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epíteto metafórico que dá título ao conjunto romanesco de contos, ela é cruzada primeiro por
Marianito e Michelina e, depois, mais ao fim do conto, após o casamento entre ambos, pela
jovem e o pai do rapaz, sempre com a ideia chave da metáfora do cristal, seu espelhismo e
fragilidade, algo sobre o que me debruçarei com maior detenção no próximo capítulo desta
tese.
No que toca ao sonho final de Michelina é interessante notar que ele se passa com a
jovem estando ainda na Cidade do México (centro) às vésperas do casamento que termina por
acontecer em Campazas (norte). Sucede ainda que em determinado momento o sonho da
capitalina vai unir-se ao do jovem solitário do deserto, estratégia representativa uma vez mais
da oposição e, inclusive, miscelânea entre luz e sombra, apontando distâncias denotativas da
existência de fronteiras culturais dentro do próprio território mexicano. Decorrem daí
equações a revelar o levantamento, em imaginário, de uma dicotomia fronteiriça (ainda no
âmbito cultural) entre o centro e o norte mexicanos, entre cidade e deserto. A ironia
questionadora no enredo está no fato de que, a tradição do centro (Michelina) vai buscar no
desértico norte o poder e a riqueza que já lhe faltam a ele, centro, no casamento da jovem
capitalina com o soturno e solitário Marianito, que não suporta as luzes da noite do lado
estadunidense dessa terceira fronteira do enredo. Luzes com as quais essa dama da noite se vê
afeita, principalmente no trânsito livre que lhe permitirá desfrutar seu amante, o empresário
nortenho de sucesso, o self made man mexicano Leonardo Barroso, pai de seu esposo.
De volta à questão do narrador, a narratividade coiote adotada por Carlos Fuentes em
seu La frontera de cristal traz de empréstimo, como demonstrei, nuances poéticas e mais
duras, presentes também na prosa ensaística do autor. As nuances aproximativas que se
vinculam ao tom de comicidade caro a Fuentes conforme o observado em palestras, ensaios e,
como defendo aqui, que recaem por empréstimo no narrador que elege para o romance em
epígrafe; tais nuanças retornam em caráter menos esquemático mais ao fim do presente
tópico. Antes, com vistas a reforçar a evidência das aproximações ora destacadas, trago outro
fragmento em que um tom mais duro, mais agudo de narrar em La frontera, encontra-se com
situações descritas em El espejo enterrado.
Em seu El espejo enterrado, das páginas que dedica ao tema que chama de terceira
hispanidade, sua atenção dada à marca de hispanidade dos e nos Estados Unidos, chama a
atenção o questionamento levantado por Fuentes a partir da informação que presta ao contar
um acontecimento de caráter linguístico e de choque de culturas bastante emblemático e
significativo. Essa passagem é trazida ao leitor da seguinte maneira:
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¿Puede un chicano ser artista en Los Ángeles, por ejemplo, si no mantiene la
memoria de Martín Ramírez, nacido en 1885, quien fue un trabajador ferrocarrilero
inmigrante que llegó de México, y, en un hecho de inmensa fuerza simbólica, perdió
el habla y fue por ello condenado a vivir tres décadas en un manicomio de California
hasta su muerte en 1960? Pero Martín no estaba loco. Simplemente, no podía hablar.
De manera que en la cárcel se convirtió en un artista y durante treinta años pintó su
propio silencio. (FUENTES, [1992] 2010, p. 447)
Esse silêncio pintado: parece ser tamanha de fato sua força simbólica a agir sobre as
instâncias do próprio Carlos Fuentes, que tal aspecto de não ditos é por ele retomado,
merecendo desta feita uma representação ficcional também com um caráter, com uma força
bastante simbólica, em La frontera de cristal. De volta a esse romance, a narratividade coiote
imprimida por Fuentes, ao mesmo passo que vai e vem levando consigo o leitor aos dois lados
da fronteira ao longo do desenrolar da trama, no último capítulo da obra, atrai, fazendo da
representação da fronteira mexicano-estadunidense uma espécie de protagonista e ímã que,
em tom de chamamento, “convoca” leitor e personagens para mais próximo de suas linhas
divisórias. É assim que um texto-rio
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, um texto em cursivas se entremete nas “sub-histórias”
que fragmentam em outras nove partes o último conto, chamado “Río Grande, río Bravo”, no
todo do enredo, ao invocar de novo personagens que perpassaram a trama aqui e ali,
parecendo, simulando estarem isolados em suas aparições anteriores.
Esse texto-rio vai, pois, a episódios da história do México, atendo-se, principalmente,
a momentos da definição de seu território, onde se aproxima novamente, ele, texto-rio
artifício literário outro de uma narratividade coiote, dos ensaios de Fuentes em El espejo
enterrado. Mas, como informei, retorna também a personagens chave para o imagético da
trama, tal sendo o caso de Marina, do quinto conto-capítulo “Malintzin de las maquilas”. Essa
personagem é clara remissão à figura histórica (e muitas vezes deturpada) da indígena
Malinche, também chamada Malintzin, que teria sido ofertada como escrava ao
“conquistador” Hernán Cortés. Fruto de uma visão intelectual questionável que a coloca entre
traidora indígena e criadora de fato do povo mexicano
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, doña Marina, como passaram a
chamá-la os espanhóis da “Conquista”, era, segundo o próprio Fuentes ([1992] 2010, p. 133),
“ ‘mi lengua’, pues Cortés la hizo su intérprete y amante”.
Fato é que esse papel de intérprete destacado por Carlos Fuentes em El espejo
enterrado termina por incidir diretamente na personagem Marina de las maquilas, quem, na
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Termo cunhado pela Professora Maria Luiza Scher Pereira, em seu artigo “Ficção e identidade em Carlos
Fuentes: La frontera de cristal” (1997, p. 105).
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Ao ter com Cortés o filho que teria sido o primeiro nascido do choque entre o europeu que submete à força de
suas armas e o índio que ainda não as conhecia.
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