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A Lei
As massas conceberam a ideia de legislar a partir do mesmo prin-
cípio utilizado pelos legisladores que as precederam, quando o su-
frágio era limitado.
Espoliação nula: é o princípio da justiça, da paz, da ordem, da esta-
bilidade, da harmonia, do bom senso. E até o último dos meus dias
eu proclamarei com todas as minhas forças (que já estão débeis, por
causa de meus pulmões
2
) a existência desse princípio.
A
função
própriA
dA
lei
E, sinceramente, pode-se pedir outra coisa à lei se não a ausência
da espoliação? Pode a lei, que necessariamente pede o uso da força,
ser usada racionalmente para outra coisa que não seja a proteção dos
direitos de cada pessoa? Desafio qualquer um a tentar usá-la de outro
modo sem pervertê-la e, consequentemente, colocando a força contra
o poder. Esta é a mais funesta e a mais lógica perversão que se possa
imaginar. Deve-se, pois, admitir que a verdadeira solução, tão procu-
rada na área das relações sociais, está contida em três simples palavras:
A LEI É A JUSTIÇA ORGANIZADA.
Ora, vejamos bem: quando a justiça é organizada pela lei, isto exclui
a ideia de usar a lei (a força) para organizar qualquer outra atividade hu-
mana, seja trabalho, caridade, agricultura, comércio, indústria, educação,
arte ou religião. A organização pela lei de qualquer uma dessas ativi-
dades trairia inevitavelmente a organização essencial, a saber, a justiça.
Sinceramente, como se pode imaginar o uso da força contra a liberdade
dos cidadãos, sem que isto não fira a justiça e o seu objetivo próprio?
A
SedutorA
AtrAção
do
SociAliSmo
Aqui eu esbarro no mais popular dos preconceitos de nossa época.
Não se acha suficiente que a lei seja justa, pretende-se também que seja
filantrópica. Não se julga suficiente que a lei garanta a cada cidadão o
livre e inofensivo uso de suas faculdades para o seu próprio desenvol-
vimento físico, intelectual e moral. Exige-se, ao contrário, que espalhe
diretamente sobre a nação o bem-estar, a educação e a moralidade.
Este é o lado sedutor do socialismo. E eu repito novamente: estes
dois usos da lei estão em contradição um com o outro. É preciso es-
colher entre um ou outro. Um cidadão não pode, ao mesmo tempo,
ser e não ser livre.
2
Nota do tradutor para o inglês: “Quando este texto foi escrito, o Senhor Bastiat sabia que estava doente,
com tuberculose. Morreu pouco tempo depois.”
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Frédéric Bastiat
A
frAternidAde
forçAdA
deStrói
A
liberdAde
O Senhor de Lamartine escreveu-me certa vez o seguinte: “Sua
doutrina é somente a metade do meu programa; você parou na li-
berdade; eu já estou na fraternidade.” Eu lhe respondi: “A segunda
metade de seu programa destruirá a primeira.”
Com efeito, é-me impossível separar a palavra fraternidade da pala-
vra voluntária. Eu não consigo sinceramente entender como a frater-
nidade pode ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente
destruída e, em consequência, a justiça legalmente pisada.
A espoliação legal tem duas raízes: uma delas, como já lhe disse
anteriormente, está no egoísmo humano; a outra, na falsa filantropia.
Antes de ir além, creio dever explicar exatamente o que entendo
pela palavra espoliação.
A
eSpoliAção
violA
A
propriedAde
Não uso esta palavra como se faz frequentemente, numa acepção
vaga, indeterminada, aproximativa, metafórica: faço-o no sentido
absolutamente científico, isto é, exprimindo a ideia oposta à ideia
de propriedade (salários, terras, dinheiro ou outra coisa qualquer).
Quando uma porção da riqueza passa daquele que a adquiriu, sem seu
consentimento e a compensação devida, para alguém que não a gerou,
seja pela força ou por astúcia, digo que houve violação da propriedade,
que houve espoliação.
Digo que é isto o que a lei deveria reprimir para todo o sempre.
Quando a própria lei comete um ato que ela deveria reprimir, nesse
caso a espoliação não é menor, porém maior e, do ponto de vista social,
com circunstâncias agravantes. Só que, em tal situação, a pessoa que
recebe os benefícios não é responsável pelo ato de espoliação. Tal res-
ponsabilidade cabe à lei, ao legislador e à própria sociedade. E é aí que
está o perigo político.
É de se lamentar que a palavra espoliação tenha conotações ofensi-
vas. Tentei em vão encontrar outra, pois eu não desejaria, em momen-
to algum, lançar no seio de nossas dissensões uma palavra irritante.
Por isso, creiam-me ou não, declaro não pretender acusar as intenções
ou a moral de quem quer que seja. Eu combato uma ideia que acredito
ser falsa; um sistema que me parece injusto; uma injustiça tão inde-
pendente das intenções pessoais, que cada um de nós tira proveito da
ideia do sistema sem o querer e sofre por causa do mesmo sem o saber.
25
A Lei
t
rêS
SiStemAS
de
eSpoliAção
A sinceridade daqueles que abraçam o protecionismo, o socia-
lismo e o comunismo não é aqui questionada. Qualquer escritor
que quiser fazer isto deve estar agindo sob a influência do espírito
político ou do medo político. Deve ser contudo apontado que
o protecionismo, o socialismo e o comunismo são basicamente
a mesma planta, em três estágios diferentes de seu crescimento.
Tudo o que se pode dizer é que a espoliação legal é mais visível,
por sua particularidade, no protecionismo
3
e, por sua universali-
dade, no comunismo. Conclui-se então que, dos três sistemas, o
socialismo é ainda o mais vago, o mais indeciso e, por conseguin-
te, o mais sincero.
Mas, sincero ou não, as intenções das pessoas não estão aqui
colocadas em questão. De fato, eu já disse que a espoliação
legal está baseada parcialmente na filantropia, mesmo que seja
na falsa filantropia.
Com esta explanação, passemos agora ao exame do valor, da origem
e da tendência dessa aspiração popular, que pretende alcançar o bem
geral pela espoliação geral.
A
lei
é
forçA
Se a lei organiza a justiça, os socialistas perguntam por que a lei
não organiza também o trabalho, a educação e a religião.
Por que a lei não é usada com tais propósitos? Por que ela não
poderia organizar o trabalho, a educação e a religião sem desorga-
nizar a justiça. Devemo-nos lembrar de que a lei é força, e, por
conseguinte, o seu domínio não pode estender-se além do legítimo
campo de ação da força.
Quando a lei e a força mantêm um homem dentro da justiça, não
lhe impõem nada mais que uma simples negação. Não lhe impõem
senão a abstenção de prejudicar outrem. Não violam sua personalida-
de, sua liberdade nem sua propriedade. Elas somente salvaguardam a
personalidade, a liberdade e a propriedade dos demais. Mantêm-se na
defensiva puramente e defendem a igualdade de direitos para todos.
3
Nota do autor: “Se o especial privilégio da proteção governamental contra a competição fosse concedido
a uma só classe, na França, como, por exemplo, aos ferreiros, tal fato seria tão obviamente espoliador que
não conseguiria manter-se. Por isso, vemos todas as indústrias protegidas aliarem-se em torno de uma
causa comum e até se organizarem de modo a aparecerem como representantes de todo o trabalho nacio-
nal. Instintivamente elas sentem que a espoliação se dissimula, ao se generalizar.”
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