeras estratégias de regulação e controle da alteridade: a demonização do outro; a sua transformação em “sujeito ausente”; a delimitação e limitação das suas características - sua “invenção” - para que os outros dependam das “traduções oficiais”; a sua imersão no estereótipo, na caricatura; a sua inserção numa lógica maniqueísta e excludente; a sua (re)produção e utilização nos discursos e práticas institucionais estabelecidas e com fronteiras permanentemente vigiadas para assegurar e garantir as identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis.



O problema é que ainda não estamos conseguindo considerar o Outro através de sua alteridade. Tratamos suas falas como produções marginais e desarticuladas. (No caso dos surdos, essa desarticulação é entendida literalmente.) Silenciamos a eles para que possamos continuar a falar por eles. E a produzir sobre eles saberes unitários, arbitrários e totalizadores. Embora permaneça, como pressuposto e justificativa àqueles mesmos saberes, a nobre intenção de redimi-los de sua existência selvagem (porque muda, porque não falante em nossa língua). Entretanto, e porque nada possui uma só face, no aparente silêncio do outro também se articulam resistências. E é por efeito delas que ainda estamos aqui a escrever, sem respostas definitivas, sobre a nossa perturbadora deficiência em escutar o que as diferenças têm a nos dizer (destaques originais; SKLIAR e SOUZA, 2004, p. 16).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Malinowski foi um dos atores imersos no cenário no qual o método etnográfico se estabeleceu, adquiriu “visibilidade” e propiciou uma nova antropologia – essencialmente fundada na observação direta/participante e no reconhecimento do “outro” em sua própria cultura (considerada em si mesma, para si mesma). Mas não foi o único a contribuir para essa mudança. Seu papel foi reconhecidamente importante. No entanto, não retratou um produto isolado, independente e conclusivo de uma mente genial, imune a equívocos e falhas; nem mesmo uma trajetória uniforme de progressivos avanços, pela qual transpareceria uma imagem única, não-plural. Nem tampouco representa algo inteiramente superado, prescindível. Refletiu, antes, um processo histórico, uma construção coletiva, dinâmica e criativa que envolveu vários atores, aproximações e rupturas, avanços e retrocessos. Foi nessa trajetória que Malinowski estava inserido, e nela pôde contribuir e adquirir notoriedade.

O trabalho e o mérito de Malinowski não foram, aqui, desqualificados, nem tampouco seu mito foi reabilitado. Pelo contrário, a intenção foi oferecer elementos capazes de permitir ir além de sua mitificação, sem necessariamente tender ao extremo oposto, simplesmente banindo ou rejeitando sumariamente o seu trabalho. Pretendeu-se superar a prevalente lógica dualista e excludente que tende a estabelecer pólos inconciliáveis e paralisantes que dificultam os diálogos e demarcam posições fixas. Sinalizou-se, em torno de Malinowski, uma outra leitura possível, mais aberta e inclusiva, em contraposição às estabelecidas que, através de análises pontuais e rotulantes, tendem a realçar “erros” e a ignorar “contribuições”, sem reconhecê-los como parte de um processo dinâmico, integrado e coletivo.

Passados quase cem anos, agora na atualidade, num outro cenário, a antropologia assimilou outras aplicações (e distorções). Não se encontra no “momento” de uma antropologia incipiente que se estabeleceu voltando-se para comunidades nativas, exóticas, distantes além-mar. Pelo contrário, experimenta, agora, um método etnográfico mais flexível, que incorporou mudanças diante de um novo “exótico” nas sociedades contemporâneas (populosas, estratificadas, sob tendências individualistas, capitalistas, processos globalizantes e frequentes mudanças), onde o “nativo” passou a estar mais próximo, muito próximo, “em casa”: nas vilas populares, nas repartições públicas, nos consultórios, nas salas de aula (em nós mesmos).

Seja qual for o uso que seja dado à antropologia, ela pode facultar o diálogo e permitir.

(...) ampliar a possibilidade de um discurso inteligível entre pessoas de interesses, visões, riqueza e poder muito diferentes, porém contidas num mundo em que, amontoadas como estão numa ligação interminável, têm cada vez mais dificuldade de ficar fora do caminho umas das outras (GEERTZ, 2009, p. 192).

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*Especialista em Química pela Universidade Estadual de Maringá (PR); licenciado em Ciências com Habilitação Plena em Matemática pela Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (PR); acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal da Grande Dourados (MS); profissional da Embrapa Agropecuária Oeste (Dourados-MS).



Interletras, volume 3, Edição número 18,abril 2013/ setembro.2013 - p

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