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composição “la persona (tlacatl) ladina (coyotl)”, “gente de razão” (MONTEMAYOR e
FRISCHMANN, 2004, p. 247 – grifo dos editores).
Será justamente esse aspecto ladino voltado para uma das acepções cabíveis ao termo
coiote, esse viés de astúcia e sagacidade que permitirá a percepção da narratividade adotada
em La frontera de cristal, romance também de atravessamento de fronteiras. Perceba-se que,
agregada a essa mesma linha de raciocínio do astuto e do sagaz, está não somente sua
capacidade de raciocínio, mas, quem sabe, principalmente, sua lábia, a capacidade de
envolver, de enganar pela fala. Será assim, dessa forma, que a quem buscar posicionamentos
plenamente evidentes o narrador utilizado por Carlos Fuentes muitas vezes parecerá estar em
determinado lugar do discurso quando, na verdade relativa das verdades, estará em outro.
A própria representação do coiote em La frontera é duvidosa. De um modo mais
específico, este bem pode ser Rolando Rozas, personagem com trâmites de um lado e do outro
da fronteira, amante de outra personagem, Marina Malintzin de las maquilas; dela e de muitas
outras, conforme vai apontando a narrativa. A muitas de suas amantes Rolando conquista
fingindo ser um homem de negócios, entrando em bancos, bares e restaurantes, simulando
falar todo o tempo em um celular que na verdade não tem baterias. Talvez seja este o
personagem figurado na edição brasileira de 1995, da editora Rocco, estampada pela foto de
um homem em cujas costas desnudas se vê tatuada a imagem da Virgem de Guadalupe,
padroeira mexicana. Reside a dúvida, entretanto, na idiotice dos atos com o falso celular por
parte de Rolando e a aparente dureza maior que transmite a imagem da capa citada
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.
A certeza mesma da descrição narrativa do coiote vem surgir em verdade já ao fim do
romance. É ali, quando o narrador conta a espera do patrulheiro fronteiriço estadunidense
Mario Islas por indocumentados que buscassem atravessar a fronteira, onde se lê algo do
modo de agir dos coiotes:
[L]a noche se llenaba de algo que él conocía de sobra, los trinos y silbidos de los
pájaros inexistentes, que era la manera como los coyotes, los pasadores de ilegales,
se comunicaban entre sí y se delataban aunque a veces todo era un engaño y los
pasadores silbaban como un cazador usa un pato de madera, para engañar mientras
el paso se efectuaba en otro lado, lejos de allí, sin silbido alguno (FUENTES, [1995]
2007, p. 255-6).
Está, pois, nesse mesmo ato e efeito de engano, de aparentar estar “aqui”, quando se
está “ali” um dos logros de mimetização coiote efetivados pela narrativa de La frontera. E o
fato de que, mais do que em um personagem específico, tal mimetização se veja, por exemplo,
em uma descrição de comportamento, como no trecho supracitado, sugere que para além da
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Há, ainda, no último conto da obra, a inserção do personagem Gonzalo Romero, este, sim, um coiote que
acaba morto por radicais skin heads estadunidenses em uma das incursões de atravessamento ilegal na fronteira.
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presença de um narrador coiote está a existência de toda uma “narratividade-mimese” de
engano, digna de desconfiança, sugestiva, por conseguinte, de um narrador culto, com
conhecimento amplo o bastante da língua e suas variantes, de linguagens e expressividade ao
ponto de burlá-las todas, inclusive pela capa do popular, visando seduzir e conquistar o leitor,
“conduzindo-o”, assim, pelos (des)caminhos da fronteira que ficcionaliza. Ao tratar dessa
forma a fronteira sobre a qual desfila seu fictício, La frontera de cristal se apresenta como um
exemplo de uso do que nessa obra podemos chamar de “narratividade coiote”. Sobre ela age e
interfere um narrador que, qual o atravessador de humanos, fingindo deixar de ser um coyote,
simula ser quase um cicerone, responsável por conduzir seu leitor “turista” ao lado do “sonho
americano” da fronteira. Ajudam e interferem, portanto, sobre a mente desse leitor viajero os
descaminhos pelo desconhecido que o narrador quer tornar, quer fazer parecer ser, sem que
em verdade seja, familiar. Interessa, então, de que maneira esse narrador e sua narratividade
coiote transmitem as imagens que almejam agir pelo convencimento de que ao real empírico
se coadunam, quando na verdade não passam da elevação a imaginários.
Conforme adiantei anteriormente, ao trafegar, com extrema facilidade, da erudição, de
um registro tido como mais comum à dita alta cultura para o registro popular da e na
linguagem literária que elege para desenvolver em seu romance, Fuentes demonstra assim em
La frontera de cristal amplo conhecimento e domínio dos códigos linguísticos de que lança
mão e faz uso em sua mostra literária acerca da fronteira México-Estados Unidos e das
conturbadas relações de alteridade que desse entorno sobressaem. Tamanho domínio de ações
discursivas, de explícitas relações para com sua própria ensaística
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, Carlos Fuentes parece
emprestar a seu narrador. Observemos, assim, de início, o conto-capítulo de abertura do
romance.
Em uma de suas últimas aparições em público, em conferência realizada na Academia
Brasileira de Letras (2012), Fuentes dedicou boa parte de sua fala a observações sobre a obra
do grande escritor brasileiro Machado de Assis. Um recorte especial sobre Machado voltado
para uma de suas mais aclamadas obras, o romance Dom Casmurro (1899), revela-nos a
relação, como em espécie de homenagem, entre o nome de uma de suas mais célebres
personagens, Capitu, a Capitolina dos “olhos de ressaca” (ASSIS, 1899, cap. XXXII) e todo o
esmero machadiano para com a concepção de seus capítulos, dos capítulos de suas obras.
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Remeto o leitor uma vez mais para minha já citada dissertação de mestrado (UFF, 2010), onde demonstro de
modo mais específico a correlação de posicionamentos ideológicos entre o pensamento ensaístico de Fuentes e
as posições adotadas e defendidas por Samuel Ramos e Octavio Paz. Aqui, interessa-me mais a influência direta
e explícita dos ensaios do próprio Fuentes em El espejo enterrado (já como também uma leitura dos dois
intelectuais cujo discurso parece incidir de maneira mais enfática no de Fuentes) sobre a ficção de La frontera de
cristal, ação determinante para os modos de narrar em jogo na narratividade coiote do romance em epígrafe.
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