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resultará em c) no teor identitário do conjunto de imagens criadas como parte da concepção de
um imaginário de oposições bem definidas no jogo de alteridades que sobressai das relações
fronteiriças evocadas pela trama do romance. Dito isto, passemos, pois, a esses caminhos.
3.1 Nas trampas de um narrador coiote, (des)caminhos para os imaginários
O coiote habita terras americanas desde tempos pré-cortesianos. Afirmar tal coisa
talvez por um lado surpreendesse um suposto interlocutor desavisado, não fosse, de fato,
verdadeira. Com efeito, a oração que abre este tópico encontra respaldo na origem aceita para
o espanholismo coyote (em português, coiote), palavra oriunda do nauatle coyotl (do
substantivo singular de caso absolutivo ˈkɔ.jɔtɬ). O anterior nomadismo migratório dos
nahuas, com suposta origem no hoje sudoeste estadunidense, passando pelo noroeste
mexicano até se estabelecerem no México central, desde onde exerceriam forte influência
sobre outras civilizações de seu tempo, dá conta da presença do animal ao qual se refere o
termo coyotl por vastos territórios americanos, especialmente os do Norte.
O coiote é um espécime canídeo cujo habitat se estende do Canadá até áreas que
variam da Costa Rica ao Panamá. A variedade do clima e da vegetação dos locais onde é
encontrada esta espécie de tamanho menor ao de um lobo aponta para uma forte característica
de adaptabilidade ao terreno sobre o qual habite ou se imiscua (tal é o caso de quando se
esgueira pelas cidades em busca de alimentos que vão desde restos de lixo revirado a
pequenos animais domésticos). Pode reunir-se em matilhas, mas seus hábitos costumam ser
em geral solitários. Outro dado relevante tem a ver com sua designação científica de canis
latrans, ou seja, cão ladrador. Ocorre que os uivos e latidos emitidos pelo coiote (mais
frequentes entre o fim da tarde e durante a noite) costumam ser enganosos, pois, dada a
relação entre som e distância, pode parecer que o animal está em determinado lugar quando,
na verdade, está em outro.
No tocante a minha pesquisa e, em especial, ao presente tópico, é interessante notar
como muitos dos aspectos dessa espécie canídea se veem emprestados, por aproximação, à
gama semântica do significante quando este se refere a certo coiote hominídeo: o atravessador
de fronteiras; ou, melhor seria, um atravessador de humanos nas fronteiras que separam
centro-americanos
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e mexicanos do chamado american dream, a ser de fato conhecido
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Mesmo no México, mas, principalmente, na fronteira mexicana com a Guatemala, os coiotes são também
chamados de polleros. Curiosamente, pollero pode, além de servir de sinônimo para o termo nauatle, significar
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apenas do lado estadunidense da extensa fronteira “compartilhada” com o México. A respeito
do homem coiote, são bastante esclarecedoras as palavras do jornalista mexicano Alejandro
Suverza Téllez (2010, p. 1 – grifo do autor), quem escreve que
La definición académica describe que un coyote es un tipo de lobo pequeño, que
sigiloso pesca a una oveja y se la traga. La palabra “coyotear” esconde a un pillo
que hace de intermediario en cualquier negocio que pueda sacar ventaja. Pero la
palabra coyote en México es sinónimo de abuso, de criminalidad, de un tipo que se
aprovecha de migrantes que tienen la ilusión de llegar a Estados Unidos.
Perceba-se que mesmo a remissão inicial de Téllez ao animal pode ser trazida, via
metáfora (e a metáfora é um dos temas-chave do presente capítulo), à figura inescrupulosa do
coiote homem, na maior parte das vezes um falso cão pastor de ovelhas, as quais, em
realidade, só quer tragar e enganar. Ainda acerca da aproximação entre a semântica dada ao
canídeo e ao exemplar humano do termo, é interessante a informação fornecida pelo
antropólogo mexicano Gonzalo Camacho Díaz, estudioso, entre outros assuntos, de culturas
musicais do México. No artigo “El baile del Señor del Monte”, o autor conta que, em suas
pesquisas, ao ser conduzido ao seio cultural de diferentes etnias, frequentemente percebia sua
presença como perturbadora “por ser un extraño, un forastero (...) o un simple coyotl (DÍAZ,
2011, p. 130 – grifo do autor)”. E ao verbete por ele grifado adere em nota o adendo de que
“Se trata de un término náhuatl cuyo significado literal es coyote y se emplea para denominar
al mestizo, por poseer las mismas características depredadoras de este mamífero” (Ibid. –
grifo do autor).
Já a mesma alusão ao mestiço, àquele que vem de fora, um estranho à pureza da etnia,
aparece também no volume três, dedicado ao teatro, da interessante reunião de textos Words
of true peoples/Palabras de los seres verdaderos: Anthology of contemporary mexican
indigenous-language writers (2004). Nela, em nota alusiva a um dos textos trabalhados, os
editores chamam atenção para a voz nauatle utilizada pelo dramaturgo Ildefonso Maya no
verbete maseual correspondente a índio, indígena ou camponês, com o sentido primordial de
“gente comum”, “gente do povo” ou “gente rústica”; um meio termo para este primeiro
conceito seria outra voz nauatle em tlacatl, que no geral designa a todo tipo de pessoa, não
necessariamente “rústica” ou “comum”. É, pois, a partir desse termo que, em contrapartida ao
conceito incluído no uso de maseual, o autor estudado lança mão de outro conceito, segundo
os editores, desta feita incluído na utilização do termo coyotlacatl, donde se extrai a
tanto “persona que tiene por oficio criar y vender pollos”, como “lugar en que se crían pollos” (Fonte:
Diccionario de la Real Academia em Línea).
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