Esquizofonia



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Essa é a primeira coisa a ser lembrada ao se falar de rádio. Ele é um 
veículo temível, porque não se pode ver quem ou o quê produz o som: 
um excitamento invisível para os nervos. É por isso que o chamo de 
“esquizofônico” (som dividido) e McLuhan o chama de veículo “quente”. 
Quando o rádio foi inventado nos primórdios deste século, dois modelos 
de transmissão surgiram: o modelo político, gerado pela ambição pelo 
poder; e o modelo iluminista, gerado em oposição ao primeiro. Hitler nos 
deu uma vívida ilustração do primeiro tipo quando escreveu: “Nunca 
teríamos conquistado a Alemanha não fosse o alto-falante”. Mas mesmo 
hoje, quando se escuta os políticos no rádio, é conferido um tom tirânico 
a suas vozes, ocasionado pela amplificação da personalidade prometida 
pelo microfone. 
Quando David Sarnoff argumentou a favor do rádio nos Estados Unidos 
em 1916, referiu-se a ele como a uma “caixa de musica moderna”, 
acionando então a idéia do rádio como um veículo de entretenimento, 
um brinquedo. Estes são os teoremas da transmissão radiofônica, 
endossados por todas as programações modernas. O quanto o rádio 
moderno se afastou do rádio radical na sua fase pré-tecnológica? 
Considerando-se o que o rádio já foi um dia, todos os modelos 
contemporâneos o profanaram. 
Quando dava aulas na escola de comunicação de uma universidade, 
costumava propor aos alunos o seguinte exercício: “Imagine que você é 
um visitante de outro planeta e que a sua espaçonave lhe permite 
sobrevoar a Terra tão de perto que é possível captar as ondas de rádio 
norte-americanas durante vinte e quatro horas; conte-me em seguida 
tudo que aprendeu sobre os norte-americanos”. 
Você pode imaginar resultados. Eles são obcecados pelo odor do corpo. 
Sua cor favorita é o extra-branco e seu divertimento favorito é tentar 
prever o tempo. Eles se vestem com couraças e se deslocam sobre rodas. 
Sua religião toma a forma de uma cerimônia, na qual uma relíquia sagrada 
é perseguida dentro de um campo por facções oponentes. E por aí vai. 
Vamos nos tornar antropólogos por um certo tempo e perguntar o que 
teria acontecido se o rádio tivesse sido inventado por outra pessoa. 
Suponhamos que a tribo dos Lendau da África Central o tivesse inventado, 
será que eles teriam transmitido a dança da chuva? (Mas isto só acon-
teceria em épocas de seca.) Ou na hipótese de que os egípcios tivessem 
inventado o rádio, será que eles teriam transmitido o Festival de Osíris em 
Abido? (Mas este programa ficaria no ar sem interrupções durante vários 
dias.) Ou na hipótese de que os bernardinos de Martin Verga o tivessem 
inventado, será que eles teriam transmitido os cânticos das matinas? 
(Mas isto ocorreria no meio da noite.) Os ritmos de outras sociedades são 
bem diferentes dos nossos. A radiodifusão ocidental é tiranizada por um 
instrumento que aceitamos como inviolável: o relógio. 
Tanto Oswald Spengler quanto Lewis Mumford falaram exaustivamente 
de como o relógio passou a regular o destino do mundo ocidental. De 
como ele delimita a fronteira entre as horas de trabalho e as horas de 
lazer, regulando as refeições e o sono tanto quanto a vida do fábrica. O 
rádio se tornou o relógio da civilização ocidental, usurpando a função 
cronômetro conferida anteriormente ao sino da igreja e ao apito da 
fábrica. No decorrer do dia, os acontecimentos são medidos em frações 
de segundo. As notícias chegam às 8 horas no caminho para o trabalho, às 
17 horas no caminho de volta para casa, às 23 horas no caminho para a 
cama. (Recentemente, a Canadian Broadcasting Company [CBC] adiantou 
o noticiário para o antigo horário das 22 horas, por razões que discutirei 
em breve.) Para aqueles que estão sempre com pressa, existem notici-


