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fuentesiano ganhará contornos mais ácidos e críticos em outros momentos da trama, podendo
mesmo conduzir o leitor ao riso aberto. Riso solto causado de igual maneira por um Fuentes
de humor mordaz e provocativo em muitas de suas conferências
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, em breves apartes
conclusivos que de fato levam seus espectadores à risada franca.
Convém, porém, aproximar-se um pouco mais da apresentação a uma das primeiras
edições do romance aqui em destaque, citada há pouco por mim. Dela extraio agora outros
predicados dedicados à observação de Fuentes como narrador de alguns de seus livros:
“agressivo, vital, poderoso”. Predicados também na adjetivação de suas páginas como
“penetrantes e agudas”. Ao tocar na possibilidade de leitura de Fuentes a partir da visão que
toca em sua ficção como fruto algumas vezes de uma espécie de exercício de autobibliografia,
de consulta ou remissão involuntária talvez (porque questionável) ou mesmo inconsciente (e
aqui, pelas vias abertas pela psicanálise, questionável é a intencionalidade do ato) a sua
própria bibliografia, à bibliografia que ele próprio produz; quer dizer, ao tocar nesse ponto,
tenho comparado objetos que fazem uso de linguagens distintas, ou, quando muito, objetos
cuja linguagem se apresenta em modalidades distintas. Tal seria o caso do livro e do vídeo,
onde a palavra se apresenta respectivamente, e diferentemente, em suas modalidades escrita e
oral, mais formalizada em uma e algo menos formal na outra, onde gestos, expressões e
provocações ganham vez, voz e retorno quase imediato de impressões, de resposta. No
tocante, entretanto, a esse narrar mais forte, agressivo, agudo e penetrante, certa passagem
dedicada de novo à personagem Michelina Laborde e Ycasa em La frontera de cristal vai
diretamente ao encontro de outra interessante abordagem levada a cabo na versão escrita de El
espejo enterrado; sendo, por isso, tais passagens, dignas de ocuparem lugar como fechamento
desse primeiro momento de aproximação que proponho entre Fuentes escritor e seu narrador
coiote em La frontera.
O Barroco foi um estilo artístico próprio da Europa, adjunto à Contrarreforma católica.
Enquanto o excessivo puritanismo proposto pela Reforma protestante parecia encontrar na
música, especialmente em Bach, uma espécie de compensação sensual, a rigidez da
Contrarreforma parece encontrar no Barroco e sua expressão na arquitetura e nas artes sua
concessão à sensualidade (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 239). O estilo barroco se
caracteriza pelo exagero e suntuoso no uso propositadamente excessivo de elementos
ornamentais. Segundo o próprio Carlos Fuentes, a arte do barroco representou “la excepción
expansiva y dinámica a un sistema religioso y político que quería verse a sí mismo unificado,
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Remeto o leitor para o vídeo de sua conferência na Cátedra Alfonso Reyes, realizada em Monterrey, México,
no ano de 2001, cujo link está na bibliografia da presente tese.
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inmóvil y eterno” (FUENTES, [1992] 2010, p. 239). Na América colonial, esse estilo ganha o
aporte de marca de registro e expressividade dos vencidos. Através dele artistas negros,
mulatos, pardos e indígenas inserem suas mostras de pertencimento, dando expressão a sua
voz e suas origens, talhados, mesclados à ordem política e religiosa do colonizador,
sincretizando sua dor e o sentimento de perda, sua submissão e o sofrimento, buscando um
novo sentido de orientação, sua dúvida no presente em que pensar sobre o futuro. O corpo e o
movimento aqui ganham vez e, mais até mesmo do que em Europa, entre a rigidez e a
resistência ao mesmo sistema que lhe permite existir, o sensual se debate, dilacerando corpo,
mente e alma de seus agentes, mergulhados em culpa, essa bandeira repressora própria dos
dogmas que consigo trouxe o catolicismo da Contrarreforma.
O barroco está presente no Fuentes de La frontera de cristal de modo bastante
particular no primeiro capítulo do romance, o conto “La capitalina”, sobre o qual venho
debruçando as principais atenções do presente tópico. Ali, em “La capitalina”, uma primeira
referência a esse estilo é feita com relação a uma correspondência de comportamento. É
quando igualmente começam aproximações a um grande nome da literatura barroca mexicana
Michelina volvió a pensar en la moda de ayer, en la crinolina que disimulaba el
cuerpo y el velo que escondía el rostro (…) Las luces antiguas eran bajas. La vela y
el velo… había demasiadas monjas en su familia y pocas cosas exaltaban la
imaginación de Michelina más que la vocación del encierro voluntario y, una vez
dentro, amparada, la liberación de los poderes de la imaginación; a quién querer, a
quién desear, a quién rezarle, de qué cosas confesarse… A los doce años, quería
encerrarse en algún viejo convento colonial, rezar mucho, azotarse, darse baños de
agua fría y rezar más (FUENTES, [1995] 2007, p. 15).
Um dos ensaios que compõem a edição escrita de El espejo enterrado, publicado a
primeira vez em 1992, portanto, anterior ao La frontera é intitulado de “El barroco del Nuevo
Mundo”. Ali, muito desse comportamento de gozo e de culpa que o narrador nos diz
“desejado”, sonhado por Michelina está também descrito nas linhas ensaísticas a este estilo
dedicado por Fuentes. E, mais ainda, tal linha de comportamento desejado pela capitalina do
romance acompanha o que o próprio Fuentes nos conta em “Mi alma está dividida”, segmento
incluído no ensaio acima citado, sobre parte da história de Sor Juana Inés de la Cruz, quem
para o autor foi “el más grande poeta de la América colonial” (FUENTES, [1992] 2010, p.
251). Para rememorar parte da influência já mencionada de outros dois grandes intelectuais
mexicanos no pensamento fuentesiano uma ida à obra Sor Juana Inés de la Cruz o las
trampas de la fe, de Octavio Paz (1982) serve para dar conta da ação de ensaio sobre ensaio
incidindo, eclodindo na figura “oculta” do narrador de Fuentes, ou do narrador Fuentes, em
La frontera de cristal.
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