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descontínua, quebradiça, movediça quanto a extensa região fronteiriça sobre a qual migram
em busca de trabalho seus personagens.
Tal movimento proposto para uma narrativa que trata do movimento imposto por um
ano de trabalho rural migratório é a singularização, a desfamiliarização do narrado, de um
narrado que prima por seus implícitos, por elos, nexos que somente serão encontrados em um
movimento de volta inteira, como sugere o narrador na introdução “El año perdido”, pela
elipse que o contorna e em respostas dadas pelo autor externamente, em entrevistas, nos seus
ensaios, e na crítica que se debruça por sobre a obra. É o que lhe torna peculiar, sendo sua
literariedade.
2.2 A ficção do menino narrador riverano: um problema ontológico (?)
Este tópico se inicia a partir de um breve, porém necessário, retorno a algumas das
últimas considerações expostas no segmento anterior. São elas as que se referem à correlação
entre ficções de memória e sua desembocadura, sua afluência, sua concorrência para outro
aspecto ficto: a ficção do menino narrador.
Acerca da memória, sua aproximação máxima nesse romance de Tomás Rivera é para
com as qualidades de uma memória fotográfica. Não por acaso, talvez, a possibilidade de
comparação das estampas e contos-capítulos que compõem a obra com a fotografia, já sejam
as que se assemelham à pintura ou instantâneos, caso das estampas, ou as que se achegam à
crueza que pode haver em uma foto em preto e branco. Mas, vigora de igual maneira a
questão do detalhe para o possuidor da faculdade mnemônica fotográfica. Atendo-se ao
exemplo da epígrafe “Bartolo pasaba por el pueblo”, há de se notar, pela explicação fornecida
por Rivera no artigo em que revela a existência de um Bartolo empiricamente real, a riqueza
de detalhes captados em seu espírito, no espírito da ocasião dos encontros e dos efeitos sobre
o menino Tomás Rivera, rica cena captada e levada à ficção quase como uma epígrafe real,
repito, quase como uma epígrafe cuja origem empírica está no real vivido, qual mera
descrição de fatos realmente acontecidos. Agora, se nos detemos na esclarecedora edição
argentina, primeira edição de fato latino-americana de ...y no se lo tragó, outro exemplo
revolve ainda mais a possibilidade de leitura da obra como resultante de um processo onde
envolvido está um sujeito com memória fotográfica: trata-se de um capítulo que desenrola sua
narrativa a partir de acontecimentos que se sucedem em torno à realização (ou tentativa de
criação) de um retrato. Nesse caso, será interessante notar como justamente “realização” e
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“criação” estabelecem proposital relação aproximativa entre “real” e “imaginativo”,
ocasionando um efeito que sugere ser uma importante proposta do capítulo.
Precedido pela estampa “Antes de que la gente se fuera”, o conto “El retrato” é o
penúltimo dos doze capítulos componentes do corpo de desenvolvimento da obra. Apesar de
relacionar-se com sua estampa anterior através da poética de deslocamento sobre a qual
ambas investem, “El retrato” tem seu narrado revestido de situações distintas às que ocorrem
no “quadro” coesivo imediatamente anterior. E, por ter ligação estrita com o recorte ora em
relevo, é para a abordagem desse conto com algo de imagem já em seu título que convergem
as linhas a seguir.
Em “El retrato” um desfile sobre o poder e alcance da imagem é contado primando
sempre pela dúvida, pela ambiguidade do ir e vir, do limiar entre o que pode ser verdade e o
que se quer como verdade. Chuy, filho de um amigo do pai do menino protagonista, foi
enviado à Guerra da Coreia e desde a partida para o combate sua família não mais voltou a
vê-lo. Em meio à falta do jovem, seus familiares recebem um dentre tantos outros vendedores
de retratos que visitavam povoados chicanos oferecendo seus trabalhos para transformar
fotografias em retratos tridimensionais em alto relevo talhados e incrustados em madeira,
garantindo-lhes, como diz o vendedor à família do soldado Chuy, um aspecto “así abultadito
(...) Para que se vea como que está vivo” (RIVERA, [1971] 2012, p. 141-2). Após alguns
impedimentos, certos percalços a aproximar o prometido (e pago) de uma trapaça, chega-se a
um resultado forçado pelo pai do soldado desaparecido, desaparecida também sua foto,
quando, após reencontrar o vendedor, obriga-o, mesmo sem a fotografia de Chuy, a dar conta
do retrato-escultura a partir unicamente da lembrança do objeto fotográfico perdido. Tal
resultado se evidencia no trecho do diálogo a seguir, no qual um amigo em visita à casa dos
familiares de Chuy indaga ao pai do jovem soldado sobre o fato de o vendedor haver enfim
produzido o retrato así abultadito todo de memória:
– Y, ¿cómo lo hizo?
– No sé. Pero, con miedo, yo creo que uno es capaz de todo. A los tres días me trajo
el retrato acabadito así como lo ve cerquita de la virgen en esa tarima. ¿Usted dirá?
¿Cómo se ve m’ijo?
– Pues, yo la mera verdad ya no me acuerdo cómo era Chuy. Pero ya se estaba, entre
más y más, pareciéndose a usted, ¿verdad?
– Sí. Yo creo que sí. Es lo que me dice la gente ahora. Que Chuy, entre más y más,
se iba a parecer a mí y que se estaba pareciendo a mí. Ahí está el retrato. Como
quien dice, somos la misma cosa (RIVERA, [1971] 2012, p. 145).
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