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momentos de posta em xeque dos costumes, da tradição, da imaginária de seu povo, sua
gente. Imaginária, é bem verdade, advinda de todo um poder imaginativo, mas com ares de
fixidez quase tão material quanto a das imagens evocadas nos apelos católicos até aqui
tratados. É quando entra em cena a figura, a figuração do diabo pelas vias do desafio, pelas
vias de enfrentamento do medo que tal oposição, necessária para a afirmação do bem na
imaginária católica romana, poderia provocar à mente do menino protagonista e seus jovens
irmãos.
No conto-capítulo “La noche estaba plateada”, nosso maduro narrador rememora um
momento em que ele, na figura de menino protagonista, desafia a que aparecera o diabo,
imagem que lhe havia chamado a atenção desde uma encenação pastoral em casa de uma tia
sua. O desafio está no espírito impetuoso do menino, quem promove um desmascaramento
desse medo ao encontrar a fantasia sob a casa de quem interpretara o personagem. A esse
primeiro desmascaramento promovido por Rivera em sua narrativa ficcional sucede a
materialização oral do menino, que busca invocar a presença do diabo no alto de uma colina à
meia-noite de uma noite prateada. Mais uma vez, dá-se a proposição de um jogo entre
fantasia, palavra e imagem; entre crenças e verdades construídas, impostas na construção do
medo pelas tradições, as quais resultam relativizadas na conclusão a que chega o maduro
narrador travestido na memória que tem de si quando menino:
Pensó que bien decía la gente que no se jugaba con el diablo. Luego comprendió
todo. Los que le llamaban al diablo y se volvían locos, no se volvían locos porque se
les aparecía sino al contrario, porque no se les aparecía. Y se quedó dormido viendo
cómo la luna saltaba entre las nubes y los árboles contentísima de algo (RIVERA,
[1971] 2012, p. 103).
Tal desafio ao medo na tradição religiosa e nas crenças de seu povo, de seus pais, de
sua gente se potencializa ainda mais no conto-capítulo “...y no se lo tragó la tierra”,
imediatamente seguinte ao anterior e, de modo bastante perspicaz e interessante, antecedido
por uma estampa que apresenta um caso de adultério, relativizando de maneira irônica o
protestantismo de um ministro evangelista que prometia a um povoado chicano que lhes
viriam sua esposa como intérprete e um outro “fulano”, palavra da própria narrativa, a ensinar
trabalhos de carpintaria aos homens de lá, para que esses não precisassem somente do
trabalho com a terra para sobreviver, o que ao cabo termina por nunca acontecer. No conto
que empresta seu título ao romance, a mensagem de desafio é clara. Nele, temos um irmão
mais velho do menino protagonista maldizendo a Deus por caírem doentes de tanto trabalho
ao sol seu pai e seu irmão menor, situações já recorrentes numa família em que tios e tias já se
haviam ido pela tuberculose ou a sanatórios ou tragados pela terra, mortos pela mesma doença
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de sangue cuspido em razão da fatal combinação de suor, sol, pouca hidratação e trabalho
intermitente junto à terra. De tal maldição jogada a Deus, o rapaz vê abrir-se a terra como a
tragá-lo, sentimento-visão resultante do medo de anos. Mas, do emblemático desafio resulta
outra crença: a da cura de seu pai e seu irmão mais novo, imediatamente subsequente às
maldições que havia dedicado a Deus. Na manhã seguinte, batendo firme seu pé ao solo,
sentindo-se vitorioso sobre a terra, representação simbólica da vitória sobre o medo em solo
até ali alheio e hostil, o jovem sentencia: “Todavía no, todavía no me puedes tragar. Algún
día, sí. Pero yo ni sabré” (RIVERA, [1971] 2012, p. 111).
Esta relação imagética entre “La noche estaba plateada” e “...y no se lo tragó la tierra”,
a proposição imagética que levantam é tão emblemática como prova do poder sugestivo,
criador de imagens pela descrição da palavra literária que viria, inclusive, a servir de
ilustração para a capa de uma edição do romance datada de 1996 [2011], publicada pela
texana Piñata Books, da Arte Público Press (University of Houston)
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. Nesta capa,
desenhados estão de um lado um menino em roupas de dormir, com o medo estampado no
rosto; e, do outro, uma representação do diabo a partir da descrição narrativa da fantasia dele
feita em “La noche estaba plateada”. E, entre ambas as figurações, separando ambas as figuras
desenhadas o desenho de uma fenda aberta no chão, tal qual a descrição da terra se abrindo
em “...y no se lo tragó la tierra”.
Mas, as remissões imagéticas a céu e inferno e “seus” personagens se espalham no
mais da obra, e o desfile de imagens no romance de Rivera segue ainda em capítulos como
“Primera comunión”, com o medo, infundido pela religião sobreposta às heranças sincréticas
e multiculturais mexicanas, sendo ironizado e desafiado:
[N]o había podido dormir la noche anterior tratando de recordar los pecados que
tenía y, peor, tratando de llegar a un número exacto. Además, como mamá me había
puesto um cuadro del infierno en la cabecera y como el cuarto estaba empapelado de
caricaturas del fantasma y como quería salvarme de todo mal, pensaba sólo en eso
(RIVERA, [1971] 2012, p. 113).
E se neste mesmo conto as questões impostas pela Igreja referentes ao pecado são revolvidas,
na estampa “Antes de que la gente se fuera”, a qual antecede justamente o conto “El retrato”,
a Igreja retorna, desta feita numa sobreposição de crenças, quando um padre espanhol
consegue, através do dinheiro ganho em bendições a automóveis da gente do povoado em que
congregava, reunir valor suficiente para viajar a sua terra natal. Ao retornar deixa do lado de
fora da pequena igreja postais de uma igreja espanhola muito moderna, o que, ao contrário do
que esperava, passa a ser alvo de adorações que começaram por “palabras en las tarjetas,
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Uma reprodução consta dos anexos do presente trabalho.
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