26
e da linguística, os formalistas, análogos historicamente ao futurismo (Cf. EIKHENBAUM,
[1925] 1973, p.6), apresentam-se como opositores abertos da escola que, pouco a pouco
passava a perder muito do espaço e predomínio conquistados até então: o simbolismo russo e
a teoria que se desenvolveu ao redor desse estilo poético. A esse respeito, um dos nomes mais
confrontados, mais questionados é o do teórico literário Potebnia
13
, defensor da associação
imediata e inequívoca entre arte, entre a poética, a literatura e o pensamento por imagens.
Em “A arte como procedimento”
14
(1917), o formalista Viktor Chklovski parte do
axioma simbolista “A arte é pensar por imagens” e da frase “Não existe arte e particularmente
poesia sem imagem” (POTEBNIA, 1905, p.83) para criticar tal associação. Segundo
Chklovski, tais “argumentos” poderiam ser reduzidos a uma espécie de equação das mais
simplórias, contida em termos onde teríamos “a poesia = a imagem”. Ainda para V.
Chklovski, esta “equação”
[s]erviu de fundamento a toda teoria que afirma que a imagem = o símbolo, = a
faculdade de a imagem tornar-se um predicado constante para sujeitos diferentes.
Esta conclusão seduziu os simbolistas (...) pela afinidade com as suas ideias, e se
acha na base da teoria simbolista (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 41).
O que por vezes se confunde é o fato de que a crítica formalista não foi direcionada
propriamente à questão da imagem na literatura, mas, sim, ao modo como tal questão era
colocada pelo movimento e pela teoria simbolistas. A crítica está no resumir arte, literatura,
poesia em imagem; está, até mesmo, na simplificação simbolista da relação
imagem/arte/literatura. Tal simplificação exagerada depõe contra o papel da imagem em sua
correlação com a literatura, simplismo que se deixa evidenciar nos apontamentos de Potebnia,
já seja quando este escreve que “a imagem é muito mais simples e muito mais clara do que
aquilo que ela explica” (POTEBNIA, 1905, p. 314), ou mesmo quando expõe opinião
segundo a qual a imagem “deve ser para nós mais familiar do que aquilo que ela explica”
(POTEBNIA, 1905, p. 291).
Eis, assim, uma das bases da cisão entre o pensamento formalista e o pensamento
simbolista a partir das considerações de Potebnia. Para V. Chklovski, e como uma
representação do pensamento formalista, a imagem a partir das observações de Potebnia tem
status totalizador no estudo e no desenvolvimento artístico da poética levados a cabo pelo
13
Aleksandr Potebnia (1835-1891). As proposições apresentadas pelo ucraniano Potebnia viriam a influenciar
não somente a poesia simbolista russa, mas, também, toda a crítica e busca de teorização literária que se
desenvolveu ao redor do simbolismo russo.
14
Também traduzido como “A arte como processo”, derivando das possibilidades de tradução para o termo russo
priom.
27
simbolismo russo, reduzindo ao extremo a amplidão de possibilidades advindas do estudo
mais atento do poema. Deste modo, partindo do poema para um todo literário, à relevância da
imagem levantada por Potebnia o formalismo opõe e apresenta o estudo do som nos versos,
na rima, na métrica, na poética. No entanto, ainda assim, resulta de interesse para a presente
pesquisa a inversão proposta pelo formalismo, evidenciada desde Chklovski.
Para o formalismo, a definição de Potebnia quanto à imagem na literatura, esse
simplismo, dá-se porque se a vincula à linguagem poética, quando, em verdade, tal
familiarização deveria ater-se tão somente à linguagem quotidiana. E é justo na oposição
linguagem quotidiana x linguagem poética que entra em cena a inversão de papéis na relação
imagem/literatura defendida pelos formalistas. Por conseguinte, é aqui que entra em jogo a
questão do estranhamento de que falará Viktor Chklovski, vinculada ao novo entendimento do
papel da imagem como um correlato da linguagem poética e, não, da cotidiana.
O termo ostranenie (
остранение)
utilizado por V. Chklovski para designar o que hoje
se tornou comum traduzir-se na teoria literária em língua portuguesa por “estranhamento” é
um neologismo introduzido à língua russa por esse formalista. Ao longo dos anos, sua
abrangência derivou desde certo desfamiliarizar, singularizar como característica própria e
atinente ao processo de compreensão, apreensão da arte como um todo e, mais
especificamente, da linguagem poética, da arte literária, até a identificação do que causam no
receptor desse processo artístico tais efeitos de estranheza, de estranhamento (para o caso
literário, por exemplo, sua estética própria, o estilo de um autor, o uso da metáfora, da
metonímia ou de outras figuras de linguagem).
Em suma, a complementação, derivação e evolução das proposições iniciadas por e em
Chklovski passa da busca de tradução de seu neologismo a todo um processo de
desdobramento da noção teórica proposta por esse formalista a partir de seu
остранение
. Ainda
assim, em todo esse processo de desenvolvimento do termo (ou da[s] terminologia[s] que
surge[m] a partir dele), são em certa medida análogas a desautomatização, a desfamiliarização
da língua quotidiana buscada desde o trabalho com a arte, a linguagem poética, a arte literária,
singular. É nesse ponto-chave que se chocam a função da imagem para Potebnia e a função da
imagem para os formalistas. Enquanto para aquele a imagem, apesar de exercer papel
fundamental na arte poética (na literatura), é mais familiar do que aquilo que tem por função
explicar, para estes (e em especial quando tocamos no texto de Viktor Chklovski) a imagem
tem por objetivo buscar criar uma percepção singular do objeto, oferecendo-nos uma visão, a
visão desse objeto e, não, seu reconhecimento.
Dostları ilə paylaş: |