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ários e boletins meteorológicos curtos durante todo o dia. Nos intervalos 
entre eles, a programação radiofônica é costurada como uma colcha de 
retalhos. 
Há alguns anos, apresentei uma idéia à CBC de fazer um programa sobre 
os sons do mar. O produtor quis saber de quanto tempo eu precisaria. 
Sem parar para pensar, respondi: “vinte e quatro horas”. 
Ninguém conseguiria apresentar apropriadamente os ritmos e os desejos 
do mar em menos tempo do que isso. Deram-me uma hora e meia para 
apresentar Okeonos e não foram poucos os problemas que tiveram de ser 
sanados para que mesmo isso fosse possível. Mas tais problemas podem 
ser sanados, como a lrish Radio provou quando transmitiu o Ulisses de 
Joyce num programa de 36 horas. 
O rádio hoje é a pulsação de uma sociedade organizada para satisfazer a 
um máximo de produção e de consumo. Ë evidente que isto é temporário: 
o rádio não vai manter esta posição para sempre. A vantagem do relógio 
de quartzo é que ele não pára nem precisa ser acertado; assim, a função 
de cronômetro cerimonial conferida ao rádio já está anacrônica. E se a 
civilização industrial está em declínio — e ela efetivamente está — ritmos 
radiofônicos alternativos podem estar mais próximos do que imaginamos. 
Os ritmos da vida são incrivelmente complexos. Consideremos, por 
exemplo, os festejos prolongados do casamento no interior, o batimento 
cardíaco daquele que dorme, do nadador ou do corredor de longa 
distância. Lembremo-nos do ritmo natural das ondas, quebrando-se na 
areia da praia. Vamos medir o tempo que dura a neve derretendo, a lua 
minguando; vamos voltar a prestar atenção aos sons dos pássaros, dos 
sapos e dos insetos em contraponto. Vamos conhecer tudo isso e quando 
o rádio moderno começar a decair, estaremos prontos para mudar a 
pulsação do mundo ocidental. Você pode argumentar que esses ritmos 
não pertencem ao domínio do rádio; mas eles pertencem a ele tanto 
quanto pertencem os ritmos hiperbiológicos. Se o rádio moderno 
superestimula, os ritmos naturais poderiam ajudar a injetar bem-estar 
físico e mental novamente no nosso sangue. O rádio pode, de fato, ser o 
melhor veículo para realizar isso. E quando a descoberta de que a 
continuação de nossa existência nesse planeta depende do 
restabelecimento desta continuidade com todas as coisas vivas, tenho a 
suspeita de que o rádio refletirá esta descoberta e desempenhará o seu 
papel. 
Há poucos anos atrás, Bruce Davis e eu tivemos uma idéia que chamamos 
de Wilderness Radio. O projeto era o de colocar microfones em lugares 
remotos, não habitados por seres humanos, e transmitir o que quer que 
acontecesse por lá: os sons do vento e da chuva, os piados dos pássaros e 
uivos dos animais — os acontecimentos rotineiros do ambiente sonoro 
natural transmitidos sem edição para o coração das cidades. Parecia-nos 
que já que o homem estava interferindo tanto no ambiente sonoro 
natural, um pouco de sabedoria da natureza poderia ser um antídoto útil. 
Os ritmos do rádio estão sempre mudando. Os padrões rítmicos ditam a 
satisfação; nunca o contrário. Se você conseguir colocar sua idéia em uma 
pílula de três minutos, você poderá vendê-la para o rádio; se não 
conseguir, desista. Esta brevidade dá forma ao tratamento de todo o 
material, produzindo o que John Leonard chamou de “guincho 
monótono” do rádio contemporâneo: “Ao invés de estórias, opiniões 
enlatadas; ao invés de discussões, sirenes; ao invés de tristeza, detalhes 
repulsivos; ao invés de jogos. respiração ofegante e punhos”. 
A limitação não é técnica, mas cultural, já que tecnicamente o sinal de 
rádio é contínuo e pode ser modulado na forma desejada. 


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